Direito do Consumidor

A extensão do amparo conferido pelo CDC ao cidadão

 

 

Introdução

 

Mesmo não comprando nada, pode o cidadão ser beneficiado pelas normas do Código de Defesa do Consumidor? É a partir de um caso concreto que buscaremos melhor explicitar a extensão do amparo conferido pelas leis consumeristas a todo e qualquer cidadão.

 

Justificativa

 

Impossível nos dias hodiernos, que algum citadino não venha a ser alvo de algum tipo de oferta, seja de produto ou serviço. Foi o que sucedeu ao sr. M. L. S., que, na rua, a caminho de seu dentista, teve a sua atenção desperta por uma chamativa publicidade, que se erguia, imensa, em outdoor. A visão muito o agradou pois trazia a imagem, agigantada, de um acalentado sonho de consumo: uma belíssima TV de LCD de 52’, na cor prata. No anúncio, a imagem da referida TV não apenas era destacada – mas a única. A concretização do sonho pareceu-lhe muito mais próxima com a visualização do preço: apenas R$ 999,99! Não perca esta oportunidade – o anúncio textualmente incitava. E M. L. S. não pretendia perdê-la, pois sabia que oportunidades como essa – a oferta de seu sonho de consumo por um preço tão acessível – são de curta duração. E o anúncio mesmo alertava: só esta semana.

 

De posse de seu cartão de crédito, ao sair do consultório dentário, M. L. S. rumou sem detença em direção à filial mais próxima da loja anunciante. Durante o trajeto já se sentia feliz, imaginando-se a ver seus programas favoritos numa TV delgada, design perfeito, com tela ampla – de 52’ -, imagem fantástica, tela widescreen e cores vibrantes… Com um televisor como o visto no anúncio – acreditava – ele deixaria de ser um mero telespectador, para sentir-se também um protagonista em filmes, esportes etc.

 

Ao chegar à loja e perguntar sobre a TV de LCD que, sobranceiramente, era ofertada no cativante anúncio, todos os seus sonhos ruíram: aquela oferta inexistia. Pelo preço de R$ 999,99 o que havia era uma TV convencional de 32’. A televisão de seus sonhos – e que aparecia em completo destaque no anúncio – existia e podia ser adquirida – mas só por R$ 11.999,00!

 

A discrepância de preço era clamorosa.  M. L. S. se sentiu vítima de uma miragem das metrópoles: por um anúncio em outdoor, ele fora levado a crer que poderia estar ao seu alcance o oásis do mundo das TVs de tecnologia avançada e imagens de alta resolução; minutos depois, entretanto, quando o sonho parecia prestes a se realizar, este se desvaneceu, como uma perfeita miragem, sendo o sr.  M. L. S. arrojado à realidade de que – só com mais de dez vezes aquele valor anunciado – poderia adquirir o produto, visto no anúncio, e que ele anelava há tempos.

 

Se sentindo alvo de uma propaganda que só vende ilusão, que usa, inescrupulosamente, uma imagem sedutora para atrair a atenção e o desejo do consumidor – sem que jamais a loja pretendesse tornar efetiva a oferta do anúncio, o sr.  M. L. S. decidiu formalizar uma reclamação à empresa.

 

Desenvolvimento

 

Não há dúvida que o sr.  M. L. S. foi vítima de uma propaganda enganosa.

 

Mas, primeiramente, para fundamentar tal afirmação, há evidenciar quem é considerado consumidor, à luz da Lei nº 8078/90 (Código de Defesa do Consumidor), no que concerne às práticas comerciais.

 

As práticas comerciais encontram-se disciplinadas no CDC em seu Capítulo V – denominado Das Práticas Comerciais. Neste capítulo, logo em seu primeiro artigo (art. 29), o CDC explicita que “equiparam-se aos consumidores todas as pessoas, determináveis ou não, expostas às práticas nele previstas.” Ou seja, o CDC concede status de consumidor a toda e qualquer pessoa, determinável ou não, que venha a ser atingida pelas práticas comerciais e suas conseqüências – mesmo que essa pessoa não tenha adquirido produto algum.

 

Posto isto, não há duvidar que o sr.  M. L. S. tem a ampará-lo o Código de Defesa do Consumidor, porquanto, no caso em tela, ele foi alvo de uma publicidade que se revelou enganosa.

 

A prática comercial é um ato lícito do fornecedor que, por meio dela, alimenta o mercado e gera riquezas ao fazer circular bens e mercadorias.

 

A prática comercial só estará a violar a lei se extrapolar esse direito, o que a tornará abusiva. E a prática comercial abusiva de que foi vítima o sr.  M. L. S. é a assim denominada pelo CDC – publicidade enganosa.

 

Oferta é um gênero do qual informação e publicidade são espécies. A publicidade torna a oferta pública e o objetivo é fazer com que esta alcance o maior número possível de prováveis consumidores.

 

Neste ponto, há ressaltar a total coerência do CDC: como o objetivo da publicidade é fazer com que a oferta atinja quaisquer pessoas, a lei consumerista estende a sua proteção a quaisquer pessoas que venham a ser atingidas de maneira prejudicial por aquela publicidade.

 

Nesse caso, para o Código do Consumidor desnecessário é que a lesão ao consumidor seja efetiva. Destarte, mesmo que não haja uma lesão efetiva, mas tão-só um dano real, está configurada para o CDC a abusividade.

 

Uma oferta divulgada através de outdoor atinge o público alvo várias vezes por dia, pois geralmente são vários espalhados por toda cidade ou metrópole – seja nas gigantescas vitrines que são essas placas, mas também nos luminosos, nas marquises, nos transportes públicos, assim como nos pontos de acesso aos mesmos. Dada as dimensões de um outdoor, a oferta atinge toda e qualquer pessoa que esteja a circular pelas ruas, motorizadas ou não, de um modo impactante, impressionante pois o produto ou serviço é mostrado de modo portentoso, agigantado, quase que a abranger todo o campo visual de quem o vê. E essa comunicação se realiza também de uma forma extremamente rápida (estimada em cerca de 8 segundos), pois mesmo que esteja em movimento, a pessoa se torna ciente da mensagem contida no outdoor.

 

Qualquer homem médio, de posse de todos os seus sentidos, fica impossibilitado de ignorar uma oferta exibida em um outdoor, pois este não pode ser desligado. Até mesmo quando a mensagem desagrade, ofenda ou assuste, não há como dela escapar se o outdoor estiver no caminho de quem esteja a circular pelas ruas.

 

E é precisamente por toda essa força que detêm certos tipos de publicidade, tornando o consumidor especialmente vulnerável, que o CDC disciplina a publicidade.

 

Naturalmente que tornar pública uma oferta é perfeitamente normal, pois trata-se de um direito lícito do fornecedor, e uma prática inerente à própria atividade do comércio.

 

Contudo, o que não é normal, mas ainda muito comum, é fazer uma oferta que pretenda não vincular o produto mostrado na publicidade como exemplo. É precisamente para coibir essa prática que o Código de Defesa do Consumidor traz, de forma inequívoca, a vinculação entre a oferta e o produto. Eis o que determina o art. 30 do CDC:

 

Toda informação ou publicidade, suficientemente precisa, veiculada por qualquer forma ou meio de comunicação com relação a produtos e serviços oferecidos ou apresentados, obriga o fornecedor que a fizer veicular ou dela se utilizar e integra o contrato que vier a ser celebrado.”

 

Já no art. 31, o CDC determina que:  

 

A oferta e apresentação de produtos ou serviços devem assegurar informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa sobre suas características, qualidades, quantidade, composição, preço, garantia, prazos de validade e origem, entre outros dados, bem como sobre os riscos que apresentam à saúde e segurança dos consumidores.”

 

A publicidade não pode, portanto, induzir o consumidor a erro, criando-lhe uma expectativa de consumo que o fornecedor jamais pretendeu propiciar, proporcionar.

 

A publicidade é promoção de venda, ou seja, é um conjunto de técnicas e de atividades utilizadas para estimular a venda de produtos ou serviços. Publicidade é incitação ao consumo, pois é um chamamento endereçado ao consumidor para atraí-lo e estimulá-lo a adquirir um produto definido ou fazer uso de um determinado serviço. O que é proibido por lei é que essa publicidade não seja suficientemente precisa. Aqui há de ressaltar que para a lei não é importante a explicitação das características e qualidades mercadológicas do produto ou do serviço. Dentro do espírito defensivo da legislação consumerista, a interpretação razoável para a expressão “suficientemente precisa” é a de que a publicidade permita a identificação do produto ou do serviço. Se a publicidade trouxer uma informação imprecisa quanto as características, qualidades, quantidade, composição, preço, garantia, prazo de validade e origem, que possa levar uma inteligência mediana a erro, em favor do consumidor haverá a presunção de boa fé, pois este sabe o que deseja e procura encontrar a perfeita identidade entre o que anseia, entre o que aspira e o que vai efetivamente consumir.

 

Sabemos que qualquer publicidade pode induzir o consumidor a um entendimento errado, mesmo em suas omissões. E a imprecisão na informação já denuncia uma tentativa de engodo, pois, mantendo-se no limiar entre o preciso e o impreciso, pretende-se, em verdade, gerar dúvidas que descaracterizem a vinculação determinada pela lei.

 

As modernas técnicas de publicidade visam atingir até mesmo motivações inconscientes do consumidor e, assim sendo, se não coibida, poderia vir a manipular o próprio livre arbítrio dos consumidores que, em sua maioria, não têm qualquer preparo para mentalmente proteger-se.

 

Mas se dispõe de tanta tecnologia de persuasão e sedução centrada na fase do convencimento e decisão do consumidor, como aceitar que a publicidade seja deficiente exatamente no momento de informar o devido preço de seu produto?

 

Quando, portanto, um fornecedor torna pública a oferta de um produto, sonho de consumo de muitas pessoas, e o faz de forma a induzi-las a crer que aquele produto está sendo vendido por um preço bastante acessível – quando, em verdade, não está -, trata-se de um estratagema pernicioso com o intuito exclusivo de atrair os consumidores a entrar na loja.  Foi esse tipo de publicidade que vitimou o sr.  M. L. S., que só entrou naquela loja porque a publicidade no outdoor o induziu a pensar que a TV de LCD dos seus sonhos estava sendo vendida por um preço acessível ao seu poder aquisitivo.

 

O Código de Defesa do Consumidor, em seu art. 37, § 1º, define como enganosa “qualquer modalidade de informação ou comunicação de caráter publicitário, inteira ou parcialmente falsa, ou, por qualquer outro modo, mesmo por omissão, capaz de induzir em erro o consumidor a respeito de natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades, origem, preço e quaisquer outros dados sobre produtos e serviços”. Ao assim dispor, o CDC exige veracidade de qualquer informação contida em publicidade. E esta será enganosa não só pela fraude ou falsidade que contenha, mas também por qualquer meio que potencialmente seja capaz de confundir o entendimento do consumidor médio. Ou seja, para o CDC desnecessário que o consumidor tenha sido efetivamente enganado, porquanto afere-se o engano in abstrato, bastando que haja por parte do fornecedor capacidade de indução ao erro.

 

E a lei consumerista exige que a publicidade seja correta, confiável, escrupulosa, honesta porque entendeu-se que sendo enganosa ela fere aos interesses de toda a coletividade de pessoas a ela expostas – sejam essas pessoas determináveis ou não. Entendeu-se, ainda, que a publicidade que use de fraude ou falsidade é prejudicial, a médio e longo prazo, à própria atividade comercial. Um comerciante desonesto pode carrear má fá à toda classe. Se práticas abusivas tornarem-se demasiadamente comuns, isso terminará por ocasionar grave prejuízo às relações de consumo, pois o consumidor se sentirá cada vez mais descrente nas ofertas dos fornecedores e consumirá o mínimo possível, o que impossibilitará, enfraquecerá a circulação de bens e serviços e a geração de riquezas.

 

O direito à informação correta, honesta está encadeado ao princípio da transparência, contemplado na caput do art. 4º do CDC. Por conseqüência, cumpre ao fornecedor dar conhecimento prévio dos produtos e serviços ao consumidor – sob pena das cláusulas contratuais estipuladas serem totalmente inválidas.

 

Outrossim, toda a informação que ao consumidor for prestada pelo fornecedor obriga a este e torna-se cláusula – ainda que não escrita – do contrato que vier a ser efetuado. E isso porque a oferta é a declaração inicial de vontade, tornada pública pelo fornecedor através da publicidade, objetivando a realização de um contrato. Se o fornecedor, buscando celebrar um contrato, formula aquela declaração inicial – a oferta – , não pode, depois de conseguir a aceitação da outra parte contratante – o consumidor – se negar a cumprir o que ele mesmo ofertou. O que constar na publicidade se sobreporá até sobre o escrito no contrato, pois, ao revés, uma singela cláusula contratual haveria de anular todo o efeito da publicidade. E o que o legislador consumerista buscou impedir é que o fornecedor ofertasse de forma fraudulenta ou falsa, com o escopo único de atrair o consumidor, para depois não cumprir a oferta e fornecer o produto ou serviço da forma que lhe aprouvesse.

 

Ao afirmar que a oferta vincula, o CDC determina a obrigação do fornecedor de cumprir tudo que vier a oferecer ao público ou a um indivíduo. Assim, se o fornecedor exibe a imagem de um determinado produto e faz parecer que o está oferecendo por um preço de um produto de qualidade inferior, o consumidor terá direito de adquiri-lo por aquele preço que o fornecedor, deliberadamente, o induziu a crer. Esta foi a oferta, e se foi feita de forma falsa, o fornecedor tem de assumir as conseqüências de sua própria má-fé.

Assim preceitua o CDC em seu art. 35:

 

Se o fornecedor de produtos ou serviços recusar cumprimento à oferta, apresentação ou publicidade, o consumidor poderá, alternativamente e à sua livre escolha:

 

I – exigir o cumprimento forçado da obrigação, nos termos da oferta, apresentação ou publicidade;

 

II – aceitar outro produto ou prestação de serviço equivalente;

 

III – rescindir o contrato, com direito à restituição de quantia eventualmente antecipada, monetariamente atualizada, e a perdas e danos.”

 

Por conclusão, o sr.  M. L. S. tem direito a adquirir aquela TV de LCD de  52’, por R$ 999,99 – pois foi a isso que o fornecedor o induziu a crer na publicidade que ostensivamente ergueu em outdoor. Caso não seja atendido, o Sr.  M. L. S. tem, assegurado pelo CDC, o direito de pleitear em juízo o cumprimento forçado da oferta tornada pública em outdoor.

 

Conclusão

 

Vimos que, por determinação expressa do Código de Defesa do Consumidor, tanto informação quanto publicidade (duas espécies do gênero oferta) devem ser suficientemente precisas. E que por esta expressão devemos entender, dentro do real espírito defensivo daquele diploma legal, que a precisão deve permitir a identificação do produto ou do serviço. Se a publicidade for imprecisa não quanto às suas características e qualidades mercadológicas, mas no que se refere à identificação da marca do produto ou da sua denominação no mercado, o prejudicado será o fornecedor, pois a sua publicidade não terá alcançado o objetivo devido. Se a informação for imprecisa acerca das características, qualidades, quantidade, composição, preço, garantia, prazo de validade e origem, entre outros dados, prevalecerá em favor do consumidor presunção de boa-fé, pois o legislador consumerista entendeu que o consumidor sabe de suas necessidades e vai em busca de atendê-las o mais plenamente possível.

Ao fornecedor cabe, portanto, elucidar, esclarecer de modo preciso as qualidades de seu produto para que o consumidor, ao ter ciência da publicidade ou da informação, possa delas aferir a perfeita coerência entre o que ele necessita ou deseja e o que vai adquirir.

 

Por conseguinte, se contrapõe às determinações expressas do CDC a publicidade ou a informação que induza o consumidor a erro, dando-lhe uma certeza que o fornecedor jamais pretendeu ou teve condições de cumprir.

 

Cumpre, pois, aqui assinalar que, dentre outros, a obtenção efetiva de uma informação adequada, clara e precisa constitui direito básico do consumidor e princípio fundamental da lei consumerista.


No art. 4°, caput, do CDC, encontra-se nobilitado o princípio da transparência, por força do qual o fornecedor está obrigado a dar ao consumidor a oportunidade prévia de conhecer os produtos e serviços que está a oferecer, conferindo-lhe plena ciência de seu conteúdo.

 

Violados esses direitos, nasce para o sr.  M. L. S. o direito de exigir o pleno cumprimento do que lhe constava na publicidade.


Destarte, esteado pelos arts. 29 a 38 do CDC, o sr. M. L. S. poderá exigir o cumprimento forçado da oferta dada à público através de publicidade em outdoor pela empresa (art. 35, I, do CDC).

 

É o que nos parece.

 

Referências bibliográficas

 

Código de Defesa do Consumidor.

Disponível em http:// www.mj.gov.br/DPDC/servicos/legislacao/cdc.htm

Acessado em 05.03.2007

 

MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 4ª ed. rev. 2. tir. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004

 

 

 

* Lucília Lopes Silva – Formação acadêmica: Graduada em Direito pela Faculdade Cândido Mendes. Pós-graduada Lato Sensu em Direito Civil, pela ESA/OAB-RJ. Cursos de especialização na FGV Online: Direitos do Consumidor, Direitos Humanos, Direito Societário, Direito Processual Civil – Fundamentos e Teoria Geral e Atualização em Direito Processual Civil. Dados profissionais: Consultora jurídica e parecerista

Como citar e referenciar este artigo:
, Lucília Lopes Silva. A extensão do amparo conferido pelo CDC ao cidadão. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-do-consumidor/a-extensao-do-amparo-conferido-pelo-cdc-ao-cidadao/ Acesso em: 08 dez. 2024