Direito Constitucional

Gilmar Mendes e o Estado de Direito

Gilmar Mendes e o Estado de Direito

 

 

Francisco César Pinheiro Rodrigues *

 

 

Poucos foram os presidentes do Supremo Tribunal Federal tão polêmicos quanto o atual, Min. Gilmar Mendes. Provavelmente nenhum. Note-se que está apenas no início de seu termo. Há muito chão pela frente. Chão trepidante, de terremoto. Nossos edifícios jurídicos vão tremer nos alicerces. Profecia fácil será dizer-se que o biênio de sua presidência será bastante conturbado, conseqüência do seu temperamento forte e defeitos de suas qualidades, ou vice-versa. É sabido que certas virtudes e certos defeitos são parentes próximos.

 

Essa previsão que não representa nem crítica nem elogio à sua pessoa. Tolerância com opinião divergente, a velha “diplomacia” — algo que falta um pouco ao ilustre ministro —, não significa, necessariamente, avanço institucional. Pode até significar atraso, pasmaceira, “moleza”, falta de energia em alterar o que deve ser alterado. O mesmo pode-se dizer do excesso oposto, uma exagerada auto-confiança, que pode ser interpretada — ou descambar mesmo — para a arrogância e truculência, gerando nos mal-acostumados poderosos do dinheiro a falsa sensação de que seus crimes, como é da tradição — agora nem tanto… —, ficarão impunes. Não por remotamente imaginarem que o alto magistrado seja corruptível — porque isso ele não o é —, mas por acreditarem que sua visão “legalista em excesso” acabe beneficiando-os “extraordinariamente”, já que falamos em última instância. Afinal, pensam tais “espertos” — e expertos — político-financeiros: “prisão não foi feita para nós, os “bambas dos números”, só para os pequenos, mentalmente limitados”.

 

Falei atrás em impunes, os “maiorais”, em razão da prescrição, ou do enfraquecimento da investigação policial, intimidada ou indiretamente obrigada a alertar os meliantes poderosos — com inquéritos acessíveis aos investigados — qual a prova que pretende recolher em seguida.

 

A sorte do combate ao crime do colarinho branco, no Brasil, depende muito do rumo de sua atuação como chefe do Judiciário. Seu futuro, e o da Corte, e o nosso — como cidadãos e contribuintes “afanados” —, dependerá muito de seu temperamento, de sua capacidade de auto-controle, da reação de seus pares, da mídia, dos chefes dos demais poderes e do… acaso, esse imponderável que edifica ou desmorona reputações.

 

Vejamos o lado bom de sua atuação.

 

O enérgico Ministro Presidente tem razão em criticar o uso de algemas quando o indiciado não oferece perigo de resistência física. A possibilidade cinematográfica do astuto financista aproveitar um descuido do policial que o conduz, sacando sua arma, é praticamente impossível. O mesmo não se diga de um assaltante ou chefe do tráfico de drogas, mais habituado a reações físicas. O financista desonesto é perigoso com seu cérebro e sua máquina de calcular, não com seus músculos, geralmente flácidos, embora talvez bronzeados.

 

Igualmente, é abusivo “grampear” os telefones dos defensores de financistas, com possibilidade de conhecer todos os segredos do advogado, incluindo sua vida privada, senhas de cartão, etc. Também errado apreender seus computadores, que podem conter dados sigilosos não só do patrono como também de seus familiares e clientes que nada têm a ver com o crime investigado. Essa apreensão só seria admissível se a autoridade policial mostrasse — ao juiz competente para autorizar o “grampo” — provas ou indícios robustíssimos de que o advogado, ele mesmo — não o cliente — é o criminoso. O mesmo ocorre com a eventual e rara suspeita de que um magistrado está, por exemplo, vendendo decisões. Nesses casos, o valor da privacidade cede espaço à necessidade mais imperiosa de combater o crime. Nenhum autoridade, ou profissional, está acima do bem e do mal. No tempo do Império, no Brasil, um desembargador, Motta Coqueiro, ensandecido pelo ciúme e traição de sua amada matou e esquartejou uma mocinha, filha de mendiga, guardando seus pedaços em um baú forrado de metal. Se, àquele época, houvesse telefone e fosse preciso colocar uma escuta para comprovar a conversa do homicida com quem o auxiliou na lúgubre tarefa, certamente a escuta teria sido autorizada. Tem razão, portanto, o ilustre chefe do Judiciário, no alertar contra abusos. Não, porém, contra o bom uso, deferido pelo juiz.

 

Agora, o lado inquietante.

 

Em reação contra tais abusos ele propõe um excesso contrário: quer uma modificação legislativa que intimide fortemente qualquer policial, promotor ou juiz que invada a tênue “zona cinzenta” do que pode, ou não, ser utilizado na investigação das tortuosas e complicadas transações financeiras. É o que os grandes infratores do colarinho branco queriam ouvir… Foguetes! Algo que intimide quem pretenda investigá-los! E quer, ainda, que os processos contra tais “invasores de privacidade” tenham rápida tramitação.

 

A opinião pública — mesmo não composta de grandes juristas, mas com bom-senso —, deve estar se perguntando: já que S. Exa. pressiona os demais poderes, sugerindo modificações legislativas que punam rapidamente os abusos de autoridade, por que não aproveita a oportunidade para sugerir, igualmente, alterações legislativas simples que apressem a tramitação dos processos nos crimes de colarinho branco? Medidas que evitariam a prescrição, fuga dos réus antes da longínqua condenação final e a má-impressão causada pelo cumprimento das (poucas) condenações em prisão domiciliar de luxo.

 

Cada vez mais, o país conclui, grosso modo, que “rico não vai para a cadeia”. Quando vai é por poucos dias. E por que isso acontece? Porque nossa Constituição diz, no inciso LVII do art.5º, que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”. Trata-se de uma disposição óbvia e que nem precisaria constar na Constituição. É claro que, sendo ainda possível um recurso contra a condenação — recurso que poderia reconhecer a inocência do réu — não se poderia falar em “culpado”, a menos que — à semelhança de uma grotesca “gravidez provisória” —, ele fosse um “culpado provisório”. Penso que na maioria dos países cultos não consta isso, expressamente, em suas constituições. Em países que admitem a pena de morte, por exemplo, réus com recursos pendentes na instância final, não são enforcados, porque, se bem sucedidos, não seria possível “desenforcar” o réu.

 

Uma coisa é concordar que “culpado” é quem foi condenado em última instância. Outra, “presumir sua inocência”, mesmo quando já pesam contra ele duas, três ou quatro condenações: na primeira instância, no tribunal de apelação, no STJ e no próprio STF, quando ainda cabe lá algum recurso, entre eles os embargos de declaração. Que “presunção de inocência” é essa, depois de tantas condenações? Convém, portanto, segurar esse cidadão, com uma prisão preventiva, porque ele jamais aguardará, em sua casa, a chegada do oficial de justiça com a ordem de prisão, quando esgotadas todas as instâncias. Ele só não fugirá se souber que a decisão final lhe concedeu alguma vantagem que o livre da humilhação do cárcere. Isso é humano e natural, inclusive considerando as péssimas condições de nossas cadeias.

 

Nenhum advogado criminalista — eu mesmo, se estivesse advogando — deixaria de aconselhar o cliente a se ausentar por uns tempos — uma “viagem urgente de negócios” —, na iminência de uma última decisão que poderia trancafiá-lo por um bom número de anos. Nenhum advogado, em parte alguma do planeta, seria tão fanático pelo império da justiça, a esse ponto. Se, eventualmente, como um santo meio desequilibrado, não desse tal conselho, pelo menos teria a obrigação de alertar o cliente quanto ao que poderá lhe acontecer com o trânsito em julgado da decisão que o condenou.

 

Alguém dirá que no Brasil a justiça é morosa, não sendo razoável manter alguém preso por vários anos, com possibilidade, ainda que remota, de ser absolvido na última instância. Para evitar isso, bastaria que a lei desse um prazo máximo de 180 dias, em lugar dos atuais 81, para as prisões preventivas, com total preferência de julgamento em todos os tribunais. Essa mesma urgência que o ilustre Ministro Gilmar pretende para julgar autoridades que abusem, deveria ser sugerida no julgamento dos crimes do colarinho branco. Havendo duas condenações, em duas instâncias — ou mesmo bastando uma —, a presunção seria de culpa, o réu aguardando preso o término do processo, mesmo esgotados os 180 dias.

 

Crimes financeiros, com formação de quadrilha, são, usualmente complexos. E justamente porque são complexos, mais demorada a sua instrução, com perícias, precatórias, talvez rogatórias, etc. Daí justificar-se que o tempo da prescrição, em tais casos, seja dobrado ou triplicado, contando-se novo início de contagem em cada julgamento, porque com este o Estado comprovou não estar inativo. Com medidas simples como estas é possível reduzir a impressão de impunidade que corrói a credibilidade popular de nossa justiça penal. E os juízes, em sua vasta maioria, não são responsáveis por tais facilidades, amarrados que estão à atual legislação, inocente ao extremo.

 

Sabe, o leitor — pergunta-se —, por que o “povo” quer ver os “grandes” com algemas e entrando na parte traseira da viatura policial? Não é só por inveja dos ricos. Há ricos respeitados. A satisfação popular está em saber que, “já que não ficará na cadeia, o “malandro” pelo menos teve que entrar algemado na viatura!” Uma compensação mesquinha, algo primitiva, mas com alguma justificação psicológica.

 

Os críticos das prisões preventivas, algemas e escutas telefônicas — espanta-me que os criminosos ainda troquem idéias pelo telefone… — a todo momento argumentam com a necessidade de “defesa do estado de direito”, esquecidos que em um verdadeiro “estado de direito” os crimes são punidos. Se não o são, por isso ou por aquilo — por falhas da lei ou interpretações tolerantes demais — não estamos em um “efetivo estado de direito”. É dever do Estado punir os criminosos, de qualquer classe social, principalmente aqueles que desviam enormes somas de dinheiro. Eles são lesivos não só pelo dinheiro desviados como também porque estimulam, pelo mau exemplo, a criminalidade de rua. Assaltantes, seqüestradores e traficantes tentam se desculpar: “Por que só eles podem roubar? Se eles podem, eu também posso. E se tiver sorte, poderei me tornar um “bacana”, caso não seja pego antes de ficar rico”.

 

Finalmente, algo sobre a prisão temporária e o sigilo do inquérito policial. Que o réu e seu defensor devam ignorar os próximos passos da polícia, nas investigações, parece-me um direito elementar da acusação. Assim como a polícia não pode invadir o escritório do advogado, em busca de prova contra o cliente, não tem sentido o defensor saber, de antemão — lendo o inquérito todo dia —, qual o passo do delegado na busca das provas. Sabendo-o, é claro que alertará o cliente para fazer desaparecer ou alterar a prova. Se esse acesso total ao inquérito passar a existir, prevê-se que a autoridade policial passe a elaborar uma espécie de “inquérito reservado, nº 2”, informal, para fazer as diligências não anunciadas no inquérito normal. O “contraditório penal” só existe na justiça, após o recebimento da denúncia, não na fase de investigação.

 

Para encerrar, algo extremamente controverso mas que penso merecer discussão: o direito absoluto ao silêncio, sem qualquer conseqüência negativa na formação do convencimento do juiz. Se o indiciado no inquérito e o réu, em juízo, têm um direito sagrado de se calar — sem que desse silêncio resulte a menor presunção de culpa —, tanto a prisão provisória quanto o interrogatório são peças inúteis. Para que o juiz designar data para interrogatório? Melhor seria o juiz consultar “sua excelência, o réu”, indagando se vai ou não responder às perguntas do magistrado. Com as complexidades da vida moderna não tem mais sentido dispensar a versão do próprio réu sobre os fatos. É nas suas contradições que pode despontar a verdade. Que se respeite seu direito ao silencio, está correto — porque seria absurdo qualquer tortura para forçá-lo a falar — mas inibir o julgador de extrair alguma ilação quanto à culpa dele, pela sua recusa em se explicar, já é enfraquecer a defesa da sociedade. Todos devem cooperar na busca da verdade. Principalmente quem está sendo acusado de algo.

 

Já abusei da paciência do leitor. Espera-se que o impulso de urgentes modificações legislativas, do ilustre ministro do STF, não dê a impressão de se preocupar mais com os direitos dos criminosos do colarinho branco do que com os direitos da sociedade, muito mais merecedores de atenção. Alguns de seus inimigos aventam, na mídia — talvez mesquinhamente —, a discutível hipótese de que o referido jurista tem outros planos, ainda mais altos que a presidência que agora ocupa. Se esse for o caso — e não haveria nada de censurável nisso —, saiba sua excelência que o povo e seus ex-colegas de magistratura o apoiarão, de coração, se perceber que ele, em nova função, em outro poder, empregará sua energia sugerindo leis em favor de todos, ricos e pobres, diminuindo a sensação de impunidade que envenena o país.

 

 

* Advogado, desembargador aposentado e escritor. É membro do IASP Instituto dos Advogados de São Paulo. Website do autor: http://www.franciscopinheirorodrigues.com.br

 

 

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Como citar e referenciar este artigo:
RODRIGUES, Francisco César Pinheiro. Gilmar Mendes e o Estado de Direito. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-constitucional-artigos/gilmndsestdr/ Acesso em: 04 mai. 2024