O Mínimo e os Pisos
Fernando Machado da Silva Lima*
20.04.2000
Antes da vigência da Constituição Federal de 1.988, o salário mínimo era regionalizado, o que permitia sua fixação de acordo com a realidade econômica de cada Estado. Mas hoje, nos termos do inciso IV do art. 7o do Estatuto Federal, ele deverá ser o mesmo em todo o País.
O Governo vem encontrando, nos últimos anos, sérias dificuldades para a fixação desse valor, o que tem sido feito através de medidas provisórias, sucessivamente reeditadas, com a conivência do Congresso Nacional, que ainda não conseguiu estabelecer os necessários limites a essa atividade legiferante exacerbada do Presidente.
O maior problema prático enfrentado pelo Governo para o aumento do salário mínimo é o das contas da Previdência, porque o parágrafo 5o do art. 201 da Constituição Federal assegura que nenhum benefício terá valor mensal inferior ao do salário mínimo, e como doze milhões de aposentados e pensionistas recebem esse valor, seu aumento inviabilizaria a Previdência. Por essa razão, o Governo tentou, no ano passado, desvincular o valor dos benefícios previdenciários, através da criação de um salário-base específico, o que somente não foi feito em decorrência das reações contrárias a esse verdadeiro atentado contra os doze milhões de brasileiros que sobrevivem com os benefícios que lhes são pagos.
Como não foi possível extinguir essa vinculação, os juristas a soldo do Governo imaginaram resolver o problema através da proposta de Lei Complementar 113/2000, que autoriza os Estados e o Distrito Federal a instituírem o piso salarial a que se refere o inciso V do art. 7o da Constituição Federal, por aplicação do disposto no seu art. 22, parágrafo único.
A Constituição Federal dispõe, em seu art. 7o, que são direitos dos trabalhadores urbanos e rurais o salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado (inciso IV) e o piso salarial proporcional à extensão e à complexidade do trabalho (inciso V). Como o legislador constituinte esqueceu de deixar bem claro que a fixação do piso salarial não poderia ser utilizada para desvirtuar a determinação de que o salário mínimo deverá ser nacionalmente unificado, os juristas do governo criaram essa fórmula, salvadora para as contas da Previdência, mas fatal, para os aposentados e pensionistas. Quem não concordar, que recorra ao Judiciário, e espere dez anos, se possível.
Aliás, aproveito a oportunidade para lembrar que Estados e Municípios têm autonomia, e não necessitam da autorização do Governo Federal para pagar aos seus funcionários ou servidores, contratados sob a égide da CLT, valor superior ao salário mínimo fixado pela União, não se justificando, a não ser pela promoção política, as recentes notícias dos aumentos concedidos por alguns governadores e prefeitos.
Esse projeto de Lei Complementar já foi aprovado nas Comissões da Câmara dos Deputados, mas o Governo ainda não conseguiu sua votação no Plenário. Os líderes governistas dizem que esse projeto é fundamental para a aprovação da Medida Provisória que fixou o salário mínimo em R$151,00, e para facilitar a vida do Governo, transferindo a pressão pela fixação do mínimo aos Governadores.
Mas é evidente sua inconstitucionalidade, porque se destina a burlar a norma constitucional que vincula ao valor do salário mínimo os benefícios da Previdência, e essa é também a conclusão a que chegou a própria Comissão Especial que se reuniu, no Congresso, a partir de 16.02.00, para realizar estudos com vistas a oferecer alternativas em relação à fixação do salário mínimo, que afirma textualmente:
“Trata-se da possibilidade concreta de que, com a criação de pisos salariais estaduais, se proceda a uma desvinculação implícita entre as menores remunerações dos trabalhadores em atividade e o piso de benefícios da Previdência Social. Dado que o ajuste fiscal parece ser, a curto e médio prazos, aos olhos do Governo, um objetivo muito mais prioritário do que a distribuição de renda ou a redução das desigualdades sociais, corre-se o risco efetivo de que, sem a pressão dos trabalhadores ativos por uma política de recuperação do valor do salário mínimo nacionalmente unificado, os aposentados e pensionistas da Previdência Social sejam deixados à sua própria sorte. E não parece haver dúvidas de que, pelo menos no curto prazo, os grandes números da Previdência Social serão muito mais importantes para o Governo do que as necessidades vitais dos aposentados e pensionistas. Portanto, a menos que o Poder Executivo, de comum acordo com o Congresso Nacional, estabeleça uma política clara e duradoura para o salário mínimo nacional, há muitas razões para que se analise com muita cautela essa proposta de desvinculação. Todas essas questões deixam patente a necessidade de uma intensa discussão prévia sobre as vantagens e desvantagens da fixação de pisos salariais estaduais. Não é aconselhável que uma iniciativa do Poder Executivo, premida por uma conjuntura específica, precipite um processo decisório, no âmbito do Congresso Nacional, que não venha a ser fundamentado em estudos e análises mais profundos”.
Fica evidente, assim, que se trata de uma burla jurídica imaginada pela assessoria do Governo, para contornar a impossibilidade política de desvincular os benefícios da Previdência do valor do salário mínimo, e que deixará à própria sorte os doze milhões de aposentados e pensionistas, conforme reconhecido pela própria Comissão do Congresso, acima citada. É claro que, com a fixação dos pisos estaduais, os Governadores vão aproveitar para colher dividendos políticos, em relação aos oito milhões de trabalhadores em atividade que recebem o mínimo, enquanto os aposentados não terão quem os defenda, porque somente eles serão condenados a receber R$151,00.
Esperemos que o Congresso Nacional, que teoricamente reúne os representantes do povo brasileiro, tenha a sensibilidade necessária para entender que esse projeto, além de inconstitucional, é contrário ao interesse público. Não é possível salvar os trabalhadores em atividade condenando à morte os inativos, mesmo porque estes, que já contribuíram com o seu trabalho, têm direito a uma aposentadoria decente.
* Professor de Direito Constitucional
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