A rigidez aparente da Lei n.º 11.705/2008, que alterou o art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro, apelidada de “Lei seca”.
Valdinei Cordeiro Coimbra*
Recentemente recebi na Delegacia uma equipe da Polícia Militar apresentando uma pessoa totalmente embriagada, que estava conduzindo um veículo, colocando em risco a sua própria vida e de seus familiares (passageiros), bem como a vida dos transeuntes que se encontrava em via pública, próximo ao local em que foi abordado, o que por si só era suficiente para a lavratura de auto de prisão em flagrante nos termos do antigo art. 306 do Código de Trânsito.
Ocorre que tal pessoa se recusou a fazer o exame do bafômetro (etilômetro), bem como o exame de sangue, impossibilitando a produção da prova, conforme exigência do tipo penal do art. 306, após a sua alteração pela “Lei Seca”.
Em face desta casuística, resolvi escrever este artigo visando desmistificar o rigorismo da “Lei Seca” veiculado nos meios de comunicações diuturnamente.
A lei nº 11.705/2008 em vigor desde 20.06.2008, alterou o art. 306 do Código de Trânsito, definindo o crime de embriaguez ao volante da seguinte forma:
Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência:
Penas – detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.
Parágrafo único. O Poder Executivo federal estipulará a equivalência entre distintos testes de alcoolemia, para efeito de caracterização do crime tipificado neste artigo. (negritei)
Como era o art. 306 do CTB:
Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem:
Penas – detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.
Veja que na vigência da redação anterior o indivíduo para ser punido pelo crime de embriaguez ao volante, fazia-se necessário alguns requisitos: a) que estivesse sob influência de álcool ou substâncias análogas; b) na direção de veículo automotor em via pública; e c) expondo a dano potencial a incolumidade de outrem.
A Lei não exigia o teor de alcoolemia, como exige o novo art. 306 (concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a seis decigramas) , ou seja, naquela época, podia-se fazer o exame de alcoolemia através do sangue, bafômetro (etilômetro), e exames clínicos, encaminhando-se o autor à presença de um médico para elaboração de Laudo. Em contrapartida, o dispositivo anterior exigia que houvesse a exposição a dano potencial a incolumidade das pessoas, ou seja, se não houvesse ninguém por perto, mesmo restando provado a embriaguez ao volante, não haveria crime, em face da inexistência de exposição de dano a incolumidade de terceiro.
Naquela época, se o indivíduo se recusasse a realizar o exame do bafômetro, que é o mais comum no dia a dia, era encaminhado ao Instituto de Medicina Legal ou a um Hospital, para realização de exame de sangue, caso ele se recusasse a doar o sangue para exame, fazia-se o exame clínico, onde o médico atestaria os seus sinais de embriaguez, o que era suficiente para caracterização do tipo penal, e, consequentemente, a sua prisão em flagrante.
Conforme inicialmente comentado, o art. 306 do Código de Trânsito com a nova redação trouxe um critério objetivo que é a constatação de concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência. Significa dizer que para punir alguém, faz-se necessário essa constatação, pois do contrário não se teria aperfeiçoado o tipo penal.
Mas de que forma será possível constatar a embriaguez (o teor alcoólico) da pessoa? Como proceder? A resposta está no Decreto 6.488/2008, regulamentou o art. 306 da Lei 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro), estabelecendo em seu art. 2º, os níveis exigidos para a comprovação do tipo penal, senão vejamos:
Art. 2.º Para os fins criminais de que trata o art. 306 da Lei no 9.503, de 1997 – Código de Trânsito Brasileiro, a equivalência entre os distintos testes de alcoolemia é a seguinte:
I – exame de sangue: concentração igual ou superior a seis decigramas de álcool por litro de sangue; ou
II – teste em aparelho de ar alveolar pulmonar (etilômetro): concentração de álcool igual ou superior a três décimos de miligrama por litro de ar expelido dos pulmões.
Observe-se que o Decreto só trás duas formas para constatação da embriaguez visando a materialização do crime previsto no art. 306, que seria a realização de exame de sangue, que pode ser recusado pelo autor, bem como o teste de bafômetro (soprar o aparelho de ar alveolar pulmonar), que também pode ser recusado pelo agente.
Digo recusado, porque ninguém está obrigado a produzir prova contra si mesmo (nemo tenetur se detegere), tratando-se de um direito garantido constitucionalmente no art. 5º, inc.II, da CF/88, que dispõe: “ ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” .
Ressalte-se que na prática, apesar da lei trazer dois tipos de exame, para se comprovar o crime previsto no art. 306 do Código de Trânsito, para fins de autuação em flagrante, só existe o teste do bafômetro, cujo resultado é emitido na hora, materializando a conduta criminal, o que não ocorre com o exame de sangue, que exige coleta e encaminhamento a laboratório, sendo que as polícias civis e seus respectivos Institutos de Medicina Legal, não encontram-se equipados para realização de exame de sangue, especialmente para fornecer um laudo preliminar, visando municiar a Autoridade Policial para lavratura do Auto de Prisão em Flagrante. Sendo assim, nos casos de recusa do teste do bafômetro, mas havendo aceitação no fornecimento de sangue, cujo resultado virá a posteriori, o autor não poderá ser autuado em flagrante, mas responderá a inquérito instaurado posteriormente quando da juntada da prova da alcoolemia.
Assim, a solução dada para a casuística inicialmente narrada foi a liberação do embriagado, o qual foi sancionado apenas com a multa administrativa prevista no art. 165, em face do que dispõe o § 3º do art. 277 do mesmo diploma legal, in verbis:
Art. 165. Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência: (Redação dada pela Lei nº 11.705, de 2008)
Infração – gravíssima;
Penalidade – multa (cinco vezes) e suspensão do direito de dirigir por 12 (doze) meses;
Medida Administrativa – retenção do veículo até a apresentação de condutor habilitado e recolhimento do documento de habilitação.
Parágrafo único. A embriaguez também poderá ser apurada na forma do art. 277.
Art. 277. Todo condutor de veículo automotor, envolvido em acidente de trânsito ou que for alvo de fiscalização de trânsito, sob suspeita de dirigir sob a influência de álcool será submetido a testes de alcoolemia, exames clínicos, perícia ou outro exame que, por meios técnicos ou científicos, em aparelhos homologados pelo CONTRAN, permitam certificar seu estado.
[…]
§ 3o Serão aplicadas as penalidades e medidas administrativas estabelecidas no art. 165 deste Código ao condutor que se recusar a se submeter a qualquer dos procedimentos previstos no caput deste artigo. (negritei)
Verifica-se que para constatação da infração administrativa do art. 165, pode ser realizados, através de exames clínicos, testes de alcoolemia, perícia ou outro exames, enquanto que para caracterização do crime previsto no art. 306, faz-se necessário a realização do exame de sangue (valor igual ou superior a seis decigramas de álcool por litro de sangue) ou teste do bafômetro (concentração de álcool igual ou superior a três décimos de miligrama por litro de ar expelido dos pulmões). Havendo recusa, não há como produzir a prova e conseqüentemente não se caracterizará o crime, em face dos requisitos objetivos previsto no tipo penal.
Felizmente (ou infelizmente), a maioria das pessoas que são flagradas dirigindo embriagadas, especialmente aquelas com uma maior concentração de álcool no sangue, tendem a realizarem o teste do bafômetro, acreditando que conseguirão comprovar a sua inocência, sendo que raramente um teste de bafômetro, em pessoas que apresentam sinais de embriaguez, dá resultado negativo, motivando o encaminhamento à Delegacia para lavratura de prisão em flagrante.
Não é demais mencionar que a prisão em flagrante por embriaguez ao volante não tem o condão de manter o indivíduo no cárcere, visto que o crime previsto no art. 306 do Código de Trânsito, é punido com detenção, portanto delito afiançável, nos termos do art. 322, do Código de Processo Penal , que dispõe: “A autoridade policial somente poderá conceder fiança nos casos de infração punida com detenção ou prisão simples”, devendo a autoridade policial arbitrar a fiança, cujo pagamento ensejará a liberação imediata do autor, sendo que em todos os casos que atuei, houve o pagamento da fiança.
Ora se a recusa em realizar o teste do bafômetro ou o não fornecimento do sangue enseja a não caracterização do crime, significa dizer que aqueles que na vigência da lei anterior se recusaram a realizar o teste de bafômetro ou exame de sangue, e que estão sendo processados apenas pelo exame clínico, deverão ser beneficiados com a aplicação da nova lei, visto que neste ponto trata-se de uma novatio legis in mellius, a qual deve retroagir, obedecendo-se o mandamento constitucional insculpido no art. 5º, inc. XL da CF, bem como o parágrafo único do art. 2º do Código Penal, que dispõe: “A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado”, ou seja, os que estão sendo processado nestes termos, deverão ter os seus processos trancados, visto que a nova lei só considera crime, se restar comprovado a concentração de álcool exigido pelo art. 306 (nível igual ou superior a 0,6 decigramas de álcool por litro de sangue).
Assim, podemos chegar às seguintes conclusões:
a) A nova lei só é mais rígida, para aqueles que espontaneamente se submeterem ao exame do bafômetro e restar constatada o teor alcoólico igual ou superior a 0,6 decigramas de álcool por litro de sangue, não se exigindo que o dirigir embriagado venha expor a dano potencial a incolumidade de outrem;
b) Para autuação em flagrante de alguém pego dirigindo embriagada só resta o teste do bafômetro, cujo laudo é emitido imediatamente, o que não ocorre com o exame de sangue que é realizado em laboratório especializado, ensejando apenas a instauração de inquérito com o indiciamento do autor após a juntada do Laudo, caso reste constatado o teor de alcoolemia igual ou superior a 0,6 decigramas de álcool por litro de sangue.
c) A nova lei é mais benéfica tendo em vista que ao exigir a constatação de 6 (seis) decigramas álcool por litro de sangue, sem disponibilizar meios subjetivos de constatação, deixou a prova atrelada à vontade do autor, sendo que em face do princípio nemo tenetur se detegere (ninguém é obrigado a produzir provas contra si mesmo), a recusa por si só, enseja a atipicidade criminal.
d) Por se tratar de novatio legis in mellius deve a mesma retroagir para alcançar aqueles que estão sendo processados com base apenas nos exames clínicos, em face da recusa em fazer o teste do bafômetro ou exame de sangue.
e) O legislador pecou ao estabelecer requisitos objetivos no tipo penal, exigindo-se a constatação 6 (seis) decigramas de álcool por litro de sangue, sem deixar alternativas para que os agentes do Estado pudessem comprovar a embriaguez visualmente constatada, como ocorre na seara administrativo da própria lei, pois para imposição das sanções do art.
* Delegado de Polícia Classe Especial da PCDF. Especialista em Direito Penal e Processo Penal pelo ICAT/UDF. Pós-graduado em Gestão Policial Judiciária pela ACP/PCDF-FORTIUM. Professor de Direito Penal e orientação de monografia na UDF. Ex – Diretor-adjunto da Divisão de Sequestros. Ex-Chefe-adjunto da 1ª Delegacia de Polícia. Ex-Assessor do Departamento de Polícia Especializada – DPE/PCDF. Ex-Chefe-adjunto da DRR/PCDF. Ex-Analista Judiciário do TJDF. Ex-Agente de Polícia Civil do DF. Ex-Agente Penitenciário do DF. Ex-Policial Militar do DF. E-mail: vcoimbr@yahoo.com.br.
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