Direito Constitucional

Uniões homoafetivas: uma realidade que o Brasil insiste em não ver

Uniões homoafetivas: uma realidade que o Brasil insiste em não ver

 

 

Maria Berenice Dias*

 

 

Sumário: 1. No âmbito constitucional; 2. No âmbito legal; 3. No âmbito judicial; 3.1. Competência; 3.2. Alimentos; 3.3. Partilha de bens; 3.4. Direito sucessório; 3.5. Condição de dependência; 4. Adoção; 5. O novo Código Civil; 6. Uniões homoafetivas.

 

 

As questões que dizem com a sexualidade sempre foram e ainda são cercadas de mitos e tabus, e os chamados “desvios sexuais” – tidos como uma afronta à moral e aos bons costumes – permanecem alvo da mais profunda rejeição social. Essa visão polarizada é extremamente limitante. Tudo que não reproduz o modelo estabelecido, não se encaixa nos padrões postos, acaba por ser rotulado de “anormal”, ou seja, fora da normalidade.

 

No Brasil, como em praticamente todos os países do mundo, há uma nítida tentativa de negar a existência dos vínculos afetivos homossexuais, o que gera um sistema de exclusão permeado de preconceito. Essa atitude predominante na sociedade acaba por inibir o legislador de normar situações que fogem dos estereótipos de moralidade. Omite-se para não afrontar os segmentos conservadores, temendo uma estigmatização que não combina com seus fins políticos e eleitoreiros.

 

Tal postura acaba se refletindo também na esfera jurídica. O Poder Judiciário, extremamente acanhado e conservador, nega-se a emprestar visibilidade a situações alvo do repúdio social. Sob o fundamento de falta de previsão legal, os magistrados sentem-se impedidos de conceder direitos ou reconhecer obrigações quando as demandas dizem com vínculos homossexuais.

 

A omissão legal e o temor judicial acabam sendo fontes de grandes injustiças. Ensejam o enriquecimento sem causa, além de fomentar a discriminação e a exacerbação do preconceito. Mas fechar os olhos não faz desaparecer a realidade.

 

 

 

1. No âmbito constitucional

 

A Constituição Federal, que data de 1988, consagra a existência de um estado democrático de direito. O núcleo do atual sistema jurídico brasileiro é o respeito à dignidade humana, baseado nos princípios da liberdade e da igualdade.

 

De forma enfática, a Carta Magna assegura como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil: promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (inciso IV do art. 3º). Ainda que seja imperioso reconhecer que proibição da discriminação sexual alcança a vedação à discriminação da homossexualidade, as diretrizes traçadas e os princípios insculpidos na Lei Maior não são suficientes para assegurar o respeito à livre orientação sexual. Em face disso, antiga é a luta dos movimentos ligados aos direitos humanos buscando inserir no elenco da Carta Política a expressão “orientação sexual”. No entanto, o Projeto de Emenda Constitucional propondo dita inserção, que data do ano de 1995,[1] até agora não logrou obter aprovação.

 

 

 

2. No âmbito legal

 

O único Projeto de Lei – entre os vários já apresentados – em tramitação é o de nº 1.151/95. O substitutivo aprovado trocou o nome de união civil para parceria civil registrada, para não haver a possibilidade de ser confundida com casamento.[2]

 

A proposta legiferante é autorizar a elaboração de um contrato escrito, a ser registrado em livro próprio no Cartório do Registro Civil das Pessoas Naturais. Conforme a própria justificativa do Projeto, o propósito não é dar às parcerias homossexuais status igual ao do casamento, é: conceder amparo às pessoas que o firmam, priorizando a garantia dos direitos de cidadania.

 

Essa tentativa de regulamentação assegura reconhecimento às uniões de pessoas do mesmo sexo. Ainda que não pressuponha a existência de um envolvimento de caráter sexual entre os parceiros, visa a proteger as relações homossexuais. Possibilita o estabelecimento de um vínculo jurídico gerador de efeitos não só patrimoniais, mas também pessoais, não podendo ser enquadrado exclusivamente no âmbito dos direitos obrigacionais.

 

Nítida a natureza familiar do instituto. Basta observar que somente pessoas solteiras, viúvas ou divorciadas têm a possibilidade de firmar o contrato, mediante público instrumento a ser submetido a registro cartorário. Não é autorizada a mudança de sobrenome em decorrência da assinação do pacto. Há o impedimento de alteração do estado civil dos parceiros durante sua vigência, e é reconhecida a nulidade de pleno direito do contrato firmado com mais de uma pessoa. Em ambas as hipóteses, a infração configura o delito de falsidade ideológica, sujeito a pena de um a cinco anos de reclusão.

 

É livre a possibilidade de estipulações de ordem patrimonial, inclusive com efeito retroativo. Cabível é a imposição de deveres, impedimentos e obrigações mútuas, mas é expressamente vedada qualquer disposição sobre adoção, tutela ou guarda de crianças ou adolescentes em conjunto, mesmo que sejam filhos de um dos parceiros.

 

Aos contratantes são garantidos direitos previdenciários e sucessórios com algumas restrições. O parceiro sobrevivente tem direito de usufruto, previsão que dispõe de caráter protetivo e finalidade alimentar. Assim, não se justifica a falta de regulamentação de alimentos, já que é assegurado amparo por morte, e não no caso de rompimento da relação. Porém, não há qualquer impedimento de se prever obrigação alimentar entre as cláusulas do pacto.

 

O Projeto de Lei também reconhece o direito à meação se os bens deixados pelo autor da herança resultarem de atividade em que haja a colaboração do parceiro. Trata-se de dispositivo pouco claro. Exige prova do esforço comum, mas determina a divisão paritária do patrimônio. Ao depois, o direito do parceiro prevalece sobre o direito dos descendentes e ascendentes, pois subtrai destes o direito ao uso dos bens. Enquanto o parceiro sobrevivente não firma novo pacto, é-lhe assegurado o direito ao usufruto de um quarto dos bens, se houver filhos do de cujus, e da metade, embora sobrevivam ascendentes. É garantido o direito à totalidade da herança na inexistência de descendentes ou ascendentes.

 

Tem o parceiro preferência aos familiares para o exercício da curatela. São assegurados a impenhorabilidade da residência comum e o direito de nacionalidade em caso de estrangeiros. Também há a possibilidade de indicação do par na declaração do imposto de renda, sendo que os rendimentos de ambos podem participar na composição para compra ou aluguel de imóvel.

 

A extinção da parceria ocorre por morte ou por decreto judicial, em ocorrendo infração do contrato ou simples alegação de desinteresse de um dos contratantes. Mesmo havendo consenso entre os parceiros, necessária é a homologação do distrato em juízo. Dita exigência não tem qualquer justificativa, pois nas relações extramatrimoniais – chamadas de uniões estáveis – é dispensável a intervenção judicial para sua extinção. Somente para dissolver-se o casamento é que as partes devem buscar a chancela do Poder Judiciário.

 

O Projeto, mesmo já sendo considerado acanhado, em face dos avanços legislativos de outros países, por uma dezena de vezes, foi pautado para votação, mas nunca chegou a ser apreciado. De qualquer forma, tem poucas chances de merecer imediata aprovação. Apesar de os movimentos chamados GLBTS – gays, lésbicas, bissexuais, trangêneros e simpatizantes – serem muito articulados e ativos, as forças conservadoras do Congresso Nacional, às quais se congregam todos os segmentos religiosos, formam uma barreira quase intransponível. Afigura-se, assim, remota a possibilidade de o Brasil dispor de alguma legislação que regule os relacionamentos tidos ainda como “marginais”.

 

O que tem proliferado são leis em nível municipal, buscando a repressão de atos discriminatórios. Algumas Constituições dos Estados vêm inserindo em seus textos a livre orientação sexual no rol dos direitos fundamentais.

 

 

 

3. No âmbito judicial

 

Ainda quando o direito se encontra envolto em uma auréola de preconceito, o juiz não pode ter medo de fazer justiça. A função judicial é assegurar direitos, e não bani-los pelo simples fato de determinadas posturas se afastarem do que se convencionou chamar de “corretas”. Vivenciar uma situação não prevista na legislação não significa viver à margem da lei. Muito menos a omissão legal quer dizer ausência de direito. Nada justifica a vedação de acesso à Justiça. A falta de lei não pode impedir a busca da tutela jurídica.

 

A circunstância de inexistir legislação que contemple os direitos emergentes das relações homossexuais não tem impedido que algumas questões aportem no Judiciário. A dificuldade de se reconhecer a existência de um vínculo afetivo como fundamento das pretensões deduzidas em juízo tem levado à concessão de restritos direitos e ao deferimento de bem poucos benefícios, e isso em um espectro muito limitado.

 

Cabe trazer a posição da jurisprudência brasileira sobre algumas questões ligadas ao tema.

 

 

 

3.1. Competência

 

Independentemente de quais sejam os direitos reclamados em juízo, as ações fundadas na existência de um vínculo afetivo homossexual apontam tal circunstância como causa de pedir. Porém, a quase unanimidade dos julgados não os identificam como entidade familiar, à semelhança da união estável heterossexual. No máximo, reconhecem a existência de uma sociedade de fato, confinando-as no Direito Obrigacional. Dita diferenciação impede extrair dos relacionamentos toda a gama de efeitos jurídicos que existem exclusivamente no âmbito do Direito de Família.

 

A resistência em identificar os vínculos entre pessoas do mesmo sexo como uma entidade familiar sempre levava as demandas às varas cíveis, e não às varas de família. Decisão pioneira da Justiça do Rio Grande do Sul, datada de junho de 1999, fixou a competência das varas de família para julgar ação decorrente de relacionamento homossexual.[3] Foi o primeiro passo para conceder à união homossexual status de família.

 

A partir desse posicionamento jurisprudencial, ao menos neste Estado da Federação, todas as ações envolvendo os relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo foram transferidas das varas cíveis para as varas de família. Igualmente restou atribuída às câmaras de família do Tribunal de Justiça a competência para o julgamento dos respectivos recursos.[4] Esse motivo certamente é que tem levado a Justiça gaúcha a ser considerada a que mais avanços vem introduzindo, no âmbito do Direito de Família de um modo geral, mas particularmente nas questões que envolvem parceiros homossexuais.

 

 

 

3.2. Alimentos

 

Ainda que tramitando as ações nos juizados de família, permanecem as uniões homossexuais sendo consideradas fora do âmbito do Direito de Família, o que inibe inclusive o ingresso de ações buscando alimentos.

 

No único julgamento de que se tem notícia,[5] a maioria rejeitou o pedido de alimentos provisórios formulado em decorrência do fim de relação que perdurou por 8 anos.

 

 

 

3.3. Partilha de Bens

 

Finda a relação pelo rompimento do vínculo afetivo, o pedido que vem a juízo com mais freqüência é o de partilha do patrimônio amealhado durante o período de vida em comum.

 

Nos julgamentos que envolvem o fim das relações de pessoas do mesmo sexo, no dilema entre praticar uma injustiça e afrontar tabus e preconceitos, de forma tímida, a tendência da jurisprudência é de, no máximo, reconhecer direito à divisão proporcional do patrimônio.

 

Sem emprestar qualquer relevo ou significado à natureza do relacionamento das partes, invoca-se o art. 1.363 do Código Civil,[6] que regula a sociedade de fato: Celebram contrato de sociedade as pessoas que mutuamente se obrigam a combinar seus esforços ou recursos, para lograr fins comuns. Portanto, o fundamento para o deferimento da partilha de bens não é o reconhecimento de um estado condominial decorrente da vida em comum, mas a mera repulsa à possibilidade de enriquecimento injustificável.

 

Por conseqüência, é exigida a prova da efetiva participação de cada um na formação do acervo patrimonial. Tenta-se identificar o aporte econômico de cada parceiro para a aquisição dos bens, a fim de se estabelecer a partição proporcional. Essa solução, ainda que vise a impedir o exclusivo e indevido proveito do titular do domínio, na grande maioria das vezes resta por perpetrar resultados que em muito se distanciam de uma solução justa. Quer porque são relacionamentos que guardam uma certa discrição (o que dificulta a probação testemunhal), quer porque se empresta valia somente à contribuição de cunho financeiro. Não se reconhece conteúdo econômico no próprio cuidado e desvelo mútuos ou nas atividades domésticas, quando são desempenhadas por um do par, que não desenvolve atividade laboral remunerada. Trata-se como sociedade de fato o que nada mais é do que uma sociedade de afeto.

 

 

 

3.4. Direito sucessório

 

Quando da morte de um dos parceiros – mas também em número muito acanhado –, é buscada em juízo, em regra, a partilha dos bens adquiridos durante o período de convívio, e não a integralidade do acervo hereditário. O pedido é somente da meação, sob o fundamento da existência de uma sociedade de fato. Não é pleiteada herança, que tem como pressuposto um núcleo familiar. Mesmo quando inexistem herdeiros necessários, não é invocado direito sucessório nem alegada a qualidade de herdeiro ou sucessor.

 

Díspares são as decisões dos tribunais, mas é majoritária a tendência de rejeitar a demanda, pois é enorme a dificuldade até para o reconhecimento de uma sociedade de fato. Recusa-se sistematicamente atribuir a condição de herdeiro ao parceiro, o que leva a excluí-lo da ordem de vocação hereditária e alijá-lo dos direitos sucessórios.

 

O Superior Tribunal de Justiça, ao julgar em grau de recurso especial, assim decidiu: O parceiro tem o direito de receber a metade do patrimônio adquirido pelo esforço comum, reconhecida a existência de sociedade de fato.[7]

 

Tais soluções dão ensejo a um descabido beneficiamento dos familiares distantes que, normalmente, rejeitavam, rechaçavam e ridicularizavam a orientação sexual do de cujus. De outro lado, na ausência de parentes, acaba havendo a declaração de vacância e o recolhimento da herança ao Estado, em prejuízo de quem deveria ser reconhecido como o titular dos direitos hereditários.

 

Mais do que isso, não evoluía a jurisprudência.

 

A pioneira decisão que logrou visualizar em tais vínculos uma verdadeira entidade familiar foi proferida também pela Justiça do Rio Grande do Sul, em data de 14 de março de 2001. Ainda que por maioria, a 7ª Câmara Cível, a qual tenho a honra de presidir, Relator o Desembargador José Carlos Teixeira Giorgis, assim se manifestou: UNIÃO HOMOSSEXUAL. RECONHECIMENTO. PARTILHA DO PATRIMÔNIO. CONTRIBUIÇÃO DOS PARCEIROS. MEAÇÃO. Não se permite mais o farisaísmo de desconhecer a existência de uniões entre pessoas do mesmo sexo e a produção de efeitos jurídicos derivados destas relações homoafetivas. Embora permeadas de preconceitos, são realidades que o Judiciário não pode ignorar, mesmo em sua natural atividade retardatária. Nelas remanescem conseqüências semelhantes às que vigoram nas relações de afeto, buscando-se sempre a aplicação da analogia e dos princípios gerais do direito, relevados sempre os princípios constitucionais da dignidade humana e da igualdade. Desta forma, o patrimônio havido na constância do relacionamento deve ser partilhado como na união estável, paradigma supletivo onde se debruça a melhor hermenêutica. Apelação provida, em parte, para assegurar a divisão do acervo entre os parceiros. Voto vencido.[8]

 

Em face da omissão legal, por analogia, foi aplicada a legislação que regula as uniões extramatrimoniais. Buscando subsídios na legislação que rege a união estável, que presume a mútua colaboração e gera um estado condominial, procedeu-se à divisão igualitária do acervo patrimonial amealhado durante o período de convivência entre o companheiro e o descendente do de cujus.

 

Depois dessa decisão já outros Estados vêm reconhecendo a mesma espécie de direitos.

 

No momento em que se consolidar essa orientação, de ver ditas relações como vínculos afetivos, ao certo, tal em muito contribuirá para amenizar a aversão à homossexualidade. Existe a tendência de se aceitar o que o Poder Judiciário referenda como certo. Assim, de forma corajosa, vêm os juízes cumprindo sua função renovadora, pois a jurisprudência acaba estabelendo pautas de conduta de caráter geral. Mesmo apreciando o caso concreto, funciona o juiz como agente transformador da própria sociedade.

 

Se duas pessoas têm uma vida em comum, cumprindo deveres de mútua assistência, em um verdadeiro convívio caracterizado por amor e respeito mútuo, a identidade de sexos do par não pode impedir que se extraiam direitos e imponham obrigações.

 

 

 

3.5. Condição de dependência

 

Esparsas e muito raras eram as decisões que reconheciam a condição de dependência aos parceiros do mesmo sexo, assegurando-lhes a inclusão em planos previdenciários e assistenciais.

 

Assim, de enorme significado a demanda intentada pelo Ministério Público Federal, com eficácia erga omnes. Sob o fundamento de que viola o dogma constitucional de respeito à dignidade humana e afronta ao princípio isonômico que proíbe discriminação sexual, foi liminarmente reconhecida a qualidade de dependente aos companheiros de homossexuais junto ao órgão previdenciário federal. Foram garantidos auxílio-reclusão e a percepção da pensão por morte do beneficiário.[9] A liminar, confirmada em todas as instâncias recursais, levou o Instituto Nacional do Seguro Social a editar a Instrução Normativa nº 25/2000, que estabelece, por força de decisão judicial, procedimentos a serem adotados para a concessão de benefícios previdenciários ao companheiro ou companheira homossexual.[10] Apesar do caráter administrativo de tal regra, é a primeira normatização que contempla as relações homossexuais, primeiro passo para enlaçar na esfera da juridicidade tais relacionamentos.

 

Assim, ao menos até o julgamento de mérito da ação, estão assegurados, no Brasil, direitos previdenciários, inclusive para os vínculos que se romperam antes da edição da medida normativa.

 

 

 

4. Adoção

 

A mais tormentosa questão que se coloca e que mais divide opiniões é quando se fala no direito à adoção por parceiros homossexuais. A enorme resistência decorre da crença de haver um dano potencial à criança, por ausência de parâmetros comportamentais, o que poderia ensejar, no futuro, seqüela psicológica.

 

O Estatuto da Criança e do Adolescente, editado em 1990 – com certeza uma das mais avançadas leis de proteção ao menor do mundo –, não traz qualquer restrição à possibilidade de homossexuais adotarem. É outorgado tal direito tanto ao homem como à mulher, conjunta ou isoladamente, não havendo referência à orientação sexual do adotante.

 

No entanto, raras são as decisões judiciais que deferem pedido de adoção formulado por um homossexual, o que os leva a ocultar sua condição. Praticamente solitária é a postura do magistrado carioca Siro Darlan de Oliveira, que deferiu a adoção a um homossexual. A decisão foi confirmada pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.[11]

 

A resistência não se justifica nem por razões registrais. A determinação legal de que, no assento de nascimento, sejam os adotantes inscritos como pais, ocorrendo simples substituição da filiação biológica, não pode servir de justificativa para se sustentar a impossibilidade de adoção por duas pessoas do mesmo sexo. Não há nenhum empecilho de que constem como pais no registro de nascimento dois homens ou duas mulheres. Ainda que se presuma que a lei não tenha cogitado tal possibilidade, a adoção por um par homossexual é cabível.

 

Apesar de nada respaldar a limitação, não se tem notícia de já haver sido requerida e muito menos deferida a adoção a um par homossexual, restrição que acaba por gerar situações injustas, vindo exclusivamente em prejuízo do próprio menor. A vivência de crianças e adolescentes em lares homossexuais é uma realidade. Deferir a adoção a um só dos parceiros assegura direito a alimentos e benefícios de cunho previdenciário ou sucessório somente com relação ao adotante. Ocorrendo quer a separação do par, quer a morte do que não tem legalmente um liame registral com o menor, dita limitação lhe acarreta injustificáveis perdas. Não poderá desfrutar de qualquer direito com referência àquele que também tem como verdadeiramente seu pai ou sua mãe. Imperioso concluir que, de forma paradoxal, o intuito de resguardar e preservar a criança resta por lhe subtrair a possibilidade de usufruir de direitos que de fato possui, limitação que afronta a própria finalidade protetiva decantada na Carta Constitucional e perseguida pelo ECA.

 

Empecilhos de toda ordem – que existem ou são criados pela Justiça – fazem com que soluções outras sejam buscadas por quem quer consolidar uma família por meio da prole. É usual lésbicas extraírem o óvulo de uma, fecundá-lo in vitro por espermatozóide de um doador, sendo o embrião implantado no útero da outra, que leva a termo a gestação. Como a criança será registrada somente em nome de quem deu à luz a criança, não tem a outra – que na verdade  é a mãe biológica – qualquer vínculo, sequer obrigacional, com o filho que, afinal, é seu. Os prejuízos decorrentes dessa limitação são previsíveis. Registrada somente em nome de uma das mães, só dela pode buscar direitos e cobrar deveres.

 

Os casais masculinos, por seu turno, socorrem-se das chamadas “barrigas-de-aluguel”. Fazem uso da inseminação artificial, inclusive com utilização simultânea do sêmen de ambos, exatamente para não saberem qual deles é o genitor. A criança, é claro, é tida como filha dos dois. Por igual, nesses casos, a impossibilidade de adoção conjunta subtrai o direito de o menor usufruir de qualquer benefício com referência a quem igualmente considera como seu pai.

 

Recente decisão judicial, deferindo a guarda de um menino de 10 anos à parceira da mãe, quando de seu falecimento, causou grande repercussão. A mãe biológica, cantora muito prestigiada, nunca escondeu seu relacionamento homossexual de muitos anos, sendo que em entrevistas costumava revelar sua preocupação com a sorte de sua parceira. Durante o período de convívio, que perdurou 16 anos, a popular cantora teve um filho cujo pai  faleceu antes do seu nascimento, e ele foi registrado exclusivamente no nome da mãe. Mas desde sempre conviveu com ambas, sendo que identificava como mãe a outra, que dele cuidava enquanto a genitora passava viajando e fazendo turnês. Após a morte da genitora, o avô paterno entrou com o pedido de guarda do neto. Mas, liminarmente, respeitando a vontade expressa do menino, a guarda foi deferida a quem desempenhava as funções maternas.

 

 

 

5. O novo Código Civil

 

Depois de tramitar por 27 anos, e apesar de muitas contestações, no dia 10 de janeiro de 2003, entrou em vigor o novo Código Civil, substituindo a legislação anterior, que datava de 1916. Este estatuto já nasce superado, pois foi elaborado antes da aprovação da Lei do Divórcio (que é do ano de 1977) e da Constituição Federal (promulgada em 1988), dois grandes marcos que produziram verdadeira revolução no âmbito do Direito de Família.

 

Assim, é de todo descabido haver o novo Código Civil silenciado sobre os vínculos que não se definem pela diferença do sexo do par. Como há muitos anos tramita projeto de lei que busca inserir no âmbito jurídico a chamada “parceria civil registrada”, não se justifica sua exclusão do estatuto civil.

 

Nenhum óbice constitucional existe – como sustenta a justificativa do novo Código – para identificar tais uniões como entidade familiar. Diz o art. 226, § 3º, da Constituição Federal: Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. No entanto, a Carta Constitucional não diz que não é entidade familiar o vínculo entre dois homens ou duas mulheres. No máximo se pode afirmar que não houve a determinação de que a lei deva facilitar a conversão dessas uniões em casamento. Ora, dispondo o relacionamento das características de uma entidade familiar, mesmo com distinta configuração, imperioso emprestar-lhe juridicidade.

 

O fato é que se está buscando corrigir essa omissão, nitidamente preconceituosa, por meio de projeto de lei retificativo. Somente assim se estará dando eficácia social à garantia constitucional de igualdade, pressuposto da liberdade individual e base do estado democrático de direito.

 

 

 

6. Uniões homoafetivas

 

De forma cômoda, o Judiciário busca não ver e nada deferir quando a causa tem por fundamento união entre duas pessoas do mesmo sexo. No máximo busca subterfúgios no campo do Direito das Obrigações, identificando como sociedade de fato o que nada mais é do que uma sociedade de afeto. A exclusão de tais relacionamentos da órbita do Direito de Família acaba impedindo a concessão dos direitos que defluem das relações familiares, tais como meação, herança, usufruto, habitação, alimentos, benefícios previdenciários, entre tantos outros. Relegar essas questões ao âmbito obrigacional gera, no mínimo, um contra-senso. Os juízes de família acabavam se socorrendo de distinto ramo do Direito para o qual não detêm competência.

 

Descabe continuar pensando com preconceitos, isto é, com conceitos preestabelecidos e que ainda se encontram encharcados de conservadorismo. É necessário pensar com conceitos jurídicos, e para isso é necessário pensar novos conceitos.

 

Daí a missão fundamental da jurisprudência. Necessita o juiz desempenhar seu papel de agente transformador de conceitos estagnados, tal como ocorreu com a união estável heterossexual. A alteração do conceito social das chamadas relações concubinárias foi provocada pelos operadores do Direito. Quando passou a Justiça a extrair conseqüências jurídicas dos relacionamentos extramatrimoniais, isso as fez serem reconhecidas como entidade familiar em sede constitucional.

 

Ao menos até que o legislador pátrio siga a trilha da Justiça e flagre o descaso do Estado em regulamentar tais relações, que merecem – como já conquistaram na maioria dos países do mundo – uma regulamentação própria, a responsabilidade é do Poder Judiciário.

 

Ainda que tenha vindo a Constituição, com ares de modernidade, outorgar proteção à família, independentemente da celebração do casamento, continuaram ignoradas as entidades familiares formadas por pessoas do mesmo sexo. No entanto, não mais se diferencia a família pela ocorrência do casamento. A existência de um par heterossexual não é requisito essencial para que a convivência mereça reconhecimento como entidade familiar. Basta atentar em que a proteção constitucional é outorgada também às famílias monoparentais. Assim, nem a prole nem a capacidade procriativa são pressupostos para que a convivência de duas pessoas mereça a proteção jurídica. Por tais fundamentos, é descabido deixar fora do conceito de família as relações homoafetivas.

 

Presentes os requisitos de vida em comum, coabitação, laços afetivos, mister conceder aos casais homossexuais os mesmos direitos deferidos às uniões heterossexuais que tenham idênticas características. Diante da lacuna da lei, deve o julgador se socorrer do art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil, que determina a aplicação da analogia, dos costumes e princípios gerais de direito. Ante a falta de normatização, só pode ser feita analogia com as demais relações que têm o afeto por causa, ou seja, o casamento e a união estável.

 

Enquanto a lei não acompanha a evolução da sociedade, a mudança de mentalidade, o avanço do conceito de moralidade, ninguém, muito menos os juízes, pode, de forma preconceituosa ou discriminatória, fechar os olhos a essa nova realidade e ser fonte de grandes injustiças. Descabe confundir questões jurídicas com questões morais ou religiosas.

 

A mesma responsabilidade, outrora, assumiu a Justiça com referência às uniões extraconjugais. Deve agora mostrar igual independência e coragem quanto às uniões homossexuais. Ambas são relações afetivas, vínculos em que há comprometimento amoroso. Assim, é imperioso reconhecer a existência de um gênero de união estável que comporta mais de uma espécie: relações hetero e homoafetivas. Ambas fazem jus à mesma proteção. Enquanto não surgir legislação que regule especificamente as uniões homossexuais, é de aplicar-se a legislação pertinente aos vínculos familiares.

 

Indispensável que se passe a aceitar que os vínculos homoafetivos configuram uma categoria social que não pode mais ser discriminada ou marginalizada pelo preconceito. Está na hora de o Estado, que se quer democrático e que consagra como princípio maior o respeito à dignidade da pessoa humana, reconhecer que todos os cidadãos dispõem do direito individual à liberdade, do direito social de escolha e do direito humano à felicidade.

 

 

 

 

[1] A Proposta de Emenda à Constituição nº 139/95 encontra-se na íntegra em minha obra “União Homossexual: o preconceito e a Justiça”. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.

 

[2] O texto do Projeto e do Substitutivo encontram-se em minha obra “União Homossexual: o preconceito e a Justiça”. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.

 

[3] RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Oitava Câmara Cível. Relações homossexuais. Competência para julgamento de separação de sociedade de fato dos casais formados por pessoas do mesmo sexo. Agravo de Instrumento nº 599 075 496. Relator o Desembargador Breno Moreira Mussi. Porto Alegre. 17 de junho de 1999. O acórdão, em sua íntegra, encontra-se publicado em minha obra “Homoafetividade: o que diz a Justiça”. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.

 

[4] Merece registro que o Rio Grande do Sul é o único Estado que dispõe de câmaras recursais especializadas, tendo a competência definida por matéria.

 

[5] RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Oitava Câmara Cível. Agravo de Instrumento nº 599 075 496. Relator o Desembargador Antônio Carlos Stangler Pereira. Porto Alegre. 13 de abril de 2000.

 

[6] A referência é ao Código Civil de 1916, mas o artigo está reproduzido no art. 981 do atual Código Civil.

 

[7] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Sociedade de fato. Homossexuais. Partilha do bem comum. Recurso Especial nº 148897. Relator o Ministro Ruy Rosado de Aguiar. Brasília. 06 de abril de 1998.

 

[8] RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Sétima Câmara Cível. Apelação Cível nº 70001388982. Relator o Desembargador José Carlos Teixeira Giorgis. Porto Alegre. 14 de março de 2001. O acórdão, em sua íntegra, encontra-se publicado em minha obra “Homoafetividade: o que diz a Justiça”. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.

 

[9] A íntegra da sentença de lavra do Juiz Federal Roger Raupp Rios, proferida nos processos 96.0002030-2 e 96.0002364-6, proferida em 09/7/1996, encontra-se em minha obra “União Homossexual, o preconceito e a Justiça”. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.

 

[10] Cópia da Instrução Normativa encontra-se em minha obra “União Homossexual, o preconceito e a Justiça”. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.

 

[11] As decisões proferidas nas AC 14.332/98 e AC 14.979/98 encontram-se em minha obra “União Homossexual, o preconceito e a Justiça”. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.

 

 

* Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM

 

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Como citar e referenciar este artigo:
DIAS, Maria Berenice. Uniões homoafetivas: uma realidade que o Brasil insiste em não ver. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2007. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-constitucional-artigos/unioes-homoafetivas-uma-realidade-que-o-brasil-insiste-em-nao-ver/ Acesso em: 14 dez. 2024