Direito Constitucional

Mulher cidadã

Mulher cidadã

Maria Berenice Dias*

Até há pouco, muito pouco, as expressões “mulher” e “cidadã” afiguravam-se como antônimas. Como somente em 1932 passou a existir o voto feminino e até 1962 as mulheres, ao casarem, se tornavam relativamente capazes (eram assistidas pelo marido para os atos da vida civil e necessitavam de sua autorização para trabalhar), não se podia falar em cidadania feminina.

A Constituição Federal buscou resgatar a igualdade, cânone da democracia desde a Revolução Francesa e linha mestra da Declaração dos Direitos Humanos. O legislador foi enfático, e até repetitivo, ao consagrar a plena isonomia de direitos e obrigações entre o homem e a mulher, varrendo do sistema jurídico todo e qualquer dispositivo legal que, mesmo com aparente feição protecionista, acabava por colocar a mulher num plano de subordinação e inferioridade. Assim, não mais é o marido o cabeça-do-casal, o representante legal da família, nem o único responsável por prover o seu sustento.

Mesmo que não mais se justifique a permanência desses dispositivos nos textos legislativos, sua vigência persiste ao menos no campo social.

Não se pode negar que melhorou em muito a situação da mulher no contexto atual. Longa foi a trajetória para que diferenças físicas e biológicas deixassem de servir de motivo para dar sustentáculo a um tratamento discriminatório. Surgiu o movimento de mulheres. Suas integrantes passaram a ser chamadas de feministas, expressão que gerou tal carga de aversão, que acabou por ser repudiada pelas próprias mulheres. Necessária se fez a realização de conclaves, passeatas e gritos de protestos, inclusive com queima de sutiãs em praça pública. Tais tentativas libertárias acabaram acarretando a imolação de mais de cem operárias, que vindicavam melhores condições de trabalho. Esse fato, para servir de alerta e não mais ser esquecido, acabou por identificar o Dia Internacional da Mulher.

Não há razão, porém, para se transformar tal data em motivo de mero júbilo. Nesse dia, a mulher é colocada em um pedestal, homenagens lhe são prestadas, ela recebe flores e reverências, mas sempre com uma conotação jocosa, como se lhe estivesse sendo concedido o direito de viver, por um dia, um sonho de Cinderela.

Enquanto a violência doméstica corresponder a um terço dos delitos cometidos no mundo, 100 mil mulheres morrerem anualmente vítimas de aborto e 114 milhões de meninas forem submetidas à mutilação sexual, nada merece ser comemorado. Mais: enquanto forem mulheres 80% dos miseráveis do planeta (assim nominados aqueles que recebem menos de um dólar/dia) e 70% dos analfabetos, percebendo salário 40% inferior, ainda muito necessita ser feito.

Criou-se um sem-número de entidades, articularam-se associações, firmaram-se tratados e convenções. Por quatro vezes, a ONU realizou conferências focando a questão de gênero, na busca de estabelecer plataformas de ação a serem implantadas por todas as nações, pois o fenômeno discriminatório não é privilégio dos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento. Mesmo nas mais avançadas civilizações, não há igualdade de oportunidade e violência doméstica também existe.

Indisfarçável o avanço em vários setores e a conquista de novos espaços, o que, no entanto, ainda não repercutiu nas estruturas do poder, em que é rarefeita a presença das mulheres. No Brasil, nenhuma integra o primeiro escalão do Executivo em âmbito federal. Só há uma governadora e 178 prefeitas. Somente seis senadoras têm assento na câmara legislativa maior. E, apesar de, no Poder Judiciário, 36% de seus membros serem magistradas, nenhuma ocupa os Tribunais Superiores e somente duas ostentam o título de ministras na Justiça Trabalhista.[1]

Se não mais somos consideradas como um ser inferior, se o tamanho menor de nosso cérebro deixou de servir de evidência de menos capacidade, muito ainda falta para sermos reconhecidas como mulheres cidadãs.

[1] Os dados correspondem ao ano de 1998, quando da elaboração do artigo.

* Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM

Compare preços de Dicionários Jurídicos, Manuais de Direito e Livros de Direito.

Como citar e referenciar este artigo:
DIAS, Maria Berenice. Mulher cidadã. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2005. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-constitucional-artigos/mulher-cidada/ Acesso em: 14 dez. 2024