Em Defesa do Congresso Nacional
Ives Gandra da Silva Martins*
O artigo 49, inciso XI, da Constituição Federal determina que cabe ao Congresso Nacional “zelar pela preservação de sua competência legislativa em face da atribuição normativa dos outros Poderes”.
Interpreto tal comando superior como uma determinação imposta pelo constituinte (poder-dever) ao Legislativo de não permitir que outros Poderes (Executivo e Judiciário) legislem em seu lugar.
De rigor, se o art. 2º do mesmo texto constitucional declara que “são poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”, cabe a cada um deles exercer as atribuições que lhe foram prioritariamente outorgadas pela Constituição, e apenas a eles.
Ora, no dia 27 de abril o Supremo Tribunal Federal decidiu que tem poder de legislar, ao declarar que cabe a Ação Direta de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) para instituir nova hipótese de aborto – ou seja, o aborto eugênico – do anencéfalo, em caso concreto.
Não quero entrar, neste artigo, a discutir, se é o caso de adotar ou não o aborto generalizado, ou acrescentar somente o aborto eugênico ao rol das hipóteses permitidas pela lei para antecipação da morte do nascituro, pois sobre a matéria já escrevi inúmeras vezes.
Aquilo que me parece, entretanto, gravíssimo é a invasão declarada pelo Supremo Tribunal Federal da competência legislativa do Congresso Nacional.
Quatro dos Ministros daquela Corte votaram não admitindo a invasão (Carlos Mário Velloso, Cesar Peluso, Ellen Gracie e Eros Grau).
A ministra Ellen, inclusive, lembrou que há sete projetos de lei no Congresso sobre o aborto, inclusive sobre o aborto do anencéfalo, e que a definição sobre se deve ou não adotar essa nova forma de antecipação da morte do nascituro mal formado, é típica e exclusiva função do Congresso Nacional.
A tese, todavia, de que, no moderno direito constitucional, os “vácuos” legislativos podem ser supridos pelo Poder Judiciário, terminou prevalecendo, entendendo 7 dos 11 ministros, que não precisavam esperar a discussão dos 7 projetos de leis, e que poderiam suprir a discussão legislativa, admitindo terem competência para instituir nova hipótese de eliminação do nascituro, à luz de um até agora indefinido “preceito fundamental descumprido”.
“Data máxima vênia” aos Ministros que se revestiram de funções legislativas e eliminaram o direito dos parlamentares de discutir os projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional, parece-me que sua decisão esbarra com o disposto no art. 49, inciso XI da Constituição, que declara caber ao Poder Legislativo zelar pela preservação de sua competência legislativa em face dos outros Poderes, ou seja, dos Poderes Judiciário e Legislativo.
Entendo, pois, que se os presidentes da Câmara e do Senado decidirem anular a decisão do STF, existe fundamento jurídico para fazê-lo, visto que o constituinte outorgou poderes aos legislador para repelir a invasão de outros poderes na competência legislativa, que é peculiar ao Congresso Nacional. E, no caso, a invasão é nítida, visto que os 7 projetos em tramitação no Congresso foram deletados pela decisão mencionada na “ADPF n.54”.
Creio que seja de fundamental importância que o Congresso preserve sua competência, anulando a decisão do STF, visto que apenas aos representantes do povo eleitos livremente, e não aos eminentes ministros do STF indicados por um homem só (o presidente da República), cabe decidir sobre matéria de tal relevância, a saber: o tratamento legislativo a ser dado ao direito do nascituro à vida.
Preocupa-me sobremaneira –e tenho pelos 11 ministros do STF profundo respeito- o perigosíssimo precedente aberto, pois, a partir dele, através de qualquer ação por descumprimento de preceito fundamental, poderá a Máxima Corte legislar, reduzindo-se, o Congresso Nacional, ao papel de mero acólito, no processo normativo. Em outras palavras, os Ministros do STF, que não são eleitos pelo povo, mas escolhidos por um homem só –o Presidente Lula indicará até o fim de seu mandato 5 dos 11 Ministros e já indicou 4 !- poderão, evidentemente, mediante a ADPF, legislar em lugar do Congresso Nacional, sempre que assim o desejarem.
A matéria é de extrema importância para o futuro do Estado Democrático de Direito, não me parecendo justo – por mais competentes e preparados que sejam os juízes da Suprema Corte – que 11 magistrados possam substituir os 513 deputados e 81 Senadores eleitos por toda a nação.
No Velho Testamento, lê-se que, no tempo em que os juízes governavam, o povo hebreu sofreu muito. Que não criemos um “Livro dos juízes” no país, visto que cabe ao povo decidir, por seus representantes, aquilo que quer inserir no seu ordenamento positivo. E não, a um reduzidíssimo elenco de técnicos – por mais brilhantes e bem intencionados que sejam – fazê-lo, com base em suas convicções pessoais.
Se o Congresso Nacional não exercer seu “poder-dever” de zelar por sua competência legislativa, temo pelo futuro da verdadeira representação popular no Brasil. A democracia estará, efetivamente, em perigo.
* Professor Emérito das Universidades Mackenzie, UNIFMU e da Escola de Comando e Estado Maior do Exército, Presidente do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio do Estado de São Paulo e do Centro de Extensão Universitária – CEU. Site: www.gandramartins.adv.br
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