Quebra do Sigilo Telefônico, Bancário ou Fiscal
Cândido Furtado Maia Neto*
As investigações policial, criminal ou administrativa, no Estado Democrático de Direito, conforme instituído pela República Federativa do Brasil (“ex vi” art. 1º CF), possui limites legais expressos que não podem ser violados sob pena de inobservância dos princípios do devido processo, do contraditório e da ampla defesa, conforme previsto nos incs. liv, lv do art. 5.º da Carta Magna vigente.
Reza a lei n.º 9.296/96, sobre o sigilo telefônico, não há razoabilidade que justifique uma escuta telefônica sem demonstração efetiva de ser o único modo de descobrimento para a produção probatória da verdade. Outros meios permitidos em direito devem ser utilizados para investigar uma infração penal, somente no “último caso”, como prevê a Carta Magna, e não como “prima ratio”, usualmente utilizada e solicitada pela polícia e pelo Ministério Público.
O Código Brasileiro de Telecomunicações (Lei n.º 4.117/62), no seu artigo 56 tipifica o crime de violação de telecomunicações, e a “lex fundamentalis” por sua vez, no inciso XII, do art. 5.º, assegura a inviolabilidade de dados e das comunicações telefônicas, do direito da personalidade e da intimidade como essencial da pessoa humana, em preservação da dignidade e da honra.
A literatura especializada e mais acatada nos meios acadêmico e forense se manifesta no sentido de que a prova ilícita se traduz em colheita duvidosa e ilegítima, descompondo o procedimento constitucional-penal democrático.
No aspecto penal (material e adjetivo), o princípio da individualização da investigação e da penalização devem ser respeitados, posto que pode a escuta telefônica invadir a esfera da intimidade ou a privacidade de terceiro que usa ou use o mesmo terminal, e nada tenha haver com o fato “sub examine” investigado; bem como, na hipótese de conta-bancária conjunta ou de pessoa jurídica societária. A quebra do princípio da personalidade produz anarquia processual, ou seja, nulidade absoluta.
Dentro da hipótese da quebra do sigilo telefônico, bancário ou fiscal não há a possibilidade de realização do contraditório ou da ampla defesa, a prova se manifesta em prejuízo flagrante a uma das partes litigantes, por não possuir meios para contraditar ou exercer constitucionalmente a defesa plena.
A quebra do sigilo telefônico pode se tornar no curso da investigação policial e no próprio processo penal prova ilícita ou ilegítima, sendo que a busca da verdade real possui limites certos no Estado Democrático de Direito, ante o caráter da tutela das garantias fundamentais da cidadania asseguradas pelas cláusulas pétreas.
Também a quebra do sigilo bancário ofende os imperativos da ordem econômica (art. 170 e sgts. CF) e do sistema financeiro nacional (art. 192 CF), posto que se fundamenta na valorização do trabalho e na livre iniciativa, onde se deve observar o princípio da propriedade privada.
Entendemos que as quebras dos sigilos telefônico, bancário ou fiscal, ainda que prevista a possibilidade por lei infra-constitucional, o ônus da prova incumbe, no processo penal a quem alega, isto é, compete ao Estado-Acusação (Ministério Público), mas não se admite, em hipótese alguma, devassa pessoal para o exercício do dever “probandi” estatal. Do contrário, não há mais que se falar em garantias fundamentais, mas em quebra de todo o sistema de garantias judiciais consagradas nos instrumentos internacionais de Direitos Humanos, de aceitação tácita universal e ratificados pelos Estados.
A prova ilícita no Código de Processo Penal é tratada segundo as restrições estabelecidas no capítulo próprio, e das questões referentes as nulidades processuais (ver arts. 155 e segts. e arts. 563 e segts do CPP). Qualquer ato processual ou procedimental que resulte prejuízo para a defesa ou para a acusação (Ministério Público) é nulo. Decretada a quebra do sigilo telefônico ou da movimentação bancária por pedido ministerial, é de ser argüida nulidade pela parte contrária, posto que irá influir substancialmente na decisão da causa, configurando de pronto, a quebra da imparcialidade judicial se for o mesmo juiz que autorizou proferirá a sentença, portanto, nulidade absoluta, visto que não mais poderá ser sanada ou recuperada a falha com o abuso flagrante da arbitrariedade estatal.
O direito constitucional como a legislação ordinária e as cláusulas de Direitos Humanos expressam a proibição de prova ilícita. Toda aquela que é produzida ou levada aos autos em prejuízo dos princípios do devido processo legal, da ampla defesa ou do contraditório (“ex vi” inc. lvi, art. 5º CF; art. 155 e segts. CPP; art. 25 Pacto de San José/OEA-1969), e mais, toda pessoa possui direito a um recurso rápido e simples contra atos do Estado, que violem garantias fundamentais reconhecidas pela Constituição.
O acusado ou investigado não está obrigado – pode fazê-lo se assim desejar, de acordo com sua discricionariedade, isto é de livre iniciativa – a fornecer provas em seu desfavor (RT 491/259), nem a declarar contra si mesmo; portanto, não está obrigado a autorizar a quebra do seu sigilo telefônico, bancário ou fiscal, fato que não deve ser interpretado em seu desfavor, visto que o “ônus probandi” incumbe a quem fizer, cabe ao órgão do Ministério Público demonstrar a prática do fato e sua autoria, sem, contudo violar garantias fundamentais da cidadania. A atuação e as requisições do Ministério Público possuem restrições legais, sua autonomia e independência funcional, não estão acima das cláusulas pétreas constitucionais.
O poder ministerial de requisição (de informações) contido no artigo 129, e 26, respectivamente, da Constituição federal e da Lei Orgânica Nacional do MP (n.º 8.625/93), não possui valor superlativo ou hierárquico quanto ao disposto no artigo 5.º e seus incisos da Carta Magna, onde os direitos individuais (respeito a privacidade e sigilos) são superiores as atribuições ou competências funcionais/institucionais.
Servidor ou qualquer agente político (inclua-se os representante do Ministério Público e magistrado) que ultrapassa limites legais ou desvia poder, sujeita-se a responsabilidade criminal (Lei n.º 4.898/65, art. 4º, letra “h”), onde a quebra do sigilo telefônico, bancário ou fiscal é ato lesivo contra garantia fundamental-constitucional, em total desrespeito ao princípio da presunção de inocência.
As cláusulas pétreas constitucionais asseguram o direito à intimidade e à privacidade (sigilos) e hierarquicamente são superiores a legislação que permite a quebra do sigilo telefônico, bancário e fiscal (Lei n.º 9.296/96; Lei Complementar n.º 105/2001; Decreto n.º 3.725/2001; Portaria SRF n.º 180/2001 e Portaria MF n.º 227/1998), estas por configurarem normas infra-constitucionais são de valor inferior, e ofendem os princípios da representação popular e da soberania e validade vertical das normas.
Um direito individual não pode ficar ao arbítrio ou a vontade pública ou coletiva. A devassa da vida privada ou a quebra da intimidade fere princípios éticos que ocasionam rupturas nos direitos da cidadania. O Estado necessita ser ético (Zaffaroni).
Não há como se justificar a sobreposição de interesse social ante a uma garantia fundamental individual, posto que, se assim for, não estaremos mais falando em Estado Democrático de Direito, mas em um debilitamento de todas as demais garantias, tanto penais como processuais, preleciona desta forma Luigi Ferrajoli (in “Derecho y Razón”, ed. Trotta, Madrid-1989), configurando um sistema de mera legalidade que correspondente a um “estado selvagem”, a um “direito constitucional-penal autoritário”, ou um a direito penal máximo em prejuízo do garantismo penal e da própria segurança jurídica.
Na chamada esfera da confidencionalidade não se permite consentimento legal ou discricionário estatal para sua quebra, posto que invade ilegitimamente direitos protegidos pelo Estado Democrático.
O “onus probandi” do órgão estatal encontra-se em escala inferior a dos direitos individuais (intimidade, privacidade). O exercício das liberdades individuais limita o arbítrio ou o dever dos agentes públicos no âmbito da interferência da vida privada.
Devemos esclarecer que a proteção de determinadas informações privadas de pessoa física ou jurídica não significa qualquer espécie de impunidade penal. O sistema jurídico e a máquina judiciária possuem meios e formas para a devida, justa e necessária responsabilização. A insegurança ao direito a intimidade ou da privacidade acarreta intranqüilidade social e fere princípios e valores constitucionais essenciais na relação indivíduo e Poder Público, especialmente no que se refere a cláusula da sociabilidade entre a intervenção estatal e os interesses fundamentais individuais.
Observo, ainda, que para qualquer expedição de mandado de busca e apreensão, o juiz de direito necessita de procedimento próprio, de pedido judicial em base a elementos fortes e convincentes, efetivamente determinando o local e a coisa certa a ser buscada e apreendida (art. 243 CPP); como se permitir a quebra do sigilo telefônico, bancário ou fiscal sem estes requisitos.
Tudo depende dos cânones da lei, do sistema formal estabelecido à luz dos princípios gerais de direito, em especial do direito constitucional e dos instrumentos de Direitos Humanos. A quebra do sigilo telefônico ou da movimentação bancária não gera simples irregularidade processual sanável, mas um vício absoluto de conseqüências irrecuperáveis, visto que pode ir além da pessoa do investigado ou do acusado, o que é mais grave ainda.
No caso de nulidade absoluta detectada deverá o juiz “ex officio” independentemente de provocação das partes realizar ato judicial de socorro, e não ao contrário, a pedido da parte acusadora (Ministério Público), autorizar e causar nulidade absoluta (com a quebra de sigilos).
Os instrumentos internacionais de Direitos Humanos, aderidos pelo governo brasileiro, através de processo legislativo próprio, que passaram a integrar o ordenamento jurídico pátrio, em base a validade e hierarquia vertical das normas vigentes, e aqueles de aceitação tácita universal, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos; o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, também preservam o direito a inviolabilidade da intimidade e da vida privada, onde “os Estados Partes se comprometem a assegurar integral respeito aos direitos econômicos individuais e coletivos, não podendo ser restringida nenhuma garantia fundamental; ademais expressam a proibição de prova ilícita, dentre eles cito o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (ONU) e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (OEA).
A própria Convenção Interamericana contra a Corrupção da Organização dos Estados Americanos (OEA) de 1969, estipula que o segredo bancário deve ser aplicado segundo as regras do direito interno de cada País. De acordo com disposições constantes em atos bilaterais que vinculam os Estados, requerente e requerido, mas mesmo assim, destaca que as utilizações das informações continuam especialmente protegidas pelo segredo bancário.
Repito, o Estado por intermédio de seus agentes ou órgãos não está autorizado a violar garantia fundamental, reconhecidas universalmente.
A movimentação ou saldo de conta-corrente bancária consta de informação no órgão competente, ou seja, a autoridade fazendária, através da Declaração Anual de Rendimentos, onde o cidadão tem o dever de informar por força de leis n.ºs 8.137/90 e 4.729/65. Qualquer dúvida, omissão ou indicação falsa, isto é adversa da veracidade deverá ser sanada via processo instaurado perante o órgão da Receita Federal, mas com as devidas garantias legais, e sem prejuízo de ação judicial competente por parte do contribuinte.
À Secretaria da Receita federal (ou estadual) compete o devido processo administrativo de fiscalização de contas e patrimônio particular (pessoa jurídica ou física).
Note-se que a ultima parte do inciso xii do art. 5.º da Carta Magna, é contraditório. Denominam os especialista de “dispositivo inconstitucional contido no texto da Constituição”; sendo por consequência inaceitável que a legislação ordinária autorize quebra do sigilo telefônico e/ou bancário-fiscal, vez que se choca frontalmente com o dispositivo básico e principal, inc. x do art. 5º CF.
Trata-se de um “aberratio iuris” semelhante as confissões extorquidas por meios físicos e mentais violentos (crime de tortura), e ao instituto da prisão temporária (lei n.º 7.960/89), inconstitucional para muitos juristas, pelo fato da norma vigente autorizar primeiro detenção para depois investigar, “mutatis mutantis”, nesta hipótese, quebra-se o sigilo bancário ou telefônico para investigar e posteriormente imputa-se um crime. O Estado Democrático de Direito não permite tal absurdo, vez que fere a garantia do “status” cidadão.
Não é admitido aniquilamento de garantia constitucional em base a argumentações ou pretextos subjetivos de interesse social ou público. A liberdade e o direito individual no processo penal é superior ao interesse geral subjetivo e/ou em averiguação. O direito penal trabalha com fatos específicos e concretos, onde para o descobrimento de um crime e sua autoria, devem ser respeitadas as regras que limitam a atuação da “persecutio criminis”, do “ius persequendi” e do “ius puniendi”, considerando a preeminência do encargo probatório estatal ministerial.
Assim vejamos. A Carta Magna prevê que as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata, e proíbe expressamente qualquer proposta tendente a abolir tais direitos e garantias individuais, mesmo mediante emenda à Constituição (paráf. 1º art. 5º; e paráf. 4º, inc. iv art. 60). Assim, é de se frisar que a possibilidade legal de quebra das instituições jurídicas e democráticas (da inviolabilidade de correspondência e o sigilo das comunicações telefônicas, verbi gracia) somente é possível quando decretado Estado de Defesa ou de Sítio, pelo Presidente da República, precedente audição dos órgãos competentes (Conselhos) e devidamente autorizado pelo Poder Legislativo Nacional (art. 84, ix; c.c. art. 136 usque 139); posto que fora dos mencionados casos de necessidade de decretação do Estado de Defesa ou de Sítio, sequer o Poder Judiciário está autorizado quebrar sigilos (telefônicos, bancário ou fiscal), seja via processo ou procedimento judicial, uma vez que atenta contra o Estado de Direito e contra as garantias fundamentais da cidadania, asseguradas também nos tratados internacionais de Direitos Humanos.
O Ministério Público como instituição essencial a administração de Justiça e incumbida da tutela dos direitos indisponíveis e garantias fundamentais da cidadania (art. 127 CF), em respeito ao disposto nos incisos x e xii do art. 5.º da Constituição federal, possui por dever preservar a inviolabilidade das comunicações telefônicas, o sigilo bancário e fiscal, em nome da intimidade dos cidadãos indiciados/acusados em inquérito policial ou em ações penais, ressaltando-se o princípio basilar da presunção de inocência até trânsito em julgado de sentença penal condenatória, nos termos do inciso lvii art. 5.º do Texto Maior da República.
A autorização judicial de vasculhamento de ligações ou buscas aleatórias em terminais telefônicos e contas-correntes bancárias acarreta sérios prejuízos pessoais, profissionais e comerciais ao titular, transcendendo os efeitos negativos à terceiras pessoas não envolvidas no caso que se investiga, onde informações de caráter estritamente privado tornam-se públicas indevidamente (inc. xi, art. 93 CF), violando cláusulas pétreas constitucionais, de difícil reparação estatal.
Investigar, acusar e penalizar no direito criminal são de ordem absolutamente individual (princípio da individualização), sendo defeso a transcendência da investigação, da acusação e da pena.
De outro lado, poder-se-ia falar ou se apresentar proposta de possibilidade de quebra do sigilo telefônico, bancário ou fiscal, somente no curso da Ação Penal, e jamais (grifei) durante a investigação policial, sempre se respeitando a ampla defesa e o contraditório, princípios basilares do devido processo legal. É defeso quebrar garantias fundamentais para investigar, denunciar, acusar ou condenar.
Poder-se-ia admitir a quebra do sigilo bancário, fiscal e telefônico, única e exclusivamente, em base ao princípio do segredo de justiça, com todas as garantias fundamentais constitucionais da cidadania no devido processo legal.
O segredo de justiça está previsto na Constituição federal, inc. lx art. 5.º e art. 93, ix; no Código de Processo Civil, art. 155, e no Processo Penal subsidiariamente, também no Estatuto da Criança e do Adolescente (lei n. 8.069/90); porém é de se salientar que no sistema republicano, vigem os direitos e garantias fundamentais-constitucionais individuais, o interesse público ou social não prevalece sobre o interesse particular, na área do direito penal-constitucional personalíssimo, visto que o garantismo jurídico e o reducionismo penal são metas para a consecução do Estado de Direito, Estado Democrático de Direito, Estado Constitucional de Direito ou para a realização plena do Estado de Direitos Humanos.
A expressão “interesse público-social” sempre foi usada e utilizada pelos governos e regimes ditatoriais e anti-democráticos, no intuito de se ignorar ou inobservar as garantias fundamentais individuais. O Direito Penal Democrático não admite expressões que podem compor espécie de tipo penal aberto, como “interesse público”, “ordem social”, “interesse comunitário”, etc.. Tipificações sem limite certo ou com limite incerto se traduzem em semântica difusa. Trata-se de desrespeito a boa técnica-jurídica-legislativa, quando emprega-se elemento subjetivo equivocado, onde a doutrina e a jurisprudência devem ser as guardiãs da legalidade, para limitar a violência e não deixar desconfigurar o Estado Democrático de Direito, assim nos ensina E. Rául Zaffaroni (in “Sistemas Penales y Derechos Humanos em América Latina” ed. Depalma-Buenos Aires, 1986; e “Em busca de las penas perdidas” ed. Temis, Bogotá, 1990).
No que diz respeito ao casamento, filiação, direitos da criança e do adolescente, alimentos, guarda de menores, tutela, etc., também se aplica o direito individual, sem qualquer discussão; entretanto, na desapropriação prevalece o interesse público, visto que a propriedade, neste caso, tem função social (inc. xxiii, art. 5º CF).
De outro lado, quando decretado o segredo de justiça, qualquer revelação ou violação do sigilo, em razão do cargo ou ofício, que resulte dano à Administração Pública (leia-se também Administração da Justiça), ou a outrem, isto é terceiros e as partes em litígio, sujeita o infrator a pena de reclusão de 2 a 6 anos, mais sanção pecuniária, assim prevê o art. 325, seus incisos e parágrafos do Código Penal. Note-se, desta feita, a importância da preservação das garantias individuais da cidadania e do segredo de justiça, ante a quebra de sigilos telefônico, bancário e fiscal.
O ramo penal no âmbito do direito público existe como garantia individual, ou seja, o código penal-processual é uma Constituição do acusado, normas vigentes em base ao princípio da taxatividade, indispensável para o exercício de ampla defesa e para a limitação do Estado no exercício persecutório e do “ius puniendi”.
Direito ao sigilo é garantia do cidadão e não concessão do Estado. Nenhum órgão da administração pública, inclua-se o Poder Executivo (segurança pública, polícia) ministério público, judiciário e legislativo (CPIs), possui poder investigatório para ter em arquivo ou colher dados informativos a revelia do cidadão, “ex vi” dos incisos xxxiii e lxxii, art. 5.º CF. A Carta Magna prevê, inclusive o instituto do “habeas data”, permitindo ao particular saber sobre todos os dados referentes a sua pessoa, quando armazenados ou arquivados pelo Estado.
Com a quebra do sigilo telefônico, bancário ou fiscal violam-se as garantias fundamentais da cidadania, maquia-se o Estado Democrático de Direito; abrindo possibilidades para o retorno do que já conhecemos no passado, a exemplo do hediondo governo Napoleônico, o autoritarismo dos regimes comunistas da antiga Rússia e da China, a malfadada estrutura da administração estatal do III Reich, o culto aos valores marciais do antigo Reino da Prússia, bem como a implantação de ditaduras militares e da doutrina de segurança nacional latino-americanas. Não podemos permitir, sob hipótese nenhuma, o retorno desses acontecimentos históricos, especialmente o que se denominou de “Brasil Nunca Mais”.
Os órgãos estatais encarregados da segurança pública (art. 144 CF), a polícia judiciária (art. 4.º CPP) e o próprio Ministério Público (art. 127 e 129, I CF) como “dominus litis”, titular da “persecutio criminis” ou do “ius persequendi”, devem dispor de meios mais adequados e eficientes para o exercício de suas funções.
Na ocorrência de arbitrariedade e erro judiciário obriga o Estado a indenizar moral e/ou pecuniariamente o cidadão, em fulcro ao contido nos incisos x, xii, xxv, xli e lxxv, art. 5º da Constituição federal. Sendo possível também a interposição de Mandado de Segurança, nos termos do inciso lxix do art. 5.º CF c.c. leis nsº 1.533/51, 4.166/62 e 4.348/64, em proteção de direito líquido e certo (garantia fundamental-cláusula pétrea e sua auto-aplicabilidade) ante abusos de autoridade ou do poder público (executivo-legislativo ou judiciário) em face de lesão ou ameaça de inobservância de direito (cláusula pétrea) constitucional fundamental.
A título de exemplo, quanto as interceptações telefônicas no direito penal paraguaio, à luz do direito latino-americano comparado, segundo o Código Processual Penal de 1997, no artigo 200 prevê a possibilidade de intervenções de comunicações, e estas poderão ser ordenadas de maneira fundamentada, sob pena de nulidade, e o resultado somente poderá ser entregue ao juiz que ordenou a quebra, e este ordenará a degravação, após escuta pessoal, do todo ou parte dela, bem como a sua destruição, com prévio acesso do material o Ministério Público, o imputado e o seu defensor. O parágrafo único do citado dispositivo (art. 200 do Código Processual Penal paraguaio), expressa: “La intervención de comunicaciones será excecpcional”.
O Ministério Público e o Poder Judiciário, são guardiões dos direitos fundamentais dos cidadãos, como instituição independente e poder estatal autônomo, por tal razão, para autorizar gravações telefônicas sigilosas, não deve, em nenhum instante, o magistrado ficar alheio ou desconhecer imprescindíveis informações, especialmente por serem aquelas que tramitam em processo sob segredo de justiça. A objetividade e a transparência total da prova é obrigatória, em nome da preservação dos direitos constitucionais da cidadania em geral (do cidadão investigado, acusado ou processado) visando a efetivação e manutenção do Estado de Direito.
Se a democracia no Brasil, nas palavras de Sérgio Buarque de Holanda “sempre foi um lamentável mal-entendido”, como mera fachada importada e acomodada aos tradicionais interesses dos detentores do poder, obviamente que estamos ainda hoje, desde o direito penal-colonial, lutando para ver estabelecidas as garantias fundamentais e um direito penal democrático, não imperialista e muito menos absolutista, que esmaga e destrói as liberdade civis e políticas dos cidadãos, através de discursos hipócritas e irresponsáveis do tipo “lei e ordem”, que disfarçam o autoritarismo.
É de se ressaltar que quem comete atentados contra os Direitos Humanos é o próprio Estado por intermédio de seus agentes e autoridades legalmente constituídas, ante as ofensas contra as garantias fundamentais da cidadania, caracterizando crime qualquer atentado contra os direitos fundamentais ou contra os Direitos Humanos e contra o sistema e regime democrático (art. 5º, xli e xliv, CF e § 5º art. 109 – Emenda Constitucional nº 45/2004). O Estado como pessoa jurídica de direito público está sujeito à responsabilidades internacionais, e seus agentes na qualidade de pessoa física, esta sujeita à responsabilidade penal, administrativa e civil, com a aplicação de sanções do tipo privativa de liberdade, perda da função pública e ação regressiva indenizatória.
Alguns meios utilizados quando contrário a ordem jurídica e contra a principiologia do direito democrático objetivando a repressão à criminalidade, mesmo que seja de tipo grave, jamais justificaram os fins, ou vice-versa. O Estado não pode cometer crimes para descobrir outro.
Propostas para a aplicação do Código de Processo Penal enquanto não há regulamentação legal de medida cautelar referente a interceptações telefônicas.
Ante as necessárias cautelas para efetivação do estado democrático de direito, do devido processo legal, e visando a não ocorrência abuso de poder e nulidades processuais, se faz imperioso que o magistrado ao autorizar interceptação telefônica, ordene em decisão fundamentada:
1) sejam respeitadas a intimidade e a privacidade, posto que são garantias fundamentais da cidadania estabelecidas como cláusulas pétreas constitucionais, desta forma a interceptação telefônica somente poderá ser autorizada judicialmente quando devidamente comprovada a necessidade, como medida cautelar excepcional e de ultima ratio para o descobrimento da verdade do fato investigado, assim a autoridade policial ou quem quer que tenha requerido a quebra do sigilo telefônico (Leis nsº 4.117/62 e 9.296/96), deve obrigatoriamente fundamentar o pedido depois de já realizadas todas outras diligências, na forma do direito, in analogia aos critérios necessários e exigências legais para a decretação de medida cautelar de prisão preventiva (art. 311 e 312 CPP);
2) seja informado o juízo a respeito do tipo de equipamento a ser utilizado, e a onde se encontra instalado – endereço completo -;
3)quem ou quais são ou serão os servidores-funcionários públicos que irão operar na escuta e/ou efetuar o monitoramento das chamadas telefônicas;
4) seja(m) indicado(s) o número(s) ou terminal(is) telefônicos com precisão, a fim de ser evitada qualquer espécie de engano ou violação à intimidade e à privacidade de terceiras pessoas que nada tem haver com o caso “sub examine”, uma vez que é de conhecimento que o equipamento de captação de chamadas, cruza, registra e intercepta aleatoriamente todas as ligações, de pessoas alheias ao fato investigado (sistema chamado de guardião);
5) se expeça advertência judicial, destacando que todo trabalho de monitoramento-escuta telefônica, se encontra em segredo de justiça (art.5º, lx CF), e que qualquer divulgação antecipada, como divulgação pela imprensa em geral, antes de decisão judicial firme, acarretará responsabilidade administrativa, cível e penal dos agentes do Estado (Lei nº 4.898/65 – crime de abuso de autoridade; e Declaração dos Princípios Básicos de Justiça relativos às vítimas de crime e de abuso de poder, ONU, 1985;
6) advertir também aos agentes responsáveis pelo monitoramento das ligações telefônicas, que devem ao encerrar o trabalho de coleta de prova, enviar imediatamente ao juízo competente, ainda sob segredo de justiça, o drive original, e não somente montagens de parte da escuta, visto que para dar valor a prova, necessário se faz também a realização a posteriori de perícia técnica oficial completa (art. 158 e sgts CPP).
7) o juízo competente exclusivo – juiz natural – para analisará o trabalho de interceptação, encaminhará os elementos da gravação ao Ministério Público, com ciência do imputado e do defensor em nome dos princípios da ampla defesa e do contraditório (art. 5º, lv CF); determinando a destruição do que não interessar ao processo. Não poderá ser o mesmo juiz que autoriza a interceptação telefônica, quebra do sigilo bancário e fiscal, que instrui ou julga o processo, se faz necessário um juízo especial de garantias, para a investigação e instrução criminal.
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(*) Publicado no Informativo Jurídico da Rev. Consulex; ano xvi – n. 23, pg. 13; em 10-6-2002, Brasília-DF. Rev. Prática Jurídica/ Consulex, ano I, nº 4, 31 de julho de 2002, pg. 20/23. No site IBCCRIM – Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, set/2002. Rev. Síntese de Direito Penal e Processual Penal, n. 16, out-nov., 2002, pg. 30/36ed. Síntese, Porto Alegre-RS.
* Promotor de Justiça de Foz do Iguaçu-PR. Membro do Movimento Ministério Público Democrático.Professor Pesquisador e de Pós-Graduação (Especialização e Mestrado). Associado ao Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito (CONPEDI). Pós Doutor em Direito. Mestre em Ciências Penais e Criminológicas. Expert em Direitos Humanos (Consultor Internacional das Nações Unidas – Missão MINUGUA 1995-96). Secretário de Justiça e Segurança Pública do Ministério da Justiça (1989/90). Assessor do Procurador-Geral de Justiça do Estado do Paraná, na área criminal (1992/93). Membro da Association Internacionale de Droit Pénal (AIDP). Conferencista internacional e autor de várias obras jurídicas publicadas no Brasil e no exterior. E-mail: candidomaia@uol.com.br
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