A propósito da pedofilia
Paulo Queiroz*
Imagine-se a seguinte situação: uma gata recém-parida amamenta seus filhotes, acariciando-os e lambendo-os por todo o corpo. Algo absolutamente natural e que contemplamos, por isso, com toda naturalidade. Não a censuramos por coisa alguma, ao contrário, achamos bonito o carinho e a proteção dispensados aos filhotes. No mundo animal, sequer censuramos a ovelha que enjeita sua cria.
Suponha, agora, que esse animal já não seja uma gata ou qualquer outro animal dito irracional, mas uma mulher, chamemos Lourdes, que concebeu e gerou uma bela menina, chamemos, Lourdinha, de dois anos: ela a acaricia e lhe lambe as costas, os braços e o órgão genital. Já agora, porém, o que achávamos natural, normal, passamos a achar “anormal”, “antinatural”, “doentio” e até “criminoso”.
Desgraçadamente, Lourdes e Lourdinha (os nomes foram alterados) não são personagens fictícios, mas reais. Lourdes, flagrada por sua vizinha, que avisou a polícia, foi presa em “flagrante delito”; submetida a julgamento, foi condenada por “crime hediondo” (atentado violento ao pudor) a cumprir pena de 7 anos e 6 meses de reclusão. Prestes a sair por meio de livramento condicional, foi novamente flagrada, no interior do próprio presídio, com droga ilícita, sendo autuada por tráfico, motivo pelo qual, reincidente, deverá ser (possivelmente) condenada a mais 3 ou 4 anos de reclusão. Não é de surpreender a reincidência: quem é tratado como homem responde como homem; tratado como animal, responde como animal. Interessante: tivesse essa história se passado numa família de classe média ou alta, outro seria o desfecho: certamente, a família submeteria Lourdes a tratamento psicológico/psiquiátrico, a sessões de análise ou semelhante, e, no máximo, lhe tiraria, provisória ou definitivamente, a guarda da criança. Assim, não haveria polícia, nem crime, nem pena, nem prisão, tudo não passaria de um “problema de família” e resolvido em família. Definitivamente, o direito penal é coisa de pobres, de miseráveis.
Eis, pois, o seguinte paradoxo: a criatura humana quando age segundo seus instintos naturais age, com freqüência, incorretamente, mesmo que a proibição recaia sobre o objeto do desejo (Freud). Então, o que seria natural passa a ser antinatural, paradoxalmente. Mais: quem assim o faz, isto é, age conforme a natureza, mas desconforme as regras sociais, pode responder por crime, inclusive, e chamado, entre outras coisas, de “pedófilo”, de “monstro”, de “criminoso” etc. O crime é parte da construção social da realidade e, claro, esta construção social da realidade é discriminatória e arbitrariamente seletiva e atua (grandemente) segundo a lógica funcional do modelo capitalista de produção e de acordo com os estereótipos criados pelos meios massivos de comunicação.
Dito de modo diverso: Lourdes é portadora de um déficit de socialização: agiu como animal quando deveria agir como não-animal, como homem, enfim. Aliás, o déficit de socialização de Lourdes fica evidente pela leitura de seu exame criminológico, que a diagnosticou como: “personalidade primitiva, com nível mental baixo e conseqüente imaturidade intelectual e afetiva, que motivam os comportamentos regressivos que emite e que demonstram a dificuldade de adaptação ao meio social. Evidencia baixo nível de tolerância às frustrações, às quais reage com atitudes oposicionistas e agressivas, manifestadas através de descargas emocionais intensas, que refletem a dificuldade de controle sobre os impulsos. Em conseqüência, o processo de Inter-relação social torna-se difícil, sobretudo quando adota atitudes de supervalorização de si mesmo como uma forma de compensar o sentimento de inferioridade que procura dissimular”. Numa palavra: Lourdes é um animalzinho minimamente socializado.
Mas veja: se Lourdes é uma pessoa com reconhecido déficit de socialização, pouco se lhe deveria exigir socialmente, afinal deve-se exigir mais de quem pode mais e se exigir menos de quem pode menos, proporcionalmente. No entanto, na prática se dá, e se deu, justamente, o contrário: exigimos e condenamos maximamente, quando mais do que castigo, Lourdes carecia de ajuda, de compreensão, do perdão e, claro, de tratamento, mas não precisaria, por certo, de crime nem de pena.
Não bastasse isso, o castigo imposto a Lourdes se revelou politicamente desastroso, pois, ao invés de “ressocializá-la” e prevenir novos “crimes”, a intervenção penal a dessocializou mais ainda, agudizando seu déficit de socialização, e, pior, a profissionalizou na criminalidade e a afastou, definitivamente, da sua filha, e sua filha dela, cortando-lhes os laços afetivos e maternais (residuais).
E assim caminha a humanidade, segundo a lógica do castigo, do ódio, da exclusão…
* Doutor em Direito (PUC/SP), é Professor Universitário (UniCeub), Procurador Regional da República em Brasília, e autor, entre outros, do livro Direito Penal, parte geral. Rio: Lumen juris, 2008, 4ª edição
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