Análise Sumária do parágrafo único do Art.42 do CDC: Interpretação e Aplicação
Vitor Vilela Guglinski*
Com o advento do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, inspirado nas mais avançadas legislações em âmbito mundial, inúmeros dispositivos foram colocados à disposição do consumidor para a defesa dos interesses deste que é reconhecidamente a parte mais frágil na relação de consumo.
Dentre as regras inovadoras do nosso ordenamento jurídico, nesse particular, está a do parágrafo único do art. 42 do diploma supra citado, a qual prevê que “O consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do indébito, por valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável”.
No dia-a-dia forense tenho percebido que o dispositivo em comento tem sido objeto de equívocos em sua interpretação, no sentido de que a imposição da sanção nele prevista estaria autorizada nos casos onde o consumidor é simplesmente cobrado indevidamente pelo fornecedor, isto é, sem que tenha havido o pagamento da quantia cobrada.
Após ler os comentários tecidos por ANTÔNIO HERMAN DE VASCONCELLOS E BENJAMIN[1], um dos autores do anteprojeto do CDC, nada obstante seu reconhecido brilhantismo, percebi que o próprio autor é confuso ao explicar o dispositivo.
Discorrendo sobre o “pressuposto da cobrança da dívida”, o insigne jurista consigna que “O dispositivo não deixa dúvida sobre seu campo de aplicação primário: ‘o consumidor cobrado em quantia indevida’. Logo só a cobrança de dívida justifica a aplicação da multa civil em dobro”[2]. Mais adiante, explanando sobre o “pressuposto da extrajudicialidade da cobrança”, estranha e antagonicamente o autor assevera: “Note-se que, ao revés do que sucede com o regime civil, há necessidade de que o consumidor tenha, de fato, pago indevidamente. Não basta a simples cobrança”[3] (grifei).
Com a devida venia, a regra estatuída no parágrafo único do art. 42 do CDC é bastante clara ao utilizar o verbo pagar no passado, denotando a idéia de necessidade de que tenha havido o efetivo pagamento do indébito a permitir sua repetição. A meu ver, o pagamento é, então, condição sine qua non para a imposição de sanção tão severa, a qual não se revela justa e razoável nos casos onde há simples cobrança, sob pena de enriquecimento ilícito da parte que se valeu do dispositivo, uma vez que nada lhe foi subtraído.
Apenas a título comparativo, imaginemos um caso de responsabilidade por ato ilícito, onde a ocorrência do dano é requisito essencial para sua reparação, não bastando a mera ameaça de sua ocorrência para que o agente seja responsabilizado. O mesmo raciocínio pode ser aplicado nos casos onde se exige a repetição de indébito, cujo pagamento seria a expressão do dano experimentado pelo agente, mas a mera cobrança significaria sua simples ameaça. Aliás, indo mais além, embora a repetição de indébito possua natureza jurídica de multa civil, consoante assinala o autor acima citado na referida obra, a cobrança indevida, por subtrair do devedor mais do que o efetivamente devido, fatalmente acaba por ocasionar-lhe um dano de natureza patrimonial, o que, a meu ver, provoca outra confusão jurídica na análise do instituto em discussão, na medida em que o fornecedor possui o dever jurídico originário (obrigação) de cuidado ao cobrar a dívida, o qual é transgredido quando o faz além do montante efetivamente devido, nascendo, então, o dever jurídico sucessivo (responsabilidade) de restituir ao devedor a quantia cobrada em excesso. Seria, então, o caso de se pleitear a repetição de indébito ou a responsabilização do fornecedor por ato ilícito? É uma questão interessante a ser analisada, mas que foge ao objetivo deste trabalho, servindo apenas para a reflexão do leitor.
Embora o CDC tenha sido concebido com vistas a garantir o equilíbrio entre consumidor e fornecedor no mercado de consumo, tenho verificado que em muitas ocasiões, talvez até na maioria das vezes, as regras insculpidas naquela legislação têm sido invocadas de forma abusiva por seu protegido, o qual se vale das mesmas irrazoável e equivocadamente, confundindo o acesso à Justiça com a real necessidade da tutela protetiva. Entretanto, para não dar aso a injustiças, penso que seja de bom alvitre ponderar no sentido de que o consumidor, como parte, salvo as exceções legalmente previstas, não possui o jus postulandi. Então, de quem é a culpa?
Nada obstante, deixando tal debate para outra oportunidade, consigne-se que, ao consumidor, reservado está o dever de observar a mais pura ética ao invocar as disposições do CDC, e, ao aplicador do direito, a responsabilidade de consagrá-las de forma a garantir o império do justo.
* Assessor de Juiz em Juiz de Fora, especialista em Direito do Consumidor pela Universidade Estácio de Sá de Juiz de Fora.
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[1] In Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto / Ada Pellegrini Grinover… [et al.] – 8ª ed. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.
[2] Op cit., pág 395.
[3] Op cit., pág 396.