Comentários ao Decreto Estadual SP 52.364/07 – A Antiga Discussão sobre a Legalidade/ Constitucionalidade da Substituição Tributária
Patrícia Leati Pelaes*
Sob a justificativa de reforçar a política de desenvolvimento econômico e social do Estado e contribuir na competitividade da economia paulista, o Governo Estadual publicou, no último dia 14, o Decreto nº 52.364/07, introduzindo alterações no Regulamento do ICMS para incluir no regime da substituição tributária do imposto, dentre outros produtos, os medicamentos classificados nas posições 3003 e 3004.
A proposta não é novidade e tampouco causa surpresa aos contribuintes, uma vez que desde julho do corrente ano o Estado tem adotado, especificamente para os Estados de Alagoas e Mato Grosso do Sul, regime de substituição tributária semelhante ao estabelecido pelo Convênio ICMS nº 76/94, sinalizando, desde então, sua intenção de aplicar referido instrumento de política tributária como meio de simplificação das obrigações tributárias na arrecadação do ICMS.
Inquietante, entretanto, é a questão que se coloca: se o objetivo dos Estados e do Fisco Federal com a entrada em vigor e obrigatoriedade de aplicação das regras que tratam do SPED Fiscal (Sistema Público de Escrituração Digital) é justamente a alteração/substituição da sistemática atual do cumprimento das obrigações acessórias transmitidas pelos contribuintes às administrações tributárias – de emissão de livros e documentos contábeis e fiscais em papel – por documentos eletrônicos com certificação digital, garantidos pela integridade e validade jurídicas, qual a necessidade de aplicação da substituição tributária como meio de acautelar o poder tributante?
De fato, a justificativa declarada do Governo Paulista para a adoção da substituição tributária no Estado é o reforço na arrecadação e simplificação de procedimentos por meio da cobrança antecipada do imposto, afastando a possibilidade de ocorrência de evasão e sonegação fiscais de forma a favorecer a competitividade da economia paulista.
Tal justificativa, todavia, perde a razão com o potencial fiscalizador entregue nas mãos dos entes arrecadadores com a entrada em vigor do SPED Fiscal, uma vez que, além de implicar em que todas as informações fornecidas pelos contribuintes serão passíveis de cruzamento, tornando-se instrumentos e meios de prova para a identificação de ilícitos tributários, a conseqüência direta desse novo procedimento será o incremento da arrecadação.
Uma vez, entretanto, que o Decreto foi editado, com a sua entrada em vigor determinada para o dia 1º de janeiro de 2008, importa verificar a forma em que será efetuada a substituição tributária.
No que interessa à indústria farmacêutica, o Decreto nº 52.364/07 acrescenta no Regulamento os artigos 313-A e 313-B que tratam da substituição tributária nas saídas internas de medicamentos, classificados nas posições 3003 e 3004 da NBM/SH. O inciso I do art. 1º do Decreto está assim redigido:
“SEÇÃO XI
DAS OPERAÇÕES COM MEDICAMENTOS
Artigo 313-A Na saída de medicamentos classificados nas posições 3003 e 3004 da Nomenclatura Brasileira de Mercadorias – Sistema Harmonizado – NBM/SH com destino a estabelecimento localizado em território paulista, fica atribuída a responsabilidade pela retenção e pelo pagamento do imposto incidente nas saídas subseqüentes (Lei 6.374/89, arts. 8º, XIV, e 60, I):
I – a estabelecimento de fabricante ou de importador ou a arrematante de mercadoria importada do exterior e apreendida, localizado neste Estado;
II – a qualquer estabelecimento localizado em território paulista que receber mercadoria referida neste artigo diretamente de outro Estado sem a retenção antecipada do imposto.
Parágrafo único. Na hipótese do inciso II:
1 – o imposto incidente na operação própria e nas subseqüentes será pago no período de apuração em que tiver ocorrido a entrada da mercadoria no estabelecimento, com observância do disposto no artigo 277;
2 – na saída da mercadoria do estabelecimento será emitido documento fiscal nos termos do artigo 274 e escriturado o livro Registro de Saídas na forma do artigo 278;
3 – no tocante ao imposto pago de acordo com o item 1, aplicar-se-á o disposto no inciso VI do artigo 63 e no artigo 269.
Artigo 313-B Para determinação da base de cálculo, em caso de inexistência do preço final a consumidor, único ou máximo, autorizado ou fixado por autoridade competente, ou do preço final a consumidor sugerido pelo fabricante ou importador, aprovado e divulgado pela Secretaria da Fazenda, o percentual de margem de valor agregado previsto no artigo 41 será o Índice de Valor Adicionado Setorial – IVA-ST, calculado e divulgado pela Secretaria da Fazenda com base nas informações prestadas pelos contribuintes (Lei 6.374/89, arts. 28 e 28-A, na redação da Lei 12.681/07, art. 1º, II e III, e arts. 28-B e 28-C, acrescentados pela Lei 12.681/07, art. 2º, II e III).” (NR).
O Decreto estabelece a responsabilidade pela retenção e recolhimento do imposto devido nas operações subseqüentes ao industrial, ao importador, ao arrematante ou a qualquer estabelecimento localizado em território paulista que receber mercadorias sem que tenha ocorrido a retenção antecipada do imposto, especialmente quando a mercadoria for recebida de outro Estado.
Como já adiantado, o Estado de São Paulo timidamente já vinha aplicando a substituição tributária nas operações com medicamentos, determinando a retenção antecipada do imposto nas operações interestaduais praticadas com estabelecimentos distribuidores localizados em Mato Grosso do Sul e Alagoas, mesmo sem ter aderido ao Convênio ICMS nº 76/94.
Agora, explicitamente determina a substituição tributária nas operações internas praticadas no Estado, que envolvam estabelecimentos fabricantes, importadores ou quaisquer estabelecimentos aqui localizados que recebam produtos farmacêuticos de outros Estados sem a retenção antecipada do imposto e promovam subseqüentes saídas.
A intenção é, claramente, a de garantir a arrecadação, uma vez que, seja nas saídas interestaduais (ainda que apenas para dois Estados da Federação), seja nas internas, a responsabilidade pela retenção e recolhimento antecipado do imposto é do contribuinte paulista.
Obviamente tal responsabilidade pela retenção implica em outras obrigações. Assim, na hipótese do incido II do art. 313-A, o contribuinte substituto, quando adquirir mercadorias de outro Estado sem a retenção do imposto, além de ser responsável pelo pagamento de suas operações próprias, deverá recolher o ICMS das operações subseqüentes, tendo de cumprir todas as obrigações acessórias decorrentes dessas operações, prescritas no art. 277 do RICMS. E também o substituído assume a responsabilidade de emitir notas fiscais e escriturar seus livros de acordo com o estatuído nos arts. 274 e 278.
O acúmulo de obrigações acessórias para o cumprimento do papel de responsável tributário pelo substituto, de um lado, e do substituído, de outro, a propósito, torna evidente, mais uma vez, a contrariedade da intenção do Governo Estadual expressa no Decreto ora analisado com os objetivos propostos pelo SPED Fiscal, que visa justamente a simplificação das obrigações acessórias dos contribuintes.
Outro aspecto negativo da substituição tributária, ainda, diz respeito à definição da base de cálculo do imposto. A retenção antecipada nem sempre vem acompanhada da certeza da realização do fato gerador e da precisão do montante a ser utilizado como base de cálculo do imposto. A base de cálculo para retenção dessas operações posteriores é sempre um valor presumido ou arbitrado.
No caso da indústria farmacêutica, o Convênio ICMS nº 76/94, para as operações interestaduais, assim como o art. 41 do RICMS/SP, determinam que o valor a ser usado como base de cálculo nas operações futuras é o valor indicado pelo fabricante como o preço máximo de venda ao consumidor final (PMC), fixado pela CMED. Ocorre que, na prática, o valor de venda para o consumidor final pode ser bem inferior ao presumido no momento da antecipação do tributo, acarretando o recolhimento de valores maiores dos que o efetivamente devido ao Fisco estadual.
Por esse motivo o § 7º do art. 150 da Constituição Federal assegura ao substituto tributário a restituição da quantia paga a maior na hipótese de retenção do imposto calculado com base de cálculo presumida.
Talvez por esse motivo, também, o Governo Paulista tem tido a prudência de autorizar o creditamento do imposto recolhido antecipadamente, ainda que o fato gerador não venha a ocorrer (nos termos no inciso VI do art. 63, RICMS), e prever o ressarcimento do imposto retido a maior (conforme disposto no art. 269), hipóteses previstas também nesse Decreto.
Embora autorize o ressarcimento, porém, o Governo não confere a melhor das alternativas para o contribuinte fazer prova de que o preço praticado efetivamente não corresponde à base de cálculo utilizada na substituição, e mesmo a adoção de um percentual de margem de valor agregado baseado no Índice de Valor Adicionado Setorial – IVA-ST, calculado com base nas informações prestadas pelos contribuintes não se apresenta convincente para se chegar ao valor real da base de cálculo do imposto.
Resta evidente, por tais motivos, que a adoção da substituição tributária nas operações com produtos farmacêuticos tem por objetivo satisfazer unicamente os interesses fazendários, como declaradamente apontado nas intenções do Ofício GS-CAT nº 495/2007, que explicitou a sistemática da substituição como meio de reforçar a arrecadação, sob o pretexto de melhorar a política de desenvolvimento econômico do Estado e a competitividade da economia paulista, ainda que para tanto os direitos constitucionalmente assegurados aos contribuintes de garantia da estrita legalidade, de não confisco, entre outros, sejam menosprezados.
* Advogada
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