Imunidade do idoso antes e depois da EC nº 20/98
Kiyoshi Harada*
A controvérsia acerca da imunidade da pessoa maior de sessenta e cinco anos de idade agravou-se com o advento da EC nº 20/98, que revogou o inciso II, do § 2º, do art. 153 da CF que assim dispunha:
“II – não incidirá, nos termos e limites fixados em lei, sobre rendimentos provenientes de aposentadoria e pensão, pagos pela previdência social da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, a pessoa com idade superior a sessenta e cinco anos, cuja renda total seja constituída, exclusivamente, de rendimentos do trabalho”.
Nota-se, por esse dispositivo, que a Constituição cidadã de 1988, colocou as pessoas com mais de sessenta e cinco anos de idade sob a proteção da imunidade do imposto sobre a renda, mas, condicionando, desde logo, à inexistência de outros rendimentos auferidos pelo beneficiário que não sejam exclusivamente os do trabalho. Outrossim, o gozo da imunidade ficou circunscrito aos limites e condições a serem fixados em lei (complementar). Trata-se de constitucionalização de privilégio fiscal, que já vinha sendo concedido pelo legislador ordinário, só que, agora, elevado à categoria de imunidade.
A revogação desse dispositivo constitucional pela Emenda nº 20/98 em nada mudou, como veremos ao final deste estudo.
Realmente, antes do advento da imunidade tributária em questão já dispunha o art. 6o, inciso XV da Lei nº 7.713/88 que ficam isentos do imposto de renda:
“XV – os rendimentos provenientes de aposentadoria e pensão, transferência para a reserva remunerada ou reforma, pagos pela Previdência Social da União, Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, até o valor equivalente a cinqüenta OTNs, a partir do mês em que o contribuinte completar sessenta e cinco anos de idade, sem prejuízo da dedução da parcela isenta prevista no art. 25 desta Lei;
No uso de sua competência legislativa a União concedeu isenção subjetiva aos aposentados, pensionistas e militares reformados, com mais de 65 anos de idade, até o limite de 50 OTNs. Esse limite de 50 OTNs, posteriormente, sofreu ampliação para 1.000 (hum mil) UFRs sem prejuízo da dedução da parcela isenta, que passou a ser de 12.000 UFRs, conforme. art. 16 da Lei nº 8.383/91. À época do advento do diploma legal em questão a União, titular da competência impositiva do imposto sobre a renda poderia, atendendo ao interesso público, conceder essa isenção estabelecendo limites e condições que entendesse convenientes ou oportunas, respeitados, obviamente, os princípios constitucionais tributários, notadamente o princípio da isonomia.
Acontece que essa regra isentiva, que estava no art. 6o, XV retro mencionado, foi constitucionalizado, com pequena alteração, conforme se depreende do inciso II, do § 2º, do art. 153 da CF de início transcrito.
A expressão “não incidirá”, constante daquele texto, não pode ser interpretada como sinônima de “ficará isenta” ou “ficam isentos”, pois não é missão do legislador constituinte decretar a isenção, que o CTN considera como hipótese de exclusão do crédito tributário (art. 175, I). Por isso é unânime a doutrina em considerar como hipóteses de imunidade os diversos casos de isenção, previstos na Carta Magna, atribuindo o emprego de uma expressão pela outra à falta de conhecimento jurídico do legislador constituinte, que é homem comum do povo.
Saber se o excedente a 1000 UFIRs está ou não sujeito à tributação pelo imposto sobre a renda resume-se na definição da natureza da regra prevista no inciso II do § 2o, do art. 153 da CF. Se a aludida norma configurar isenção, o benefício há de ater-se aos limites fixados na Lei nº 7.713/91, sendo tributável o excedente àquele limite. Se se entender que se cuida de imunidade não há que se falar em tributação do excedente, por isso não está no texto constitucional.
Convém, pois, precisar o conceito de imunidade. Para nós imunidade é um instituto de natureza constitucional representando restrição ao exercício do poder de tributar. As entidades políticas já recebem a competência impositiva com a proibição de instituir impostos em relação a certos bens, rendas, serviços ou pessoas. A imunidade implica proibição constitucional voltada ao legislador ordinário. A própria outorga de competência, com a discriminação de impostos cabentes a cada entidade política, já é uma limitação de competência. Por isso, a imunidade configura, na verdade, uma sublimitação do poder de tributar.
Autores existem que consideram a imunidade como hipótese de “não incidência” constitucionalmente qualificada, em contraposição à isenção, que seria hipótese de não incidência legalmente qualificada. Criticam-se tal conceituação quer porque a “não incidência” é o fato de o objeto estar fora do campo da incidência tributária, quer porque a “não incidência” seria mero efeito da imunidade tributária. No primeiro caso, a crítica confunde “não incidência” pura (fato de o objeto estar fora do campo de tributação) com a “não incidência” juridicamente qualificada. Da mesma forma, na segunda crítica, também, confunde-se a “não incidência”, enquanto regra jurídica com a incidência do tributo sobre determinado fato tipificado, que ocorreria não fora a regra constitucional em sentido contrário.
Finalmente, alguns juristas de renome contrariam a terceira conceituação de imunidade como limitação ao poder de tributar, alegado que não há supressão ou limitação da competência tributária, que já vem com as demarcações fixadas na Constituição. Em outras palavras, não existiria outorga prévia de competência tributária para, ao depois, ser excluída ou suprimida. A competência tributária já nasceria com limitação. Ora, o entendimento de que a outorga da competência impositiva é feita com limitações, resulta exatamente do reconhecimento da coexistência de princípios constitucionais tributários, dentre os quais o da imunidade. Não fora o princípio da imunidade, o da legalidade, o da isonomia etc., a competência tributária seria bem mais ampla. Donde, absolutamente correta a conceituação de imunidade como limitação constitucional ao poder de tributar.
Qualquer que seja a conceituação o certo é que o legislador ordinário não poderia instituir imposto em relação às pessoas, bens, rendas ou serviços declarados imunes. E para declarar a imunidade a Constituição Federal adota várias expressões : “é vedado instituir impostos”; “não incidirá o imposto” etc.
Do exposto, conclui-se que a regra do inciso II do § 2o do art. 153 da Constituição Federal refere-se à imunidade dos proventos e pensões percebidos por pessoas com mais de 65 anos de idade, que não tenham outros rendimentos que não os do fator trabalho. Logo, a expressão “nos termos e limites fixados em lei” aí prevista só pode se referir à lei complementar, conforme prescreve o art. 146, II da CF, in verbis:
“Art. 146 – Cabe à lei complementar:
…………………………………………………
II – regular as limitações constitucionais ao poder de tributar”.
Sendo a imunidade uma das formas de limitação do poder de tributar, ela só pode ser regulada por lei complementar, por expressa determinação do já referido art. 146, II da CF. Regular significa disciplinar a imunidade preexistente. Pressupõe uma limitação já existente. O legislador complementar não pode, a pretexto de regular, restringir nem ampliar a imunidade constitucionalmente estabelecida. Muito menos cabe à lei ordinária inovar no campo das limitações. Logo, por ora, os requisitos são apenas os previstos no art. 14 do CTN que, entretanto, só se aplicam em relação às pessoas jurídicas imunizadas. Em relação às pessoas físicas inexistem, até agora, os termos e limites fixados em lei complementar para a fruição dessa imunidade tributária.
Com a entrada em vigor do novo sistema tributário, em 1o de março de 1989 (art. 34 do ADCT), ficou derrogada a Lei nº 7.713/88.
Consequentemente, aqueles rendimentos dos idosos, referidos na norma constitucional retro transcrita, são imunes do imposto sobre a renda, descabendo a cogitação de sua incidência sobre a parcela excedente a 1000 UFRs, pois, sabidamente, o texto constitucional sob exame não impôs esse limite.
Ocorre que a Emenda Constitucional nº 20/98, que aprovou a Reforma Previdenciária, pelo seu art. 16, revogou expressamente a imunidade em exame. Todavia, esse art. 16 é de manifesta inconstitucionalidade por ferir cláusula pétrea (art. 60, § 4º, inciso IV da CF). A imunidade outorgada pela Carta Política de 1988 configura garantia individual não podendo ser suprimida por meio de Emenda, que não tem o poder de desconstituir. Emenda não é o mesmo que constituir. É ela norma subalterna à norma constitucional. Os princípios fundamentais consagrados pela Assembléia Nacional Constituinte de 1988, representante soberana do povo brasileiro, não podem se desrespeitados pelo Congresso Nacional, que não tem poderes para tanto.
Essa questão já restou pacificada no STF quando foi decretada a inconstitucionalidade do § 2º, do art. 2º da Emenda Constitucional nº 3, de 17-3-93, que autorizou a instituição do IPMF, sem observância do “art. 150, III, b, e VI…da Constituição”, isto é, sem aplicação do princípio da anterioridade e sem respeito aos princípios da imunidade recíproca e genérica. A Corte Suprema entendeu, acertadamente, que os princípios da anterioridade e da imunidade recíproca e genérica constituem normas imutáveis, porque destinados à garantia individual (art. 150, III, a e VI, b, c, e d da CF) e à garantia da Federação (art. 150, VI, a da CF). Em conseqüência, foi declarada inconstitucional, também, a Lei Complementar nº 77, de 13-7-93, instituidora do imposto, sem redução de textos, naquilo que contrariava os princípios constitucionais apontados (Adin 939-DF, Rel. Min. Sydney Sanches, Trib. Pleno, DJ de 18-3-94, p. 05165).
Positivamente, a Emenda nº 20/98 em nada alterou a matéria sob comento. Os rendimentos de aposentadoria e pensão percebidos por pessoas com idade superior a sessenta e cinco anos, que estavam sob a proteção do art. 153, § 2º, II da Constituição Federal, continuam imunes. A Emenda não tem o poder de afrontar o direito adquirido. Só uma constituinte original, legitimado pela soberania popular, poderia, em tese, aniquilar o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.
* Advogado e professor de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário, Diretor da Escola Paulista de Advocacia e Ex-Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica da
Procuradoria Geral do Município de São Paulo.
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