A discussão doutrinária e jurisprudencial face à inaplicação do princípio da bagatela e do princípio da irrelevância penal no crime de furto acarretando a penalização por furto privilegiado
Ravênia Márcia de Oliveira Leite*
Segundo a desembargadora Jane Silva, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, nos Autos do Processo Crime n.º 1.0145.06.322564-6/001(1) “o princípio da insignificância é aquele que, para ser aplicado, exige que o valor subtraído não tenha qualquer repercussão no patrimônio da vítima e seja considerado irrisório, revelando ser a agressão, por conseqüência, tolerável ao bem tutelado pela lei penal. Tal princípio permite a desconsideração da tipicidade do fato que, por sua inexpressividade, constitui ação de bagatela, afastada do campo da reprovabilidade, a ponto de não merecer maior significado nos termos da norma penal e, portanto, está ausente de eventual juízo de reprovação”.
O STF e STJ, embora não tenham entendimento pacífico, já decidiram neste sentido:
PENAL. HABEAS CORPUS. DESCAMINHO. DÉBITO FISCAL. ART. 20, CAPUT, DA LEI Nº 10.522/2002. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. MAUS ANTECEDENTES. PROCESSOS
EMENTA: I. Recurso extraordinário: descabimento: falta de prequestionamento da matéria constitucional suscitada no RE: incidência das Súmulas 282 e 356. II. Recurso extraordinário, requisitos específicos e habeas corpus de ofício. Em recurso extraordinário criminal, perde relevo a inadmissibilidade do RE da defesa, por falta de prequestionamento e outros vícios formais, se, não obstante – evidenciando-se a lesão ou a ameaça à liberdade de locomoção – seja possível a concessão de habeas-corpus de ofício (v.g. RE 273.363, 1ª T., Sepúlveda Pertence, DJ 20.10.2000). III. Descaminho considerado como “crime de bagatela”: aplicação do “princípio da insignificância”. Para a incidência do princípio da insignificância só se consideram aspectos objetivos, referentes à infração praticada, assim a mínima ofensividade da conduta do agente; a ausência de periculosidade social da ação; o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; a inexpressividade da lesão jurídica causada (HC 84.412, 2ª Turma, Celso de Mello, DJ 19.11.04). A caracterização da infração penal como insignificante não abarca considerações de ordem subjetiva: ou o ato apontado como delituoso é insignificante, ou não é. E sendo, torna-se atípico, impondo-se o trancamento da ação penal por falta de justa causa (HC 77.003, 2ª T., Marco Aurélio, RTJ 178/310). IV. Concessão de habeas corpus de ofício, para restabelecer a rejeição da denúncia. (STF. AI-QO 559904. 1ª Turma. Min. Sepúlveda Pertence. DJ 26-08-2005)
A festejada desembargadora que já atuou no Superior Tribunal de Justila como Ministra convocada cita o Dr. Luiz Flávio Gomes, o qual sobre o tema, tece pertinentes comentários. Senão vejamos:
Para Luiz Flávio Gomes “infração bagatelar imprópria: é a que não nasce irrelevante para o Direito penal, mas depois verifica-se que a incidência de qualquer pena no caso apresenta-se como totalmente desnecessária (princípio da desnecessidade da pena conjugado com o princípio da irrelevância penal do fato). No direito legislado há vários exemplos disso: no crime de peculato culposo, v.g., a reparação dos danos antes da sentença irrecorrível extingue a punibilidade. Isto é, a infração torna-se bagatelar (em sentido impróprio) e a pena desnecessária”.
Continua o ilustre doutrinador ao afirmar que “a importância do princípio da irrelevância penal do fato deve ser ressaltada porque serve de instrumento adequado para a solução de vários casos concretos. Quando o juiz tem dúvida sobre a aplicação do princípio da insignificância, pode valer-se do princípio da irrelevância penal do fato para fazer justiça no caso concreto. Vê-se, assim, que não ocupam, os dois princípios aqui enfocados, a mesma posição topográfica dentro do Direito penal. O princípio da insignificância é causa de exclusão da tipicidade do fato; o princípio da irrelevância penal do fato é causa de dispensa da pena (em razão da sua desnecessidade no caso concreto)”.
Por fim assevera que “enquanto o legislador não se definir sobre a questão com clareza (adotando expressamente o princípio da insignificância tout court ou princípio da irrelevância penal do fato, ou, ainda, ambos), é bem provável que a jurisprudência continuará oscilando (ora num, ora noutro sentido). E é previsível, penso, que assim seja, porque, no fundo, no atual Direito penal, há espaço para os dois princípios (e poucos sabem distingui-los). Um ou outro, em cada caso concreto, pode servir de fundamento para o reconhecimento do delito de bagatela (leia-se: da atipicidade ou da desnecessidade da pena). A norma proibitiva desta figura típica não foi pensada para uma subtração tão insignificante. O inquérito, o processo e a sanção penal, nesse caso, apresentam-se como aberrantes (chocantes), porque se trata de fato atípico. Não se pode usar o Direito penal por causa de uma lesão tão ínfima (leia-se: por causa de um palito de fósforo).”
Cezar Roberto Bitencourt ensina o criado por Claus Roxin: “Segundo esse princípio, que Klaus Tiedemann chamou de princípio de bagatela, é imperativa uma efetiva proporcionalidade entre a gravidade da conduta que se pretende punir e a drasticidade da intervenção estatal. Amiúde, condutas que se amoldam a determinado tipo penal, sob o ponto de vista formal, não apresentam nenhuma relevância material. Nessas circunstâncias, pode-se afastar liminarmente a tipicidade penal porque em verdade o bem jurídico não chegou a ser lesado” .
Assim, resumindo se, na eventualidade de que o furto seja de pequeno valor (afastando-se com isso a insignificância) e concorra no agente todas as condições favoráveis (primário, bons antecedentes etc.), é o caso de se aplicar o princípio da irrelevância penal do fato (não o furto privilegiado, que implica condenação penal).
O Superior Tribunal de Justiça e demais Tribunais, assim se posicionam sobre o fato:
Furto. Furto de pequeno valor e furto qualificado. O crime de furto (CP, art.155), é disciplinado organicamente. O tipo fundamental de crime coordenado com os tipos derivados. Harmonizam-se. Não há contradição. As normas intercomunicam-se. Não impede, em conseqüência, o furto qualificado (artigo 155, §4º) compor-se com causa especial de substituição, ou redução da pena (artigo 155, §2ª). O tratamento normativo traduz a característica jurídica do fato – infração penal. Em evidenciando complexidade (qualificação e substituição, ou redução da pena), evidente, têm de ser considerados. Caso contrário, a pena deixará de projetar a expressão dada pelo Direito. Correto, portanto, o furto qualificado ser também de pequeno valor. (RSTJ 105/456)
Constitui o parágrafo 2º, do artigo 155, do Código Penal mera regra de individualização da pena, nada obstando sua aplicação aos furtos qualificados. (JTACRIM 69/241)
Rés primárias e de pequeno valor a coisa subtraída. Embora o tipo qualificado, diante da inexistência de antecedentes e de outros elementos reveladores da personalidade das acusadas, é cabível a aplicação do furto privilegiado. (JTAERGS 101/8-1)
Para Flávio Augusto Maretti Siqueira “no caso do furto, uma questão perigosa nos apresenta, porque paulatinamente os agentes podem perder noção das raias daquilo que é de pequeno valor, ínfimo, inestimável e haver um avanço delituoso, pela impunidade que a aplicação do princípio de forma desgarrada de sua conceituação geraria. Mas, pela outra mão, visualizaríamos um cenário onde um réu de pequena capacidade ofensiva seria posto as barras do sistema carcerário deturpador de caráter, com absurdos como o de prender quem furta uma cebola, onde temos o desvalor da conduta e do resultado”.
Luiz Flávio Gomes em sensata observação prática diz: “Conseqüências práticas: ninguém pode ser preso em flagrante por fato absolutamente insignificante (por ser atípico). Ninguém pode ser processado por isso. O correto, portanto, em razão da atipicidade penal do fato, é arquivar o caso logo no princípio. O delegado faz um simples boletim de ocorrência e o promotor pede o arquivamento. E se o promotor denunciar ? Cabe ao juiz rejeitar a denúncia, com base no art. 43, I, do CPP (“a denúncia ou queixa será rejeitada quando o fato narrado evidentemente não constituir crime”). Tipo legal não é a mesma coisa que tipo penal. Subsunção formal não é adequação típica material. O Direito penal já não se coaduna com a dogmática formalista do século XX. Por força do princípio da intervenção mínima nem toda ofensa ao bem jurídico merece sanção penal. Os critérios de política criminal (intervenção mínima, por exemplo) fazem parte do Direito penal (Roxin). Esse é o novo Direito penal, que se mostra antagônico frente ao Direito penal formalista e literalista do século passado” .
Entretanto, apesar de todo o esforço doutrinário supra citado, e ainda, de adesão de parte da jurisprudência, verifica se que a atipicidade pela aplicação da princípio da bagatela ou ausência de pena pelo princípio penal da irrelevância do crime, ainda não são pacíficos de modo que, nota se, de maneira dividida na doutrina, no caso do crime de furto, que aqui utilizou se como pano de fundo, que para alguns o fato é atípico e para outros deve se aplicar a tese do furto privilegiado.
O art. 155, § 2º, do Código Penal Brasileiro estabelece que “se o criminoso é primário, e é de pequeno valor a coisa furtada, o juiz pode substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la de um a dois terços, ou aplicar somente a pena de multa”.
Dessa forma, observa se que, apesar do amplo reconhecimento doutrinário e até jurisprudencial dos princípios da bagatela e da irrelevância penal do crime, no crime de furto, que aqui tomou se como exemplo, não se admite, face a ausência de previsões legais a absolvição, levando se ao reconhecimento do previsto no parágrafo 2º, do artigo 155, do Código Penal (furto privilegiado – crime de menor potencial ofensivo).
Enfim, enquanto não houver previsão legal expressa sobre os princípios em epígrafe restaram dúvidas sobre o tema, de modo que, a aplicação do privilégio no crime de furto restará ao juiz, conforme prevê, o Código Penal Brasileiro, acarretando muitas prisões até que o juiz venha proferir sua decisão, acaso não se admita a aplicação de pronto da atipicidade de fatos diante do princípio da bagatela.
*Delegada de Polícia Civil