Direito Constitucional

Sistema de cotas sociais e raciais: ações positivas, justiça, direitos humanos e cidadania

INTRODUÇÃO

O presente texto versa discutir sobre as ações positivas de sistema de cotas sociais e raciais, uma vez que as políticas de ação afirmativa são muito recentes, e visam amenizar os danos causados pelo sistema escravagista, dos séculos XVIII e XIX. Essas políticas buscam oferecer aos grupos discriminados e excluídos um tratamento diferenciado para compensar as desvantagens devidas à sua situação de vítimas do racismo e de outras formas de discriminação. No Brasil, o princípio da igualdade é preceito constitucional, elencado no art. 5º da Constituição Federal, que cuida de resguardar os direitos e garantias individuais dos cidadãos em termos formais, mas também em termos materiais, visando que esses corrijam ou amenizem as desigualdades sociais históricas (BRASIL, 1988).

As ações afirmativas são políticas compensatórias mais adequados para afirmar e materializar a igualdade perante a sociedade. Buscando um resgate social àqueles que foram ao longo da história discriminados foi introduzido em nosso país o sistema de cotas sociais e raciais, conhecidas comoações afirmativas, e tonaram-se a questão do momento, sobretudo, no que se refere à adequação e viabilidade de se importar o modelo de cotas raciais norte-americano.

As primeiras discussões políticas acerca das ações afirmativas no país datam de 1951, todavia, a questão somente ganhou ênfase a partir das discussões acerca do Estatuto da Igualdade Racial e a adoção da denominada Política de Cotas Raciais em algumas instituições de ensino no país, cite-se, ilustrativamente, a Universidade de Brasília (UnB). Tal modelo nos é apresentado como se tratasse de uma evolução do Princípio da Igualdade numa concepção fraterna. Ademais, adotam como fundamentação filosófica em prol das Políticas de Cotas Raciais a Teoria da Justiça Compensatória e Teoria da Justiça Distributiva.

O sistema de cotas raciais nas universidades públicas brasileiras, implantado como políticas afirmativas para diminuir as diferenças sociais existentes entre brancos e negros, fomentados pelo sistema escravagista dos séculos XVIII e XIX, que causado danos de incalculáveis proporções a todos que dele foram vítimas, essa política social de desenvolvimento busca minimizar suas consequências.

O presente texto ora vem a lume objetivando esclarecer as denominadas políticas afirmativas ou ações afirmativas, sua definição como instituto jurídico e seu surgimento histórico. A pesquisa descritiva e exploratória buscou descrever, explicar, classificar e esclarecer o problema apresentado e aprimorar as ideias por meio das informações sobre o tema em foco. A Lei 12.711/2012 criou e instituiu a política de cotas sociais e raciais no ensino superior, a qual determina que no mínimo 50% das vagas destinadas as instituições de ensino públicas sejam destinados aos estudantes de ensino médio cursado em instituições públicas.

O sistema de cotas no Brasil existe desde o início dos anos 2000, quando a UnB decidiu fazer reserva de vagas para alguns candidatos em seu processo seletivo. A Lei de Cotas prevê a destinação de vagas para estudantes de escolas de públicas e, dentro dessa reserva, algumas vagas são para autodeclarados pretos, pardos ou indígenas, ou seja, essa divisão inicial 25% são destinadas aos estudantes com renda familiar bruta igual ou inferior a um inteiro e cinco décimos do salário-mínimo, enquanto os outros 25% são destinados aos negros, pardos e índios, sem qualquer critério de renda máxima ou mínima.

Ante o exposto, o texto objetiva esclarecer se a política de cotas sociais e raciais, adotada pelo Brasil, está em consonância com os princípios constitucionais. A metodologia utilizada teve por base o método hipotético-dedutivo, que permeia o desenvolvimento do tema proposto. Para alcançar o objetivo apresentado foi feito, essencialmente, uma compilação de pesquisas bibliográficas, na qual serão explorados livros dos principais doutrinadores, artigos, legislação, notícias e entrevistas, com o intuito de solidificar e embasar o referencial teórico, estabelecendo-se interseção entre as áreas jurídica, administrativa, social e econômica, que possuam relevância para a elaboração do texto.

1. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO SISTEMA DE COTAS

Historicamente, a desvalorização do negro ao longo de décadas, fez com que os mesmos fossem expulsos e continuamente empurrados para as margens da sociedade, sem a menor condições de mobilidade social, sendo negado às mesmas vagas nas escolas públicas e muito menos nas instituições de ensino superior. Na atual sociedade, os negros, ainda desenvolvem trabalhos e serviços em locais inadequados, sob condições insalubres e que, mesmo os brancos igualmente pobres, não realizam (MAGGIE; FRY, 2004).

A classificação do sistema de cotas está dentro das ações afirmativas, pois as políticas de cotas raciais têm a intenção de provocar o resgate de uma dívida social a um segmento da sociedade que, historicamente, vem sendo discriminado. É sabido que a origem e formação do povo brasileiro que não permitem classificá-lo como advindo de uma única raça, ao contrário, uma miscigenação de raças. O debate sobre a política de cotas sociais e raciais possibilitará que se coloque em evidência a história de lutas travadas pelos negros que buscam igualdade de direitos e obrigações.

Existe a necessidade de reflexões acerca do que implica “ser negro” no Brasil, pois infelizmente a forma como a nossa sociedade trata o indivíduo, é influenciada pelas características físicas do mesmo, deve-se refletir acerca das ações inclusivas a este segmento estão sendo organizadas, para que haja o fortalecimento e o entendimento de que as diferenças existem, e devem ser trabalhadas de forma unificada e não individualizada. Infelizmente, a escravidão colaborou para a discriminação racial e o agravamento da exclusão social de negros/pardos. Segundo Maggie e Fry (2004) no Brasil, as cotas raciais começam a ser implantadas na década de 1990, pelas reivindicações do movimento negro por ações mais igualitárias e políticas de não segregação e não discriminação, impulsionadas por lutas de organizações não governamentais, da sociedade civil.

Para Amaro (2005), entre essas ações, encontra-se a política de ações afirmativas que representa qualquer política que, operando com o critério de discriminação positiva, vise favorecer grupos socialmente discriminados por motivo de sua raça, religião, sexo e etnia e que, em decorrência disto, experimentam uma situação desfavorável em relação a outros segmentos sociais. Cruz (2005) destaca que a política de ações afirmativas possui o viés de sanar dívidas sociais adquiridas com a sociedade, evidenciando que não precisam ser vistas como um “favor”, e sim como um direito adquirido, pois as ações afirmativas têm guarida no texto constitucional vigente, como se depreende do artigo 3°, inciso IV da Constituição Federal (BRASIL, 1988).

Segundo Brandão (2005), os negros e pardos representam 69% da população pobre em nosso país, e 68% dos indigentes, consequentemente, a baixa remuneração, e ao baixo indicie de escolaridade, contribui para que pouquíssimos negros ingressem nas escolas e consequentemente no ensino superior, em outras palavras, a discriminação e desvalorização do negro na sociedade brasileira fizeram e fazem com que os mesmos, ao longo dos anos fossem empurrados para as margens da sociedade, ou seja, foram expulsos do meio, vivendo sem condições de construírem e conquistarem melhores postos de trabalho e remuneração.

Para Amaro (2005), desde 2002, com decretos oficiais do governo federal a luta para superar as situações de discriminações raciais e desvantagens sociais tem ganhado força, pois está promovendo as políticas afirmativas para superar a exclusão social pelo sistema de cotas, que é instrumento para a implementação das ações afirmativas, pois através das cotas é reservado um percentual de vagas, em determinadas instituições, destinadas àquelas pessoas que tradicionalmente são excluídas.

Dessa forma, entendemos que existe a real necessidade da implementação de ações afirmativas, visando alcançar um patamar de igualdade de condições, embora haja por vezes, o favorecimento de determinados grupos sociais, em detrimento de outros. Essas ações possuem por objetivo diminuir as desigualdades sociais para alcançar bens essenciais da vida, uma vez que houve limitação de direitos, não restando duvidas, que as discriminações positivas, são ferramentas úteis e necessárias contra a desigualdade social e racial. Uma vez que, no Brasil, o sistema segregacionista repartiu a sociedade entre pobres e ricos, brancos e negros, desta feita, acreditamos que para diminuir a discrepância existente até os dias de hoje, é necessário que as ações afirmativas, sejam mais efetivas e contundentes para diminuir as desigualdades sociais.

2. ORIGEM DAS COTAS

Segundo Kaufmann (2007), foi no início do século XVII que se iniciou a colonização britânica da América, por volta de 1607, em razão do capitalismo e do início da produção industrial, muitos camponeses foram expulsos de suas terras que agora eram utilizadas na produção de matéria-prima para a indústria têxtil. Ademais, nesse mesmo período, com a contra reforma da Igreja Católica, intensificaram as perseguições religiosas aos protestantes ingleses.

Pelo histórico, sabemos que os ingleses que se instalaram em terras norte-americanas não possuíam as mesmas intenções dos imigrantes portugueses, que tinham como finalidade apenas extrair as riquezas das colônias e levar para seu país de origem. Pelo contrário buscavam construir uma nova sociedade, uma nova Inglaterra, que lhes oferecesse propriedade e certa tolerância religiosa, pois as famílias imigrantes eram compostas em sua maioria por camponeses que foram expulsos de suas terras e perseguidos religiosos (KAUFMANN, 2007).

Faremos uma breve análise histórica sobre a colonização dos Estados Unidos da América, pois segundo Passeti (2005) a produção da colônia norte-americana, não ficou vinculada à metrópole inglesa, pois em decorrência da semelhança climática entre colônia e metrópole, eram produzidos basicamente os mesmos produtos produzidos na Europa, proporcionando o surgimento do forte comércio interno e a produção de manufaturas na colônia, já nas colônias do sul prevaleceu a produção de produtos tropicais para atender à metrópole inglesa. No contexto exposto, entendemos que embora a colonização tenha ocorrido no mesmo país, o processo utilizado nas províncias do norte e do sul foram totalmente diversos.

Em 04 de julho de 1776, com a independência as diferenças se tornaram mais evidentes, pois ficou evidente que no mesmo país, viviam duas civilizações completamente distintas e em constante conflito, pois enquanto o norte se caracterizava pela modernidade e industrialização; nos estados do sul predominava um pensamento rurícola de uma sociedade aristocrática (PASSETI, 2005). Assim, entende-se que no norte a causa abolicionista era defendida, uma vez que era visualizado o aumento do mercado consumidor de seus produtos industrializados com a adoção do trabalho assalariado, já para os sulistas o fim da escravidão arruinaria a economia local, pois naquela região era a mão-de-obra escrava, que predominava.

Segundo Kaufmann (2007) no meio desse conflito de interesses entre norte e sul, os senhores sulistas, objetivando a manutenção do regime escravocrata, passaram a difundir ideias de superioridade racial, vendendo a tese de que os negros eram uma raça inferior e incapaz de viver em uma sociedade civilizada. Passeti (2005) afirma que a origem do Compromisso de 1820 ou Compromisso de Missouri teve como causa os conflitos entre norte e sul do país, em razão da causa escravista, pelo qual o sistema escravista somente poderia ser utilizado por algumas províncias norte-americanas, em sua maioria sulistas.

O Compromisso de Missouri contribuiu para dividir ainda mais o país, pois a aparente tranquilidade produzida pelo Compromisso de Missouri foi quebrada pela decisão da Suprema Corte norte-americana no caso Dred Scott vs StandFord. Nas palavras de Kaufmann (2007), o julgamento do referido caso a Suprema Corte norte-americana declarou inconstitucional qualquer lei ou norma estadual ou local que estabelecesse a proibição do trabalho escravo dentro dos limites de sua jurisdição, frustrando assim, as expectativas que os abolicionistas haviam depositado no Compromisso de Missouri. Segundo Passeti (2005), o início da Guerra de Secessão se deu com a eleição de Abraham Lincoln para presidência dos Estados Unidos da América em 1860.

No entendimento de Passeti (2005), nesse período se verificava um posicionamento segregacionista por parte dos norte-americanos, pois, embora mais de 200.000 negros tenham lutado pelo Norte, os mesmos eram organizados em batalhões segregados, nos quais a comida era inferior, os médicos menos experientes, enfim, suas condições eram inferiores às dos batalhões compostos por americanos brancos, e que precisamente em 09 de abril de 1865, sem qualquer condição de oferecer resistência, os estados separatistas se renderam.

Diante da ruina e da dificuldade pós-guerra, é que deu o início ao regime de segregação racial, denominado Jim Crow, pois os norte-americanos brancos culpavam os negros pela escassez de mercado de trabalho, e pela caótica situação em que passava o país, por causa da Guerra (KAUFMANN, 2007). O grau de segregação no pós-guerra civil dos Estados Unidos da América era tão grande, que a maioria dos norte-americanos achavam que não valia a pena o esforço, nem o custo de educar os negros, segundo o historiador John Hope Franklin (KAUFMANN, 2007).

A primeira vez que as cotas raciais, foram implantadas como ações afirmativas, foi em 1960, nos Estados Unidos América, para diminuir a desigualdade socioeconômica e educacionais entre brancos e negros. É de bom alvitre lembrar, que o combate às discriminações e desigualdades historicamente acumuladas, ou seja, as ações afirmativas possuem um caráter temporário, pois as mesmas são utilizadas apenas enquanto houver os desequilíbrios sociais sofridos pelo grupo beneficiado. Dessa feita, justifica-se o sistema de cotas raciais e sociais para determinadas minorias, que na verdade são maioria, quando diante de um processo histórico esse grupo foi e está prejudicado, por não alcançar ou ter dificultado o acesso à educação e mobilidade social, colocando-os as margens da sociedade, situação que se arrasta por determinado período de tempo.

Assim, com as discriminações positivas, alcança-se com maior brevidade de tempo e consciência de classe a superação das desigualdades impostas por uma minoria, alcançando dessa forma, o equilíbrio e a igualdade social, uma vez, que todos terão oportunidades de mobilidade socioeconômica, alcançando a igualdade social almejada através do sistema de cotas raciais e sociais, uma vez, que não se pode fechar os olhos ou ignorar os problemas sociais e as condições desiguais da maior parcela da sociedade brasileira em detrimento de uma minoria que se mantem assim por ter privilégios e não direitos com os demais cidadãos negros e pobres.

3. COTAS NO MUNDO

O sistema de cotas, não se restringiu aos Estados Unidos da América, uma vez que outras experiências aconteceram em diversos países. Buscando alcançar esse objetivo, com a sua independência, a Índia adotou o sistema de cotas, alcançando êxito ao garantir assento no parlamento a representantes das castas inferiores (intocáveis). A Malásia também adotou o sistema em 1968, na Europa, utiliza-se a expressão “ação ou discriminação positiva” e em 1982, a “discriminação positiva” foi inserida no primeiro “Programa de Ação para a Igualdade de Oportunidades” da Comunidade Econômica Europeia. O sistema também é amplamente utilizado pela África do Sul, no Canadá, na Austrália, na Nova Zelândia e na Colômbia. Outros países como Peru, Bolívia e Equador discutem sobre o ensino superior indígena.

Com a breve leitura dos parágrafos acima, podemos observar que as desigualdades sociais não são “privilégios” de determinado país ou etnia, podemos entender, que as desigualdades socioeconômicas estão em todos os lugares do globo terrestre, entretanto, o que diferencia o tratamento de um ou outro país ou nação, é o modo pelo qual cada nacionalidade ou povo trata os seus desiguais, se na medida da sua desigualdade, assegurando ações afirmativas, ou seja, discriminações positivas, ou simplesmente “viram as costas”, para as más condições de vida, saúde, educação e oportunidades, colocando-os as margens da sociedade ignorando a sua existência.

Assim, entendemos que o sistema de cotas é utilizado por vários países do globo terrestre, como ação afirmativa que visa recompensar determinados grupos sociais que foram prejudicados no decorrer da história, promovendo um processo de inclusão social, visando diminuir a desigualdade.

4. COTAS NO BRASIL

O sistema de cotas adotado no Brasil deve se basear no critério da cor da pele para a admissão de negros e índios nas universidades, atualmente, o Brasil possui a segunda maior população negra do mundo (atrás apenas da Nigéria) e é inegável que o país tem uma dívida histórica com negros e indígenas.

O sistema de cotas raciais no Brasil não beneficia apenas os negros, pois nas instituições públicas da região norte, por exemplo, é comum a reserva de vagas ou empregos para indígenas e seus descendentes, e algumas universidades também destinam parte de suas vagas para candidatos pardos. Buscando superar as desigualdades socioeconômicas e alcançar uma maior equidade social, o Brasil começou a adotar o sistema de cotas nas universidades, no ano de 2000, vejamos alguns exemplos.

A Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) foi a primeira instituição a adotar o sistema de cotas raciais no Brasil, no ano de 2003, e através de lei estadual que garantia 50% das vagas nas universidades do Estado para estudantes das redes públicas municipais e estaduais de ensino. A UnB foi à primeira universidade pública a adotar as cotas, através do Plano de Metas para Integração Social, Étnica e Racial aprovada pelo Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão, da própria universidade, disponibilizando 20% do total de suas vagas para cotistas. Para ingressar na UnB através do sistema de cotas o candidato precisa preencher os seguintes requisitos:

Para ingressar na universidade pelo Sistema de cotas para Negros, o candidato deverá ser negro, de cor preta ou parda (mestiço de negros) e optar pelo sistema.

O interessado deve obter, no mínimo:

Nota maior que zero na prova de língua estrangeira;

10% da nota na prova de Linguagens e Códigos e Ciências Sociais;

10% da nota na prova de Ciências da Natureza e Matemática;

20% da nota no conjunto de provas.

A Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) incluiu a política de cotas em seu vestibular a partir de 2007. Já a Universidade Federal do Pará (UFPA), através da Resolução nº 3361/2005 do Conselho Superior de Ensino e Pesquisa, incluiu a política de cotas no seu processo seletivo em 2006, e destinou 50% de suas vagas para alunos egressos de escolas públicas, sendo 40% dessas vagas destinadas àqueles candidatos autodeclarados negros ou pardos.

Baseando-se nas projeções do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística e conforme prevê o artigo 2º do projeto de lei o percentual destinado aos negros deverá ser proporcional à quantidade de negros, pardos e índios existentes na unidade da federação onde estiver localizada a instituição de ensino. Os projetos (Estatuto da Igualdade Racial e Lei de Cotas Raciais) à época, requeriam benefícios para os negros, pardos e afrodescendentes nas políticas públicas, entretanto, o estatuto requeria ações em todos os setores da sociedade, para alcançar não apenas a inclusão, como um tratamento diferenciado aos indivíduos intitulados afrodescendentes, como se observa:

Art. 13. O Ministério da Saúde fica autorizado a produzir, sistematicamente, estatísticas vitais e análises epidemiológicas da morbimortalidade por doenças geneticamente determinadas ou agravadas pelas condições de vida dos afro-brasileiros. Art. 27. É facultado aos praticantes das religiões de matrizes africanas e afro-indígenas ausentar-se do trabalho para a realização de obrigações litúrgicas próprias de suas religiões, podendo tais ausências ser compensadas posteriormente (BRASIL, PL 6.264/2005).

Já a Lei de Cotas Raciais, objetiva ações específicas na área da educação:

Art. 70. O Poder Público adotará, na forma de legislação específica e seus regulamentos, medidas destinadas à implementação de ações afirmativas, voltadas a assegurar o preenchimento por afro-brasileiros de quotas mínimas das vagas relativas: I – aos cursos de graduação em todas as instituições públicas federais de educação superior do território nacional; II – aos contratos do Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (BRASIL, PL 6.264/2005).

Santos (2014), explica, que até o advento da Lei 12.711/2012, os institutos federais de ensino, dentro de sua autonomia didático-científica, instituíam os critérios de acesso de candidatos aos cursos de graduação através das cotas, ou seja, cada Instituto utilizava-se de critérios diferenciados. E esse fato fomentou diversas decisões nos Tribunais. Com a aprovação da Lei 12.711/2012 uniformizou a aplicação da política cotas, e consequentemente as decisões do Judiciário (BRASIL, 2012). Calcados na autonomia didático-cientifica os Institutos, em sua grande maioria, criaram programas de ações afirmativas, consignada no artigo 207 da Constituição Federal de 1988 bem como pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (BRASIL, 1988).

Santos (2014) entende que a reserva de vagas se destina aos alunos que cursaram integralmente o ensino médio em escolas públicas, e cita a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.394/1996) que distingue as instituições de ensino entre públicas e privadas. Coadunamos com o entendimento de Santos (2014), quando explica a diferença patente de ensino entre a escola pública e a privada no que diz respeito à previsão da integralidade do período cursado em escola pública, visando evitar distorções e vedando a admissão como beneficiários da norma, os alunos que não se submeteram, ao ensino público.

Entendemos que as ações afirmativas ao criar a discriminação positiva, objetiva dar acesso aos negros, índios, deficientes, estudantes de escola públicas e demais grupos que se encontram inseridos nas minorias sociais, ou seja, busca minimizar as desigualdades geradas por determinados fatos sociais ou históricos, mas que impede que estes grupos tenham mobilidade social, melhor qualidade de vida ou o simples poder de poder escolher o seu futuro, dando a estes jovens, esperanças de dias melhores. Por fim, apesar da aprovação da Lei 12.711/2012 autorizadora das cotas para os alunos provenientes do ensino Público, cotas sociais e as também chamadas cotas raciais, o assunto ainda gera muita polêmica e debates (BRASIL, 2012).

5. AÇÕES AFIRMATIVAS

Já afirmava Aristóteles (2001, p. 19) que “se as pessoas não são iguais, não receberão coisas iguais”. Assim, o filósofo nada mais quis dizer senão que devemos tratar os desiguais de forma diferenciada para alcançarmos a igualdade e oportunidades. Desta feita, entendemos que o Estado Social, procura reduzir as desigualdades incrustadas na sociedade, ou seja, o constitucionalismo em conjunto com o princípio da igualdade não se prende à igualdade perante a lei, mas busca oferecer iguais oportunidades para a realização dos objetivos de cada cidadão. Por considerar o conceito mais completo, citaremos o entendimento do Ministro Gomes (2001, p. 40-41):

Atualmente, as ações afirmativas, podem ser definidas como um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à discriminação racial, de gênero e de origem nacional, bem como para corrigir os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como a educação e o emprego. Diferentemente das políticas governamentais antidiscriminatórias baseadas em leis de conteúdo meramente proibitiva, que se singularizam por oferecerem às respectivas vítimas tão somente instrumentos jurídicos de caráter reparatório e de intervenção ex post facto, as ações afirmativas têm natureza multifacetária, e visam a evitar que a discriminação se verifique nas formas usualmente conhecidas – isto é, formalmente, por meio de normas de aplicação geral ou específica, ou através de mecanismos informais, difusos, estruturais, enraizados nas práticas culturais e no imaginário coletivo. Em síntese, trata-se de políticas e mecanismos de inclusão concebidas por entidades públicas, privadas e por órgãos dotados de competência jurisdicional, com vistas à concretização de um objetivo constitucional universalmente reconhecido – o da efetiva igualdade de oportunidades a que todos os seres humanos têm direito.

Com esta definição tão completa, ousaremos dizer que no nosso humilde entendimento, compreendemos que as ações afirmativas buscam promover a igualdade entre grupos historicamente preteridos ou discriminados em uma sociedade, e além de prevenir, buscam coibir e punir a discriminação, gerando condições para que a parcela da população segregacionada tenham melhores condições sociais.

No Brasil as ações afirmativas se desenvolveram através de debates e ensaios históricos de outros países que já haviam implantado essa política, pois entendeu-se por necessário, ao levar em consideração que o Brasil viveu 358 anos de escravidão, quando se compara os 500 anos de descobrimento, triste realidade, onde infelizmente perpetua-se o racismo e a discriminação ao levar em consideração que um ser humano é inferior ao outro por causa da sua tonalidade de pele, deixando os mesmos a margem da sociedade, negando aos homens, mulheres e crianças o direito a melhores condições de vida, pois ao cercear o acesso à educação, mercado de trabalho, retiram-lhes o direito a igualdade e dignidade.

Historicamente, as políticas públicas brasileiras se caracterizam pela adoção de uma perspectiva social, com medidas assistencialistas contra a pobreza. Atualmente, as ações afirmativas possuem previsão Constitucional principalmente, quando traça os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, e esta prevê expressamente incentivos ao mercado de trabalho da mulher, como parte dos direitos sociais, e a reserva percentual de cargos e empregos públicos para deficientes. Na atualidade, os movimentos sociais exigem uma mudança de postura diante de questões sociais, étnicas, econômicas e regionais, e a adoção de medidas específicas para sua solução, ou seja, as ações afirmativas.

Entende-se que as ações afirmativas são medidas efetivas para garantira a igualdade de direitos para aquela parcela da sociedade que viveu um passado de opressão, e ainda vive indiretamente as consequências dessa falta de oportunidade, pois evidente que ao ter seus direitos roubados, também tiveram as oportunidades, sonhos e melhores condições de vida e mobilidade social. E que através das ações afirmativas, é que o direito a igualdade de oportunidades será efetivado, uma vez que são autorizadas pelo sistema constitucional brasileiro, e extremamente reconhecidas e necessárias para se alcançar não apenas o direito na formalidade, mas como os direitos fundamentais descritos no artigo 3º de nossa Carta Magna.

6. RELACIONAMENTO INTER-RACIAL NO BRASIL

Está consagrado no caput do artigo 5º da Constituição Federal de 1988, o princípio da igualdade nos termos: “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza” (BRASIL, 1988). Segundo Alexandrino (2008) não é simples compreender o verdadeiro sentido do direito à igualdade, “tratar-se desigualmente os desiguais na medida de suas desigualdades”, deve-se identificar com precisão a realidade social na qual se objetiva assegurar a igualdade, assim como o fator de discriminação eleito com o objetivo de atingir a igualdade substancial.

A igualdade substancial surge com a finalidade de materializar o real tratamento igualitário, ou seja, tratar os desiguais na medida de suas desigualdades, tratando os indivíduos de maneira diferente, como estabelece a norma constitucional (ALEXANDRINO, 2008). Alexandrino (2008) esclarece que tal princípio constitucional não veda a adoção de tratamentos diferenciados entre pessoas que guardem distinções de natureza social, de sexo, profissão, entre outras, desde que o critério diferenciador adotado seja razoável. Observamos que o princípio da igualdade aspirada pela Constituição Federal não se satisfaz apenas com a igualdade formal, mas busca o tratamento igual aos que se encontre em situação equivalente e que se tratem de maneira desigual os desiguais, na medida de suas desigualdades. Assim, o objetivo central do sistema de cotas é melhorar as condições socioeconômicas de uma população pobre e desfavorecida, através da facilitação do ingresso de seus integrantes ao ensino superior.

O sistema tem por objetivo o favorecimento da igualdade racial e social pelo aumento de oportunidades aos negros e pobres, que por serem historicamente desfavorecidos, hoje compõem grande parcela da população. Infelizmente entendemos que apesar de necessária e eficiente, a política de cotas ainda não é aceita nem compreendida por parcela dos cidadão brasileiros, uma vez que, as cotas sociais, assim como as cotas raciais visam diminuir a desigualdade social, ou seja, a igualdade formal, contribuindo para que os alunos ingressem nas universidades públicas, adotando critérios como renda familiar e alunos egressos de escolas públicas, pois a educação de qualidade deve ser para todos, não apenas para os favorecidos economicamente, buscando garantir a igualdade material, ou seja, visa alcançar a igualdade de fato e de direito.

CONCLUSÃO

Conforme se abstrai do presente texto, a busca pela igualdade como concretização da justiça social é desejada por todos os povos desde a antiguidade, uma vez que esta existe desde os primórdios da sociedade.

A Constituição Federal de 1988 traz em seu corpo normativo, várias ferramentas para que os cidadãos combatam esses males que os tem perseguido por toda a história, ou seja, a discriminação e o preconceito. Sabemos que a concretização de muitos direitos e deveres previstos nas leis depende das políticas públicas patrocinadas pelo Estado. Não se pode fechar os olhos para nossa realidade social e as dificuldades enfrentadas pelas classes sociais menos favorecidas de nosso país, logo, o desenvolvimento das classes menos favorecidas, inclusive dos afrodescendentes, indígenas, etc.

A adoção das ações afirmativas é necessária, e a limitação de tais direitos aqueles que sofreram e sofrem os efeitos da escravidão, ensejará em inegável retrocesso em nosso desenvolvimento social. Não há dúvidas de que as ações afirmativas são as melhores armas contra a desigualdade. Observou-se, no decorrer do presente trabalho, que em nosso país houve e há uns sistemas segregacionistas, com a divisão de nossa sociedade em brancos e negros, e também em pobres e ricos, de modo que o modelo de ação afirmativa adequado à nossa realidade deve levar em consideração ambos fatores.

Sabemos que a igualdade consagrada pela Constituição Federal de 1988 não deve ser interpretada no seu sentido literal. Pois devemos considerar as diferenças de certos grupos ou de cada caso concreto, buscando alcançar a igualdade material, concreta e efetiva, uma vez que a própria lei assegura a discriminação com a finalidade de proteger e assegurar direitos de determinadas pessoas ou grupos, pois o que a Carta Magna proíbe, são as discriminações arbitrarias e preconceituosas. Diante da necessidade de alcançar um patamar de igualdade de condições perante os bens considerados essenciais a vida, por vezes se faz necessário o favorecimento de determinadas pessoas em detrimento de outras, assim, busca-se através da discriminação positiva ou ações afirmativas diminuir as desigualdades havidas em relação às pessoas ou grupos em posição de inferioridade.

As ações afirmativas são medidas privadas ou políticas públicas objetivando combater as desigualdades, resultantes do histórico de marginalização social ou de hipossuficiência decorrente de outros fatores, e busca estabelecer medidas de compensação, objetivando igualar as oportunidades dos indivíduos que sofreram ou herdaram as restrições socioeconômicas. Na realidade, as ações positivas é a materialização da aplicação do princípio da igualdade material que visa igualar pessoas ou grupos que se encontrarem em posição de inferioridade a determinados fatos ou situações. Sabemos que a igualdade formal não garante a acessibilidade de oportunidades a todos os indivíduos, pois alguns gozam de privilégios e outros não. 

Como foi possível observar, o instituto da discriminação positiva, institui um favorecimento a uma minoria de indivíduos marginalizados e inferiorizados, por consequência de um passado histórico e cultural discriminatório. O sistema de cotas raciais ou sócias devem ser compreendidos como uma compensação, ou seja, o pagamento de uma dívida histórica que a sociedade possui com aqueles indivíduos que foram injustiçados.

Pois sabemos que no nosso país não houve apenas um sistema segregacionista, mas também uma sociedade separada entre ricos e pobres, e entendemos que o modelo de ação afirmativa adequado à nossa realidade deve ser as cotas raciais e sociais, para que os direitos de gerações inteiras sejam garantidos. Deve a sociedade buscar compreender os fatos e contextos históricos no qual a sociedade está inserida, ou seja, é necessário que se compreenda a real necessidade da utilização de ações afirmativas, com a intenção de evitar a reprodução de preconceitos, que a sociedade desenvolva a crítica, que é a raiz de todo mal social atual.

O objetivo principal da implantação do sistema de cotas raciais e sociais é beneficiar a população negra, indígena e pobre, assim como seus descentes, oportunizando acesso ao ensino superior, uma vez, que os mesmos são vítimas da própria sociedade. Compreendemos que as políticas afirmativas de cotas sociais e raciais, são necessárias e garantidoras ascensão social através da educação, pois ao marginalizados, é garantido a igualdade de acesso às escolas, universidades e por consequência, a melhores trabalhos e salários, o que lhes garante uma maior e melhor qualidade de vida, resultando numa sociedade mais igualitária social e economicamente.

Assim, ousamos afirmar, que as ações afirmativas atingem dimensões práticas e alcançam resultados concretos no cotidiano de toda uma coletividade, pois a discriminação positiva está em plena sintonia com o princípio da igualdade, pois busca reduzir as desigualdades injustificáveis e desmotivadas com a finalidade de alcançar a igualdade para todos. Pois as políticas de cotas englobam questões de âmbito social, histórico e político, entretanto, os seus efeitos, não surtirão efeitos imediatos, pois é um tipo de ação a longo prazo, ou seja, requer tempo, e com o decorrer de alguns anos, a população visualizará que houve desenvolvimento e melhorias em todo contexto social. Por todo exposto, conclui-se que as cotas raciais são constitucionais.

REFERÊNCIAS

AMARO, Sarita. A Questão Racial na Assistência Social. Serviço Social e Sociedade. São Paulo, Cortez, 2005.

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Erika de Oliveira Cavalcanti

 Mestra em Segurança Pública e Graduada em Direito pela Universidade Vila Velha (UVV) e assessora em assuntos na área do Direito.

 

Riberti de Almeida Felisbino

 Doutor, Mestre e Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e assessor em assuntos na área de Ciências Sociais.

Como citar e referenciar este artigo:
CAVALCANTI, Erika de Oliveira; FELISBINO, Riberti de Almeida. Sistema de cotas sociais e raciais: ações positivas, justiça, direitos humanos e cidadania. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2020. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-constitucional-artigos/sistema-de-cotas-sociais-e-raciais-acoes-positivas-justica-direitos-humanos-e-cidadania/ Acesso em: 07 nov. 2024