Assassinos seriais (serial killers): estamos preparados para enfrentá-los?
Lélio Braga Calhau*
Adentramos ao século XXI investigando e processando (regra geral) os acusados da mesma maneira como há mais de cinqüenta anos. Avanços ocorreram de forma significativa na defesa dos direitos fundamentais dos acusados e na forma como os crimes são perpetrados (buscando, em suma, dificultar a descoberta da autoria e a formação da prova para uma condenação). Todavia, as técnicas de investigação policial e de processamento dos acusados em crimes de homicídios não evoluíram com a mesma velocidade no Brasil.
O resultado disso já é de nosso conhecimento. Níveis elevados de impunidade e descrédito da população com a falta de efetividade do Sistema da Justiça Criminal (Poder Judiciário, Ministério Público, Polícias e Administração Penitenciária). A ação solitária e com foco apenas nos inquéritos/processos de sua atribuição transforma delegados de polícia e promotores de justiça em burocratas da Justiça Criminal. Não pensam, não refletem, apenas reproduzem cegamente os procedimentos desse sistema.
A atuação unicamente reagente desses profissionais nos impede de perceber padrões de ação criminal (ou assinaturas em homicídios), que podem nos levar a detectar a atuação de um tipo de delinqüente psicopata muito danoso: os assassinos seriais (serial killers). Nosso sistema criminal praticamente finge desconhecer a ação dos psicopatas. [1] Esses passam tranqüilamente pelo sistema, entram e saem, e nada é feito no sentido de detectá-los. Só são identificados, como tais, quando já causaram um mal maior. Coibir a ação dos psicopatas assassinos seriais é um grande desafio[2] para o Sistema da Justiça Criminal. [3]
Para Hilda Morana, Michael Stone e Elias Abdalla-Filho, os transtornos de personalidade, sobretudo o tipo anti-social, representam verdadeiros desafios para a psiquiatria forense. Não tanto pela dificuldade em identificá-los, mas, sim, para auxiliar a Justiça sobre o lugar mais adequado desses pacientes e como tratá-los. Os pacientes que revelam comportamento psicopático e cometem homicídios seriados necessitam de atenção especial, devido à elevada probabilidade de reincidência criminal, sendo ainda necessário sensibilizar os órgãos governamentais a construir estabelecimentos apropriados para a custódia destes sujeitos. [4] O que se vê é que não há política de saúde pública e nem judicial para intervenção nesses casos.
Agravando essa nossa incapacidade de detectar precocemente a atuação desses delinqüentes específicos, o que expõe á risco concreto de forma desnecessária a sociedade, há diversos mitos sobre o tema que ainda devam ser esclarecidos. Primeiro, serial killers não existem apenas nos Estados Unidos, mas em vários países do mundo. Segundo, existem poucos trabalhos científicos em nosso país sobre serial killers. Terceiro, não existem equipes especializadas em rastrear a ação desses criminosos no Brasil. [5] Quarto, em grande número de casos os assassinos seriais matam vítimas como prostitutas e andarilhos, dificultando a descoberta do nome da vítima e a dinâmica do delito. Quinto, o assassino serial foge completamente dos padrões criminais (ainda lombrosianos) que policiais e promotores ainda insistem em utilizar (mesmo que isso seja negado no discurso formal), o que dificulta ainda mais a sua detecção. Sexto, não há somente serial killers do sexo masculino. Já foram detectadas serial killers do sexo feminino, embora em número bem menor de ocorrências.
O estágio da prova pericial em homicídios no Brasil, ainda pré-histórica em alguns rincões e totalmente ultrapassada na maior parte do Brasil, salvo algumas ilhas de excelência sobre o assunto, facilita, ainda mais, as ações criminosas dos assassinos seriais. Regra geral, os homicídios no Brasil ainda são apurados unicamente com provas testemunhais e com exames periciais ainda muito básicos. O exame de DNA[6] deve ser regra geral nesses crimes, e não apenas exceção. Deve, ainda, ser dado um caráter mais seguro de preservação do local do crime e de suas evidências. [7] Investimentos maiores estruturais por parte dos governos estaduais são necessários. [8]
O assassino serial é, regra geral, um delinqüente inteligente e que, aproveitando-se disso, tenta manipular a ação das pessoas para obter a sua impunidade. É um psicopata, não tem sentimento de compaixão por ninguém, pois lhe interessa unicamente os seus objetivos. Para esse assassino, chega a ser um desafio prazeroso cometer o crime e ludibriar a ação do Estado, com vistas a obter a total impunidade. [9]
Nesse contexto, é chegado o momento de repensarmos a qualidade da produção da prova criminal, notadamente em crimes de homicídios, com o intuito de garantir, não apenas o apontamento da autoria com provas testemunhais, mas com um conjunto probatório sólido e que possibilite a detecção, inclusive, de possíveis padrões de comportamento nos crimes de homicídio perpetrados por assassinos seriais. No entanto, procurar compreender o fenômeno com a ajuda da psiquiatria, psicologia, psicanálise, ainda o é, nosso primeiro passo.
Referências bibliográficas
CALHAU, Lélio Braga. Resumo de Criminologia, 4ª edição, Rio de Janeiro, Impetus, 2009.
MORANA, Hilda C.P.; STONE Michael H.; ABDALLA-FILHO, Elias Transtornos de personalidade, psicopatia e serial killers. Revista Brasileira de Psiquiatria, 2006; 28(Suplemento II).
REVISTA ÉPOCA.
SILVA, Ana Beatriz Barbosa. Mentes perigosas: o psicopata mora ao lado. Rio de Janeiro, Objetiva, 2008.
* Promotor de Justiça criminal do Ministério Público do Estado de Minas Gerais. Pós-Graduado em Direito Penal pela Universidade de Salamanca (Espanha). Mestre em Direito do Estado e Cidadania pela Universidade Gama Filho (RJ). 2º Diretor-secretário do ICP – Instituto de Ciências Penais do Estado de Minas Gerais. Autor do livro Resumo de Criminologia, 4ª ed, Rio de Janeiro, Impetus, 2009.
[1] Para Ana Beatriz Barbosa Silva os psicopatas costumam ser espirituosos e muito bem articulados, tornando uma conversa divertida e agradável. Geralmente contam histórias inusitadas, mas convincentes em diversos aspectos, nas quais eles sempre são os mocinhos. Não economizam charme nem recursos que os tornem mais atraentes no exercício de suas mentiras. Para algumas pessoas, eles se mostram suaves e sutis, tal como os galãs de TV e do cinema. SILVA, Ana Beatriz Barbosa. Mentes perigosas: o psicopata mora ao lado. Rio de Janeiro, Objetiva, 2008, p. 64.
[2] Vejamos, por exemplo, um trecho da estória do assassino serial “Pedrinho Matador”. ÉPOCA – Afinal, quantas pessoas você matou? Pedrinho Matador – Que eu lembro, só aqui (na Penitenciária do Estado) eu matei dez. Mas, veja bem, tudo gente que não presta, viu amigo? Se for contar mesmo é cento e pouco. Só na cadeia eu matei 47. REVISTA ÉPOCA. O monstro do sistema. Edição 259, de 30.04.03.
[3] Trata-se de um desafio intransponível para a ação solitária do Direito, o qual deve buscar subsídios junto á Medicina, Psicologia, Psicanálise etc. Uma abordagem interdisciplinar do tema tem muito mais condições de produzir respostas satisfatórias para a sociedade civil e com respeito aos direitos fundamentais dos envolvidos (condenados, vítimas e suas famílias).
[4] MORANA, Hilda C.P.; STONE Michael H.; ABDALLA-FILHO, Elias. Transtornos de personalidade, psicopatia e serial killers. Revista Brasileira de Psiquiatria, 2006; 28(Suplemento II), p. 79.
[5] Não é um problema somente do Brasil. Por exemplo, recentemente na Colômbia o Estado só tardiamente conseguiu identificar e prender o assassino serial Luís Alfredo Garavito, que violou, assassinou e mutilou mais de 223 crianças em diversas regiões do país. Os EUA também só tomaram ações mais específicas após identificarem e prenderem Theodore Robert “Ted” Bundy (1946-1989), responsável por mais de 30 homicídios.
[6] O assassino serial norte-americano, Gary Ridgway, conhecido como “O assassino de Green River” só foi descoberto, após a morte, de pelo menos 48 mulheres, com a prova de DNA, coletada de uma de suas primeiras vítimas, quando o exame ainda tinha pouca aplicação. A ciência evoluiu e ele pode ser feito, apontando a autoria de Gary.
[7] Notamos, ainda, com grande prejuízo para a investigação um distanciamento profissional muito grande entre delegados, promotores e os setores de perícias. Embora, seja fácil realizar uma reunião com delegados de homicídios, é um entrave terrível esses distanciamento com os setores de perícias. Levantamentos realizados de casos concretos norte-americanos (através da gravação e análise de programas com casos reais, por exemplo, As Primeiras 48 horas, canal AE MUNDO) demonstram a ação conjunta e próxima de detetives de homicídios e peritos já nas primeiras horas, inclusive, participando ativamente de reuniões preliminares de avaliação dos procedimentos policiais que serão adotados.
[8] Nesse sentido, não compreendemos o porquê de não terem sido realizados concursos públicos no Brasil para que nas delegacias de polícia regionais haja um psiquiatra forense em permanente contato com a equipe de investigação de homicídios.
[9] Os psicopatas possuem uma visão narcisista e supervalorizada de seus valores e importância. Eles se vêem como o centro do universo e tudo deve girar em torno deles. Pensam e se descrevem como pessoas superiores aos outros, e essa superioridade é tão grande que lhes dá o direito de viverem de acordo com suas próprias regras. Para os psicopatas, matar, roubar, estuprar, fraudar etc., não é nada grave. Embora eles saibam que estão violando os direitos básicos de outros, por escolha, reconhecem somente as suas próprias regras e leis. Além disso, são extremamente hábeis em culpar as outras pessoas por seus atos, eximindo-se de qualquer responsabilidade. Para eles, a culpa sempre é dos outros. SILVA, op. cit, p. 65-66.