Hernane Elesbão Wiese*
Ferdinand Lassalle (1825-1864)
O processo de elaboração constitucional esteve condicionado pelas particularidades da transição política que se caracterizou por ser nem um simples continuísmo, nem uma efetiva ruptura, mas uma transição pelo alto, pactuada inclusive com o Estado autoritário. Lassalle tinha assim razão quando afirmava que a essência da Constituição são os fatores reais de poder, as relações de forças políticas existentes na sociedade.
A Constituição adequada seria então aquela que correspondesse no fundamental à Constituição real e efetiva. Por tudo isto, “os problemas constitucionais não são primariamente problemas de direito, mas de poder”.
. Ela é mais do que uma simples “folha de papel” como afirmava Lassalle. Se deve obedecer no essencial às condições sociais, ela deve também pretender elevar-se acima das práticas condenáveis e ultrapassadas.
Ferdinand Lassalle classifica as constituições de duas formas, a “Constituição Escrita” e a “Constituição Real” (1848, p. 33), argumentado que para as constituições serem duradouras, boas, efetivas é preciso que a Constituição Escrita retrate piamente a realidade. Ou seja, o que estiver escrito nesta constituição tem que reproduzir o fator real de poder daquela sociedade, denominado de Constituição Real, caso contrário o que está escrito não terá validade e eficácia.
a Constituição da República Federativa do Brasil apresenta-se pelas duas formas classificadas por Ferdinand Lassale, isto é, a forma escrita e real. Ocorre que na sua forma escrita ela elenca dois fatores de poder, só que apenas um é real, ou seja, retrata a Constituição Real que é exercida pela classe dominante, detentora dos meios de produção e da riqueza socialmente produzida. Já a outra forma é meramente escrita, só consta no papel, sem qualquer efetividade prática, pois despende um poder para aqueles que não o possuem, que é a outra classe, a miserável, a destinatária, não só das “benesses” constitucionais, mas da coerção legislativa.
Até porque, tal pretensão da nossa Carta Magna é incoerente, inviável, visto que vivemos em um sistema que possui duas classes, as quais possuem interesses antagônicos, e por esta razão não há como haver harmonia entre elas. Eis que temos uma classe que detém e a outra que sustenta esta detenção, por esta razão é que jamais aquela aceitará, de forma pacifica e muito menos escrita, mitigar o seu poder.
E nos aproveitando da analogia feita por Ferdinand Lassale podemos afirmar que é isto que ocorre com a Constituição brasileira, de nada adianta o princípio da dignidade da pessoa humana, a função social da propriedade e do contrato, fora todos os inúmeros incisos vislumbrados nos artigos referentes aos direitos e garantias fundamentais, se na verdade eles nunca conseguirão ser maçãs, pois jamais sairão da sua condição de figos.
a essência deste sistema, o capitalista, é a exploração da força de trabalho alheia, necessitando que a outra classe sempre esteja numa condição de submissão.
Aqui não podemos perder de vista que o direito à propriedade privada é uma invenção criada pela classe dominante e ratificada pelo Direito Positivo, com o intuito de proteger e garantir um patrimônio adquirido através da exploração, núcleo de nosso sistema, legitimando uma conduta que deveria estar regulada como sanção e não com direito garantido.
Emmanuel Joseph Sieyès (1748-1836)
O poder constituinte, força criadora capaz de dar vida a uma nova ordem jurídica, política e social, foi teorizado pela primeira vez por Emmanuel Sieyès, autor do período revolucionário francês, e, desde então, é compreendido como uma manifestação da vontade soberana da nação. Este autor tinha muito clara a necessidade de conferir legitimidade às pessoas que deveriam deliberar sobre a elaboração de um documento fundamental, no qual fossem inscritos os direitos básicos da sociedade e delimitado o poder do Estado.
Quando uma nova Constituição é elaborada, o que se espera é ver nela refletidos traços comuns dos anseios e necessidades que a sociedade apresente naquele momento histórico.
. Criar uma nova Constituição, portanto, não é tarefa simples, que possa ser realizada sem grandes preocupações com as conseqüências inevitáveis para o futuro. O mesmo se diga quanto a amplas revisões do texto constitucional, como a que se orquestra em terra brasilis.
Rupturas constitucionais somente deveriam ter espaço quando houvesse uma clara necessidade de superar o velho para poder construir o novo. Talvez esta noção não subsista de forma suficientemente nítida neste país, submetido a tantas variações em sua ordem jurídica e política em tão curtos espaços de tempo (o que, verdade seja dita, não é privilégio nacional nem se pode enxergar como uma síndrome que afete apenas países pobres).
as Constituições são uma espécie de fotografia de um momento histórico vivenciado. Assim sendo, nem sempre a imagem legada para as gerações seguintes espelha de maneira precisa seus interesses presentes. Daí a necessidade de a própria Constituição abrir espaço para que seja alterada e adaptada às novas realidades vivenciadas ao longo dos tempos, sempre, contudo, cuidando para que um núcleo essencial reste intocado (as ‘cláusulas pétreas’ da Constituição Federal).
Onde reside o fundamento de legitimidade da assembléia revisora proposta recentemente no Brasil parece, portanto, ser a grande questão a se enfrentar. Processos de revisão constitucional só encontram legitimidade quando refletem a vontade de ampla maioria da sociedade. Revisões profundas, como a proposta, da mesma forma que a instauração de uma nova ordem constitucional, representam uma ruptura com o sistema vigente, donde surge a necessidade de estarem amparadas em evidentes manifestações sociais, seja pelos meios formais (plebiscito ou referendo), seja pela via revolucionária.
De onde veio a proposta aqui comentada? Que representatividade possuem os ‘notáveis’ que a elaboraram? Como foram escolhidos os temas que se pretende rever? Alguém se lembrou de questionar, antes de mais nada, se a sociedade brasileira quer ver sua Constituição tão profundamente modificada?
Revisões constitucionais não são um mal, ao contrário; por vezes, são o melhor remédio para corrigir rumos e apontar uma nação para o futuro. Submetida previamente a amplo debate, do qual se colha a firme convicção de que a vontade de larga maioria do povo brasileiro se coaduna com suas propostas, a assembléia revisora pretendida alcançará a imprescindível legitimidade para alterar a Constituição Federal. De outra forma, imposta ‘de cima para baixo’ como parece ser a intenção, será mais um golpe contra as instituições democráticas que, a duras penas, se vêm tentando firmar no Brasil.
* Acadêmico de Direito da UFSC.
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