A Constituição Brasileira, com 250 artigos de disposições permanentes, 95 de disposições transitórias e 62 emendas – das quais 56 originárias de processo ordinário e 6 da revisão de 1993 – tem sido considerada uma Constituição demasiadamente pormenorizada, com inúmeros artigos que não mereceriam encontrar-se num texto supremo – como, por exemplo, o artigo 242 § 2º, que impõe a permanência do Colégio D. Pedro II, no Rio de Janeiro, na órbita federal.
Apesar de prenhe de defeitos, seu mérito maior, todavia, em face da absoluta liberdade que os constituintes tiveram para a discussão de um modelo de lei fundamental, foi o de ter criado um sistema em que o equilíbrio de Poderes é inequívoco. Em nenhum texto anterior (1824, 1831, 1934, 1937, 1946 e 1967, com suas emendas) tal realidade revelou-se de maneira tão nítida como no de 1998. Nem mesmo Estados Unidos, pátria do presidencialismo, segue a teoria da tripartição dos poderes de Montesquieu, – que a própria França não hospeda – com separação tão nítida como no Brasil, nada obstante o instituto das medidas provisórias ofertar impressão diversa.
Deve-se tal equilíbrio ao fato de que toda a formatação da nossa lei maior tem sido para um sistema parlamentar de governo, ideal frustrado nas discussões finais do texto, em plenário da Constituinte, com o que alguns dos mecanismos de controle dos poderes, próprios do parlamentarismo, remanesceram no texto brasileiro. A própria medida provisória, cujo teor foi, quase por inteiro, cópia da Constituição de um país parlamentarista (a italiana), demonstra que a mudança do “rumo dos ventos”, no plenário da Constituinte, não foi capaz de alterar o espírito que norteara as discussões nas Comissões, até então.
Creio que a solução não foi ruim.
Criou-se um Poder Judiciário, como guardião da Constituição (artigo 102), que tem exercido com plenitude tal função, evitando distorções exegéticas que poderiam pôr em risco a democracia no País; um Poder Legislativo, com poderes reais de legislar, não poucas vezes tendo rejeitado medidas provisórias do Executivo; e um Poder Executivo, organizado dentro de parâmetros constitucionais, que lhe permitem adotar as medidas administrativas necessárias para que o País cresça e viva plenamente o regime democrático, sem tentações caudilhescas por parte de seus presidentes.
Por esta razão, nestes vinte anos, O Brasil conheceu um “impeachment” presidencial, superinflação –não hiperinflação, que sempre desorganiza as economias- escândalos como dos anões do congresso e do mensalão, alternância do poder e jamais, aqui, se falou em ruptura institucional, numa demonstração de que as instituições funcionam bem. Os três Poderes, nos termos do art. 2º da lei suprema, são “independentes e harmônicos”.
Este equilíbrio inexiste em nossos vizinhos. A Constituição Venezuelana, com seus 350 artigos e 18 disposições transitórias, além de uma disposição final, de rigor, apesar de mencionar 5 Poderes, hospeda um apenas, visto que o poder judiciário, o ministério público e o poder legislativo são poderes acólitos do Executivo e o quinto poder, o povo, manipulável pelo Executivo.
Assim é que, no seu artigo 236, admite, pelo inciso 22, que não só pode o presidente convocar “referenduns”, como, pelo inciso 21, dissolver a Assembléia Nacional, sobre ter, pelo inciso 8, o direito de governar, sem a Assembléia Nacional, por meio de leis habilitantes.
No Brasil, o plebiscito e o referendo são convocados pelo congresso nacional (art. 14 incisos II e III) e o presidente de República, não tem, entre suas competências (art. 84), o poder de dissolver o congresso.
Ao contrário, o presidente da república pode sofrer o “impeachment” (arts. 85 e 86) do congresso nacional, sendo, neste particular, uma Constituição em que o Legislativo tem força para afastar o presidente da República, mas o presidente não tem forças para dissolver o congresso.
Como se percebe, o modelo venezuelano é de um poder só, o presidencial, o que tem levado o caudilho Hugo Chávez a abusos crescentes, mediante cerceamento da liberdade de expressão, com fechamento de emissoras de TV e redes da oposição, convocações de referendos, que manipula a ponto de não permitir, nos mesmos lugares em que faz comícios para defender seus pontos de vista, que a oposição se utilize daqueles mesmos espaços para expor as suas idéias.
O modelo venezuelano de um só poder, o que vale dizer, de um Executivo forte e legislativo e judiciário subordinados, lastreia-se nas lições de um grupo de professores socialistas da Espanha (CEPES) segundo o qual apenas dois poderes são democráticos: o povo e o seu representante no executivo. Por isto, reduz os outros poderes à função servil e sugere consultas populares permanentes –altamente manipuláveis por quem está no comando – a guisa de dar legitimidade ao único poder
efetivo, que é o do presidente executivo.
O modelo socialista, que Chávez chama de “bolivariano”, foi seguido também pelo Equador, na sua Constituição de 444 artigos, 30 disposições transitórias, 30 de um regime de transição com uma disposição final. Por ela, pode o presidente da República dissolver a Assembléia Nacional, se ela atrapalhar o Plano Nacional de Desenvolvimento do presidente ou se houver uma grave crise política ou comoção interna (art. 148), passando o Presidente da República a dirigir sozinho o país, convocando novas eleições.
Poderá a Assembléia Nacional (art. 130) destituir o Presidente da República, mas neste caso, também se dissolverá, convocando-se, no prazo máximo de 7 dias, eleições gerais presidenciais e legislativas. Em outras palavras, o presidente da República pode dissolver a Assembléia Nacional, sem perder o cargo, mas a Assembléia Nacional, se destituir o presidente, também estará se destituindo!!!
Não é diferente a Constituição boliviana, com 411 artigos e 10 disposições transitórias, com uma disposição derrogatória e outra final. Aqui, o artigo 182 torna o regime mais perigoso, pois o Tribunal Superior de Justiça terá seus magistrados eleitos por sufrágio universal por 6 anos. Vale dizer: o poder judiciário, que é um Poder Técnico, passa a ter seus integrantes eleitos pelo povo e sem as garantias mínimas necessárias para exercer suas funções com imparcialidade!!! E o pior, com mandato de 6 anos, muito embora não possam ser reeleitos seus juízes. Normalmente, os poderes políticos, numa real democracia –e não na simulação de democracia dos 3 países analisados- são o Poder Executivo e o Legislativo. Suas forças se equivalem, não existindo apenas um poder forte, o Executivo, e um fraco o Legislativo. O Poder Judiciário é sempre um poder técnico, vale dizer, um poder cuja função é a preservação da lei produzida pelo legislativo. Por esta razão, é que, nas verdadeiras democracias, o povo não participa diretamente na sua escolha e de seus membros. Transformar o poder Judiciário em poder eletivo é tirar-lhe a individualidade e neutralidade, levar o magistrado a ter que fazer campanha política para ter o seu nome sufragado universalmente!
Perde, pois, o país a seriedade que deveria ter a Suprema Corte, nas suas decisões, para amalgamar os 3 poderes num só, em prol de uma força maior outorgada ao Executivo, à semelhança das Constituições Venezuelana e Equatoriana (art. 172), com o direito de ditar decretos supremos e resoluções (inciso 8) e convocar sessões extraordinárias da Assembléia Nacional (inciso 6).
Como se percebe, há um profundo abismo entre a Constituição Brasileira, de 3 Poderes harmônicos e independentes, e as Constituições dos 3 países mencionados, em que, de rigor, apenas um poder existe (o Executivo), os demais são acólitos. O chamado “poder popular”, permanentemente convocado, é de facil manipulação pelo presidente, visto que, nas consultas populares, jamais poderia o povo examinar em profundidade a complexidade legislativa da consulta, como, por exemplo, discutir uma Constituição de algumas centenas de artigos!!!
O modelo espanhol adotado – e de nítida conformação socialista- objetiva apenas legitimar, por consultas manipuláveis do povo, o regime ditatorial, que parece começar a implantar-se na América Latina, com sucessivas buscas de perpetuação no poder por parte dos dirigentes destes países, com reeleições ilimitadas.
O próprio presidente Ortega, da Nicarágua, pretende o direito à reeleição, em consulta popular que está buscando concretizar.
E a influência dos países que afagam aspirantes à perpetuidade no poder parece ter contaminado a OEA, pois, no episódio de Honduras, de rigor, a expressão “golpista” só poderia ser aplicada ao presidente deposto.
Com efeito, o artigo 239 da Constituição hondurenha permite o afastamento do presidente, se descumprir a lei, a ordem e desrespeitar os poderes constituídos. Honduras não tem o instituto do “impeachment”, que o Brasil consagrou, nos artigos 85 e 86 da lei suprema.
Ora, o presidente Zelaya pretendeu desrespeitar a Constituição hondurenha, respondendo às advertências do Poder Legislativo e do Poder Judiciário no sentido de que não respeitaria a “cláusula pétrea” da lei suprema do país – que não permite reeleições – e que faria um plebiscito para conseguir a aprovação de seu intento.
No momento em que desobedeceu a decisão do Poder Judiciário, que declarou inconstitucional a consulta popular, à evidência, o desrespeito à lei e à ordem se caracterizaram, e seu afastamento se deu, nos termos da Constituição.
É interessante que dispositivo semelhante temos na Constituição brasileira, estando o artigo 142 assim redigido: “Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem” (grifos meus).
Qualquer dos Poderes constituidos brasileiros (Executivo, Legislativo e Judiciário) pode
chamar as forças armadas para restabelecimento da ordem e da lei.
Apesar da disposição do artigo 142 da C.F., o equilíbrio de poderes existente na democracia brasileira é tal ordem, que jamais passaria pela idéia de qualquer cidadão ou de qualquer autoridade não acatar a decisão do poder judiciário, ou de qualquer governante não cumprir as leis produzidas pelo Poder Legislativo.
É inconcebível, no Brasil, que o Presidente Lula ou qualquer presidente possa declarar que NÃO CUMPRIRÁ DECISÕES do Supremo Tribunal Federal, por considerar-se acima de qualquer outro poder. No Brasil, só mesmo, na Constituição de 1937, escrita pelo gênio de Francisco Campos – de quem se dizia que “quando as luzes de sua inteligência acendiam geravam curto circuito em todos os fusíveis da democracia” – o Presidente da República tinha o direito de não acatar decisões da Suprema Corte.
Concluindo este breve artigo, estou convencido de que há um processo inverso à democracia, que começa a invadir diversas nações da América Latina, nas quais o equilíbrio dos poderes deixa de existir, para a criação de um caudilhismo do século XIX e utilizando-se a manipulação do povo, no mesmo estilo de Hitler, Mussolini e Stalin.
Felizmente, o Brasil, graças a Constituição de 1988, não corre o risco que os nossos vizinhos estão vivendo.
* Ives Gandra da Silva Martins, Advogado. Doutor em Direito. Professor Emérito das Universidades Mackenzie, UNIFMU e da Escola de Comando e Estado Maior do Exército. Presidente do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio do Estado de São Paulo e do Centro de Extensão Universitária.