Pacote fiscal e prorrogação do Fundo de Estabilização Fiscal – FEF
Kiyoshi Harada*
Os R$15.823 bilhões que se pretende arrecadar com o pacote fiscal poderiam ser obtidos com a simples supres- são de odiosos incentivos fiscais, outorgados ao arrepio dos princípios da universalidade e da generalidade da tributação. Todos têm que aprender a conviver com o encargo tributário imposto à sociedade em geral. O princípio da igualdade exige isso.
Causa profunda estranheza e perplexidade a anúncio, de um lado, do pacote fiscal impondo aos exaustados contribuintes uma violenta carga tributária como única alternativa para zerar o déficit público e, de outro lado, externar a intenção do governo de prorrogar, até o ano 2006, o chamado Fundo de Estabilização Fiscal, que implica supressão parcial do mecanismo de fiscalização e controle dos gastos públicos a cargo do Congresso Nacional, com o auxílio do Tribunal de Contas da União.
Fundo significa reservas de receitas públicas para a realização de determinados objetivos ou serviços de interesse público, sem o detalhamento das despesas, como acontece com o orçamento anual. Representa uma exceção ao princípio que veda a vinculação de receita de impostos. Foge do princípio da unidade de tesouraria, pelo qual todas as receitas públicas devem convergir para o Tesouro, para daí sairem apenas sob forma de pagamento de despesas consignadas no orçamento anual. Fácil, pois, verificar que representa um sério obstáculo, talvez insuperável, ao efetivo exercício, pelo Legislativo, do poder de fiscalizar e controlar a execução orçamentária. Por isso a Constituição cidadã de 1988, através do art. 36 do ADCT, extinguiu, sob condição, com as ressalvas aí previstas, todos os fundos até então existentes. Por outro lado, condicionou a criação de novos fundos à prévia disciplinação pela lei complementar quanto as condições para a sua instituição e funcionamento (art. 165, § 9º, II da CF).
Não existe, ainda, lei complementar a respeito. Por tal razão o gigantesco Fundo Social de Emergência – FSE – para vigorar nos exercícios de 1994 e 1995, composto de 20% de tributos federais, foi criado pela Emenda Revisional de nº 1/94, dispensando os requisitos constitucionais expressos (arts. 165, § 9º, II e 167, IX). Compreensível foi esse exercício de imaginação criadora em face da crise político-institucional, sem precedentes, que havia tomado conta do País, impedindo a votação e aprovação do orçamento anual. Acostumado com as facilidades das despesas o governo vem patrocinando, com sucesso sem igual, a prorrogação desse Fundo, perenizando aquilo que surgiu em uma situação emergencial, tal qual o IPMF. A Emenda nº 10/96 prorrogou-o até junho de 1997, como o nome de Fundo de Estabilização Fiscal, conceito tão amplo e nebuloso quanto o anterior. Nova Emenda, a de nº 17/97, prorrogou esse mesmo Fundo para até 31 de dezembro de 1999. Fala-se, agora, em mantê-lo até o ano 2.006, desta vez, recheado em seu conteúdo, ou seja, esse Fundo passaria a ser composto por 40% do total de tributos federais. Isso daria ao Chefe do Executivo a bagatela de R$67.700 bilhões, muito mais do dobro do que o País pretende obter do FMI, a serem gastos sem maiores explicações, discricionariamente quando não abusivamente. O engraçado disso tudo é que o seu anúncio veio embutido no elenco do pacote fiscal que viria para equilibrar o déficit público, agravado por fatores externos. Na verdade, a estrutura da Federação Brasileira implica necessariamente em situação dificitária permanente. E mais, os R$15.823 bilhões que se pretende arrecadar com o pacote fiscal poderiam ser obtidos com a simples supressão de odiosos incentivos fiscais, outorgados ao arrepio dos princípios da universalidade e da generalidade da tributação. Todos têm que aprender a conviver com o encargo tributário imposto à sociedade em geral. O princípio da igualdade exige isso.
Esse fundo contraria em bloco os dispositivos constitucionais pertinentes à Administração Pública e à matéria financeira. Atenta contra os princípios da razoabilidade, da moralidade e da publicidade (art. 37 da CF); dribla o art. 165, § º, II da CF e infringe o art. 167, IV e IX; contraria o princípio da quantificação dos créditos orçamentários inserto no art. 167, VII; violenta o princípio da fixação prévia das despesas que está previsto no art. 167, II. Ademais, esvazia, em parte, o conteúdo do art. 70 da CF, que comete ao Congresso Nacional a importantíssima missão de fiscalizar e controlar os gastos públicos, ferindo de morte o princípio da legitimidade que deve presidir o controle sob o prisma da legalidade e da economicidade da execução orçamentária e financeira. Por derradeiro, susta parcialmente os efeitos dos artigos 158, II e 159 da CF implicando diminuição de repasses de verbas federais aos Estados e Municípios. Isso compromete o trabalho de saneamento financeiro das entidades políticas regionais e locais, ferindo o princípio federativo, que se constitui em cláusula pétrea. Da mesma forma, implica burla ao art. 212 da CF, que determina aplicação do percentual mínimo de 18% da receita na manutenção e desenvolvimento do ensino, assim como, representa esvaziamento do art. 239 e seu § 3º, que vinculam os recursos do PIS ao programa de seguro-desemprego e ao pagamento de abono aos assalariados de baixa renda. Ora, isso contraria a própria filosofia que inspirou a instituição, em 1994, do Fundo de Emergência Social.
Como é possível, através do expediente de enxertar disposições transitórias à Constituição de 1988, violentar tantos dispositivos permanentes da mesma Carta Magna? O objetivo de sanear as finanças públicas e estabilizar a economia – uma obrigação do Estado – deve ser buscado e concretizado com a implementação da política governamental a ser custeada por verbas detalhadamente fixadas na lei orçamentária anual, aprovada pelo Parlamento Nacional e que, por isso mesmo, representa não só a vontade média da população, como também, aquele orçamento se constitui no instrumento de exercício da cidadania. O Fundo de estabilização Fiscal é a antítese dos objetivos perseguidos pelo pacote fiscal.
Não pode o Congresso Nacional, desta vez, concordar com o auto-esvaziamento da sua sagrada missão indelegável de fiscalizar e controlar a execução orçamentária em nome da sociedade, o que ocorrerá se prorrogado, novamente, esse Fundo de Estabilização Fiscal que, na verdade, vem causando desequilíbrios orçamentários até nas esferas estaduais e municipais.
* Advogado tributarista, Professor de Direito Financeiro, Tributário e Administrativo
Diretor da Escola Paulista de Advocacia e Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.
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