Direito Tributário

Reflexões sobre reforma tributária

Reflexões sobre reforma tributária

 

 

Kiyoshi Harada*

 

 

Antes de agitar a bandeira das reformas que, ultimamente, tomou conta do país é preciso diagnosticar corretamente as causas dos males que nos afligem. É imprescindível verificar se as motivações das reformas, se é que existem, decorrem dos textos constitucionais em vigor ou do seu descumprimento. Fala-se muito em necessidade de acabar com a casta dos marajás, mas a Carta Política de 1988 não permite a sua manutenção (art. 37, XI e art. 17 do ADCT). Apregoa-se a imperiosidade de redução dos quadros funcionais com a extinção da estabilidade, porém, a Carta Magna, desde a de 1934, proibe expressamente o ingresso no serviço público sem concurso de provas, e a Constituição em vigor não permite o comprometimento das receitas correntes em nível superior a 65%, a título de despesas com pessoal (art. 37, II e art. 38 do ADCT). Ser essas normas, introduzidas pela soberania da Assembleia Nacional Constituinte, vêm sendo ignoradas não é de se presumir que outras a serem enxertadas por via de Emendas serão respeitadas.

    

Assim, antes de falar em reforma tributária é preciso diagnosticar a realidade tributária de nosso país e detectar as causas de escassez de recuros financeiros, necessários à implementação dos objetivos do Estado. Todo esse rebuliço em busca de mais verbas, que se repete anualmentem, soa muito estranho para um país que ostenta a maior carga tributária do planeta, cerca de 50% do PIB (carga legal, consideradas a economia informal e a sonegação fiscal).

    

Se não levantármos as causas do permanente déficit público de nada adiantará fazer a reforma tributária. Seria o mesmo que empreender uma reforma administrativa como essa engendrada pelo Ministério da Administração que, em nome da modernidade, busca avançar para trás, para a idade média, transformando os servidores públicos em fieis vassalos que servem aos suseranos e não à nação, criando condições para a implantação de um Estado dominado pelos vícios do patrimonialismo, do nepotismo e do despotismo. É pública e notória a complexidade do nosso sistema tributário pois, de um lado, a Constituição Federal contemplou três entidades políticas tributantes com impostos privativos, de sorte a assegurar o princípio federativo e, de outro lado, contrastando com esse mesmo princípio instituiu o complicado e dispendioso mecanismo de participação dos Estados, DF e Municípios no produto de arrecadação dos impostos da União e participação dos Municípios no produto de arrecadação de impostos estaduais. Tudo poderia ser resolvido com a atribuição de competência impositiva a cada entidade política na proporção dos respectivos encargos, constitucionalmente atribuídos. Proposta nesse sentido não faltou. Mas não é apenas a complexidade, que se reflete no maior custo da fiscalização e arrecadação, a causa da falta de recursos financeiros. Exitem inúmeras outras. Examinemos as principais delas que são: os privilégios fiscais, o gigantismo do Estado, o orçamento megalomaníaco e a irregularidade de sua execução.

    

Os privilégios fiscais concedidos ao arrepio da lei e da Constituição representam uma sangria permanente aos cofres públicos, além de provocar efeitos éticos e morais negativos no seio dos contribuintes em geral, por ferir, às escâncaras, o princípio da generalidade da tributação, ofendendo o princípio da isonomia tributária. As estatais continuam gozando de privilégios fiscais contra expresso teor dos §§ 2º e 3º, do art. 173 da CF. A União vem mantendo e concedendo inúmeros incentivos fiscais (Embraer, Finan, Finor, Fiset, Funre, Befiex, Ibge, Contur, Basa, Pait, Sudepe, Embratur, Concex, Ibdf etc) que extrapolam dos limites constitucionais fixados no art. 151, I, sendo que muitas delas violam, também, o art. 41 e § 1º do ADCT. A legislação do imposto sobre a renda contempla uma quantidade incrível de incentivos para as pessoas jurídicas (mais de 40 implicando renúncia de cerca de 40% da receita), que vão desde os fantásticos fringe benefits, a exportação de produtos industrializados via Zona Franca de Manaus até os Benefícios Fiscais a Programas Especiais de Exportação, que vêm frequentando as manchetes de jornais por prática de fraudes. Felizmente os chamados fringe benefits, espécie de despesas com as mordomias que os empresários repassam para as empresas, sofreram um duro golpe com o advento da Lei nº 9.430/96. Os Estados-membros, por sua vez, vêm se utilizando, unilateralmente, de isenções, reduções e diferimentos com o objetivo de atrair o empresariado, promovendo uma verdadeira guerra tributária abalando o princípio de convivência harmônica dos entes federados. Na verdade, quem abre mão da receita tributária está sinalizando o descumprimento parcial da missão constitucional de promover o bem comum, através da prestação de serviços públicos gerais a serem financiados pelos impostos. Parece inacreditável, mas existem casos de renúncia à arrecadação por simples portaria secretarial, incidindo na prática do ato de improbidade administrativa previsto no inciso X, do art. 10 da Lei n. 8.429, de 2.6.92.

    

O gigantismo do Estado é outro fator responsável pela deficiência de verbas. Temos um Estado maior que a Nação pode suportar. Proliferam-se municípios criados por razões políticas, sem a menor condição de auto-sustentação econômico-financeira; existe uma quantidade enorme de Ministérios e Secretarias; multiplicam-se as superposições de órgãos que, ao invés de inter-agirem, cuidam do mesmo assunto e, não raras vezes, um desfaz o que o outro faz. Só para citar, no Ministério da Saúde existem a Fundação Nacional da Saúde e a Central de Medicamentos, que mantêm acirradas e ruidosas disputas nas vultosas compras de medicamentos. Assim fica difícil entender para que serve o Sistema Unificado de Saúde (SUS), que deveria unificar e descentralizar as ações federais na área da saúde, com o consequente repasse de verbas para os Estados e Municípios. Esse super Ministério foi o responsável pela reintrodução do antigo IPMF, agora, travestido de CPMF. (Ironicamente, após a criação da CPMF houve redução de dotação orçamentária na área da saúde). Já de longa data é conhecido o efeito imediato e infalível da macrocefalia: a inevitável ineficiência crônica, que tudo burocratiza, emperra, obstrui e desorganiza, impedindo a atuação regular dos órgãos e das instituições. Esse inchaço da máquina governamental não só dificulta a sadia administração, como também, pode ensejar práticas corruptivas. O bom desempenho de órgãos e instituições depende de uma boa administração. O problema não é de recursos financeiros, mas de um eficaz sistema de gerenciamento buscando a otimização dos recursos humanos e materiais existentes e, às vezes, é problema de polícia.

    

Outrossim, tradicionais orçamentos megalomaníacos tem sido a grande causa de nossa desorganização econômico-financeira. Quanto maior o orçamento maior o desperdício. Contudo, não se pode negar que as grandes estatais, criadas a partir da década de sessenta, à custa de desequilíbrios orçamentários, trouxeram benefícios inegáveis construindo uma eficiente infra-estrutura de serviços públicos, como nas áreas das hidroelétricas, dos correios, das telecomunicações etc. Entretanto, com o passar dos tempos aquelas estatais perderam os objetivos iniciais tornando-se ineficientes e dispendiosas. Hoje, elas se acham cercadas de interesses corporativistas de seus empregados, clientes e fornecedores como resultado de ingerências políticas na sua gestão. Não há receitas tributárias e creditícias que bastem para sustentar a voracidade dessas empresas do governo. Impõe-se a privatização acelerada de sorte a devolver ao setor privado os recursos financeiros necessários ao desenvolvimento da economia.

    

Enquanto o governo federal estiver municiando a ciranda financeira, absorvendo a poupança privada, com pagamento de juros escorchantes, parcela ponderável da sociedade continuará encontrando dificuldades na obtenção do dinheiro. Para baixar os juros não adianta apenas o discurso ou a vontade; é preciso apertar ao máximo o orçamento, ainda que, politicamente difícil e bastante penoso, nesta época de reformas e de reeleição. Mas é a vez de o governo tomar e sentir o gosto amargo do remédio que vem ministrando à população em geral ao longo desses anos. Feito isso, a economia se desenvolverá naturalmente e o dinheiro ficará facilmente ao alcance de todos. Como está é que não pode continuar, a menos que o objetivo das receitas tributária e creditícia se cicunscreva à remuneração do funcionalismo e ao pagamento do serviço da dívida. A dívida interna é um cancro que deve ser extirpado o mais rápido possível. Seus efeitos são bem mais danosos que os do empréstimo externo, em que o componente político sempre acaba predominando nas renegociações tendentes à redução e alongamento do perfil da dívida. Finalmente, a irregularidade na execução orçamentária, descumprindo ou contornando preceitos legais e constitucionais é outra causa da permanente escassez de recursos. De nada adianta aumentar a carga tributária se depois de arrecadados os tributos, estes são gastos irregularmente, ou generosamente distribuídos entre diferentes feudos, sem que haja uma fiscalização segura e eficiente. Uma das formas de dificultar a fiscalização e o controle externo, em matéria de execução orçamentária, consiste na criação de fundos. A Constituição de 1988 condicionou a instituição e funcionamento de fundos à disciplina da lei complementar (art. 165, § 9º, II ,) ainda não editada e o art. 36 do ADCT extinguiu, sob condição, os fundos até então existentes, com as exceções aí especificadas. Porém, contornando a proibição constitucional sobreveio a Emenda Constitucional de Revisão n. 1/94 (acrescentou os arts. 71, 72 e 73 ao ADCT) instituindo para os exercícios de 1994 e 1995 um enorme fundo, sob a pomposa denominação de Fundo Social de Emergência, composto de 20% do total da arrecadação de todos os tributos federais, bem como do produto de arrecadaçãode parcelas correspondentes ao aumento de vários impostos por leis especiais, através do espúrio mecanismo de enxertar novas disposições transitórias à Constituição Federal de 1988. Por conta desse fundo – instituído como sucedâneo da omissão imputável tanto ao Executivo como ao Congresso, que resultou na inaprovação do orçamento de 1994 – até lautos jantares, festas e recepções vêm sendo promovidos, como atestam as notícias veiculadas pela imprensa. Através do mesmo mecanismo, que beira as raias da insanidade, novos dispositivos transitórios foram enxertados na Carta Política aprovada há mais de oito, para prorrogar esse fundo, até junho de 1997, com o nome de Fundo de Estabilização Fiscal, conforme dispõe a Emenda nº 10/96. No momento o governo está estudando um outro nome para prorrogar esse fundo até o final do atual mandato. Já se falou em “Fundo de Reforma do Estado”.

    

Fundos significam resevas de certas receitas públicas para a realização de determinados objetivos ou serviços de interesse público. Ao contrário do que apregoam os seus defensores, representam uma exceção ao princípio que veda a vinculação de receita de impostos. Fogem do princípio da unidade de tesouraria, pelo qual todas as receitas públicas devem convergir para o Tesouro, para daí sairem apenas sob forma de pagamento de despesas consignadas no orçamento anual. Fácil, pois, verificar que representam um sério obstáculo, talvez insuperável, ao efetivo exercício, pelo Legislativo, do poder de fiscalizar e controlar a execução orçamentária (art. 70 de seguintes da CF). Em outras palavras, esse Fundo significa um cheque em branco para o Executivo gastar quando, onde e como quiser, independentemente do que está na lei orçamentária aprovada pela sociedade.

    

Se for para criar um fundo para isso ou para aquilo é o caso de se perguntar: para que serve o orçamento anual? Por acaso o orçamento não reflete o programa de ação governamental referendado pela sociedade? Para que existe a lei de diretrizes orçamentárias, traçando as metas e prioridades da administração pública federal, orientando a elaboração da lei orçamentária anual? Por outro lado, indispensável a modificação na estrutura do Tribunal de Contas para que o controle externo possa ser exercitado com eficiência e independência. O ideal seria integrá-lo ao Poder Judiciário como Corte especializada. É preciso, também, mudar essa cultura do descumprimento da Constituição. Se isso não for possível é preferível elaborar uma Constituição flexível a fim de que os doutores que elaboram os “pacotes econômicos” a partir de fatos concretos, casuísticos ou não, não tenham que se chocar sistematicamente com os rígidos princípios que norteiam, tradicionalmente, a nossa Carta Política.

    

Do exposto, verifica-se que não é o caso e nem o momento adequado para promover a Reforma Tributária, principalmente nos moldes preconizados pelo Projeto de Emenda nº 175/95, cujo único mérito consiste em aumentar a carga tributária e delegar mais poderes ao Executivo. Veremos os principais tópicos desse projeto. A União continua com cinco dos atuais sete impostos (perde o imposto de exportação e o ITR), ganha o ICMS federal, mantém a competência residual, agora sem maiores restrições e preserva o empréstimo compulsório que, agora, pode ser instituído e cobrado imediatamente. Os Estados permanecem com o imposto sobre transmissão causa mortis e doação de quaisquer bens e direito e o IPVA, além do ICMS estadual. Os Municípios continuam com o IPTU, ITBI e o ISS e ganham o ITR com as restrições preestabelecidas de forma a preservar o caráter instrumental para implementação da reforma agrária.

    

A fusão do IPI com o ICMS só pode resultar em mais impostos. Com a fusão, o IPI, que hoje tem a virtude de circunscrever a sua incidência sobre os artigos de luxo, fumos, bebidas alcoólicas e automóveis, se embutido no novo imposto, retornará aos primórdios do imposto sobre o consumo, quando até o caixão funerário ou o tamanco utilizado pelo caboclo eram tributados. Trará, também, problemas decorrentes do sistema de consórcio na administração, fiscalização e arrecadação do novo ICMS, que passará ter uma alíqusota federal e outra estadual, acabando com a única vantagem virtual da fusão, que seria a desburocratização.

    

O Projeto de Emenda desperdiçou a oportunidade de simplificar o Sistema Tributário e conferir-lhe maior transparência. São mantidos, de um laod, inúmeros impostos privativos, de dispendiosa arrecadação, em prejuízo de impostos de base tributária mais ampla e de baixo custo operacional e, de outro lado, o complexo e caro mecanisjmo de repartição das receitas tributárias, fruto da quebra do princípio federativo da eqüidade tributária. Perdeu-se a oportunidade de banir os chamados incentivos fiscais em confronto com o princípio da neutralidade econômica, de discutível vantagem para a sociedade em geral, quase sempre palco de procedimentos fraudulentes e fonte permanente de atos de corrupção, além de responsáveis por guerras tributárias entre os Estados-membros.

     

A solução para a crise crônica que vem atravessando o País não está na Reforma Tributária, nem na Reforma Administrativa e nem na Reforma de coisa alguma. Está na necessidade de trabalhar, de construir o país com os instrumentos de que dispomos. Está no aperto orçamentário, na obediência à ordem jurídica, na correta execução orçamentária, na supressão de privilégios fiscais e na transferência de encargos da União para os Estados e Municípios, aquinhoados pela Constituição de 1988 com fatias maiores do bolo tributário. Se alguma revisão constitucional está a merecer, na conjuntura atual, não seria na área do Direito Tributário, mas na área do Direito Financeiro, onde se insere a questão da repartição do produto da arrecadação tributária. Não pode e nem deve o Congresso Nacional continuar atuando como sucedâneo da ineficiência do Executivo, transformando-se em órgão arrecadador de tributos por atacado, votando e aprovando leis tributárias casuísticas e de efeito concreto, ou, de natureza temporária, como a famigerada CPMF. Uma Reforma Tributária deve partir de um projeto elaborado com a participação dos representantes dos Estados e Municípios e dos seguimentos representativos da sociedade, objetivando a simplificação do sistema tributário e principalmente a redução de alíquota marginal a ser compensada com o incrementoda alíquota média, via expansão da base tributária. Com o governo federal – inteiramente absorvido pela operação “tapa-buraco” e ainda, acuado por alguns de seus ministros que querem mais verbas, a todo custo, mexendo, remexendo e inovando a política governamental espelhada no orçamento em curso – funcionando como principal condutor do processo nada de significativo pode-se esperar em termos de uma reforma tributária fundada em princípios éticos e morais para ser justa e duradoura.

 

 

* Advogado tributarista, Professor de Direito Financeiro, Tributário e Administrativo

  Diretor da Escola Paulista de Advocacia e Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

 

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Como citar e referenciar este artigo:
HARADA, Kiyoshi. Reflexões sobre reforma tributária. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-tributario/reflexoes-sobre-reforma-tributaria/ Acesso em: 04 out. 2024