O Equilíbrio Entre os Poderes
Ives Gandra da Silva Martins*
Nos regimes presidencialistas, há nítida separação de Poderes. Cabe ao Legislativo legislar, ao Executivo administrar, à luz da legislação elaborada pelo Parlamento, e ao Poder Judiciário, fazer Justiça, inclusive não permitindo que leis inconstitucionais tenham curso.
No Brasil, o art. 2º da Constituição Federal declara que: “São poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”, não ofertando dúvidas de que as funções são indelegáveis, cabendo a cada um dos Poderes exercer sua função, de forma harmônica e independente em relação aos demais.
Os temperamentos que comporta são aqueles que constam da Constituição. Quando a lei maior, expressamente, admite delegação ou o exercício de atribuições próprias da área de competência de outro, é que pode um Poder exercer função alheia.
Assim, o Poder Executivo pode legislar, via medidas provisórias e leis delegadas, pois a lei suprema, nos arts. 62 e 69, assim o permite.
Pode, também, o Legislativo assumir funções investigatórias próprias do poder Judiciário, nas CPIs, porque há autorização expressa no art. art. 58, § 3º da CF.
E pode o Poder Judiciário ter iniciativa de algumas leis de seu interesse, por força do capítulo pertinente ao Poder Judiciário, no Título IV da Constituição Federal.
Se uma lei apresenta contradição com o que dispõe o Estatuto Supremo, pode, o Poder Judiciário, à evidência, declarar a sua inconstitucionalidade, retirando a sua validade, vigência e eficácia. Quando assim faz, está exercendo sua atribuição de guardião da Constituição (art. 102 da CF), costumando-se dizer que atua como “legislador negativo”. Exceção feita à limitação ao poder normativo outorgado pela Constituição exclusivamente à Justiça do Trabalho, o Poder Judiciário, inclusive o STF, não pode se transformar em “legislador positivo”, ou seja, suprir o Poder Legislativo, sempre que este não tenha produzido norma exigida ou permitida pela Constituição.
Outorgou, o constituinte, aos cidadãos, através das entidades legitimadas a propor ações diretas de inconstitucionalidade, o direito de postular junto ao STF que declare a omissão legislativa e inste o Poder Legislativo a produzir norma inexistente e necessária para dar eficácia a direitos consagrados na Constituição.
O STF, nas ações diretas de inconstitucionalidade por omissão, em detectando a reticência legislativa, pode declarar inconstitucional a omissão do Congresso, concitando-o a que produza a norma faltante, mas jamais poderá substituí-lo nessa função de produzir a referida norma. E, ao solicitar que sane a omissão, não impõe nem sanções, nem prazo para que o Legislativo produza a norma.
Ora, este equilíbrio constitucional de independência e harmonia entre os Poderes da República corre o risco de ser quebrado, se o STF vier a criar nova hipótese de excludente penal –inexistente na lei—no caso do aborto de anencéfalo.
Neste artigo, não quero discutir a temática – apesar de ser contrário a qualquer atentado à vida, desde a concepção. – pois isto diz respeito ao mérito da ação. O que quero é alertar para o descabimento da ação adotada (ação de descumprimento de preceito fundamental) para fazer do STF um substituto do Poder Legislativo.
Já existe em trâmitação, perante o Congresso Nacional, projeto de lei pretendendo “descriminalizar” o aborto do anencéfalo, criando-se uma terceira categoria de “despenalização”. Ao aborto emocional (estupro), terapêutico (risco de vida da gestante), acrescenta-se o aborto eugênico (má formação fetal).
Ora, como os projetos estão em curso e poderão ou não ser aprovados, os autores da ação pretendem que o STF substitua o Congresso Nacional e crie, por decisão judicial, o 3º tipo de aborto.
Nada me parece tão perigoso para a democracia como substituir um poder político, eleito pelo povo, por um poder técnico, que não foi concebido para legislar e cujos integrantes são escolhidos por um homem só (Presidente da República). Não ponho aqui em questão a idoneidade e o imenso saber jurídico dos Ministros do Supremo Tribunal Federal. O que coloco é que sua função institucional não é legislar.
Os Poderes Executivo e Legislativo são poderes políticos, ou seja, seus mandatos foram outorgados pelo povo. O Poder Judiciário é um poder técnico e como poder técnico deve se ater a suas relevantes e nobres funções, entre as quais não se inclui, todavia, a de legislar positivamente.
Como um dos autores – ao lado de Gilmar Mendes, Celso Bastos, Oscar Corrêa e Arnoldo Wald – da Lei n. 9882/99, que introduziu no ordenamento positivo nacional a ação de descumprimento de preceito fundamental (ADPF), estou convencido de que esse instrumento não tem por finalidade transformar o Poder Judiciário em legislador positivo.
* Advogado tributarista, professor emérito das Universidades Mackenzie e UniFMU e da Escola de Comando e Estado Maior do Exército, é presidente do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, do Centro de Extensão Universitária e da Academia Paulista de Letras.
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