Do Efeito Cliquet ou Princípio da Vedação de Retrocesso
Ravênia Márcia de Oliveira Leite*
A expressão “efeito cliquet” é utilizada pelos alpinistas e define um movimento que só permite o alpinista ir para cima, ou seja, subir. A origem da nomenclatura, em âmbito jurídido, é francesa, onde a jurisprudência do Conselho Constitucional reconhece que o princípio da vedação de retrocesso (chamado de “effet cliquet”) se aplica inclusive em relação aos direitos de liberdade, no sentido de que não é possível a revogação total de uma lei que protege as liberdades fundamentais sem a substituir por outra que ofereça garantais com eficácia equivalente.
Theresa Rachel Couto Correia, doutoranda em Direito Internacional e Relações Econômicas da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) e mestre em Direito Constitucional pela PUC-Rio, na obra, considerações iniciais sobre o conceito de direitos humanos, defende, sabiamente, que “a indivisibilidade dos direitos humanos está relacionada com a compreensão integral desses direitos os quais não admitem fracionamentos”, idéia oriunda, portanto, da vedação ao retrocesso, em comento (http://www.unifor.br/notitia/file/1671.pdf).
O Dr. Tassos Lycurgo, no estudo, a Inclusão Social e Direito: por uma Democracia Constitucional, afirma que “a questão da reserva do possível, em outros termos, toma forma na pergunta de se o princípio da dignidade humana (CR, art. 1º, III) – notabilizado pela demanda social – pode ser limitado pela escassez de recursos econômicos do Estado. Primeiramente, é de bom alvitre destacar que não há princípios absolutos, que não encontrem situação fática em que tenham de ser mitigados em favor de outros valores. O princípio da dignidade da pessoa humana, muitas vezes tomado como foco nevrálgico da Constituição da República, ‘é o fim supremo de todo direito; logo, expande os seus efeitos nos mais distintos domínios normativos para fundamentar toda e qualquer interpretação’ (Silva Neto, 2005, p. 21), gozando de posição destacada no rol dos princípios por ser o elo entre o direito e seu predicativo de fundamentalidade, mas, apesar de toda a sua importância, não há de se sobrepor no plano fático a uma situação de real impossibilidade, como a que decorre da honesta limitação de recursos estatais disponíveis”(http://www.ufrnet.br/~tl/trabalhoscientificos/2008_inclusao_social_e_direito_por_uma_democracia_constitucional.pdf).
Conclui o brilhante advogado e mestre em Filosofia Analítica pela Universidade de Sussex, no Reino Unido, alhures mencionado, que “assim, que a reserva do possível não se opõe à necessidade de satisfação dos anseios sociais no plano teórico, mas demonstra, por outro lado, que o Estado não pode ser compelido a fazer o impossível. Dessa forma, mantidos os honestos limites da impossibilidade, o fomento à inclusão social não será atingido por um Estado que não gasta mais do que pode, pois dele o contrário seria inexigível. Pensa-se, contudo, que apenas no caso de retrocesso social, em que o Estado brasileiro abriria mão de conquistas sociais já atingidas, é que a justificação da reserva do possível não prosperaria. As conquistas sociais têm efeito de catraca (Efeito Cliquet), não podendo retroceder, conforme defendeu o português Canotilho na primeira edição de sua obra, apesar de este autor, em virtude da posterior evolução de Portugal no campo social, ter relativizado a sua opinião já no prefácio à segunda edição, em que declarou a morte da Constituição Dirigente, assim como em outras edições e em obras mais recentes (Canotilho, 2001; 2002)”.
No julgamento da ADIn 1.946/DF, o STF entendeu que o direito ao salário maternidade seria uma cláusula pétrea, houve uma aplicação, ainda que não tão evidente, do chamado princípio do não-retrocesso.
Esse princípio, de acordo com Canotilho, na obra Direito Constitucional e Teoria da Constituição, significa que é “inconstitucional qualquer medida tendente a revogar os direitos sociais já regulamentados, sem a criação de outros meios alternativos capazes de compensar a anulação desses benefícios. Assim, em tese, somente seria possível cogitar na revogação de direitos sociais se fossem criados mecanismos jurídicos capazes de mitigar os prejuízos decorrentes da sua supressão”.
Acolhendo esse entendimento, o Tribunal Constitucional português já decidiu, no acórdão 39/84, conforme citado pelo Exmo. Dr. George Marmelstein, que “a partir do momento em que o Estado cumpre (total ou parcialmente) as tarefas constitucionalmente impostas para realizar um direito social, o respeito constitucional deste deixa de consistir (ou deixa de constituir apenas) numa obrigação positiva para se transformar ou passar também a ser uma obrigação negativa. O Estado, que estava obrigado a actuar para dar satisfação ao direito social, passa a estar obrigado a abster-se de atentar contra a realização dada ao direito social” (http://georgemlima.blogspot.com/2008/03/efeito-cliquet.html).
Segundo o Exmo. Dr. George Marmelstein, Juiz Federal e Professor de Direito Constitucional, “na França, a jurisprudência do Conselho Constitucional reconhece que o princípio da vedação de retrocesso (por ele chamado de “effet cliquet”) se aplica inclusive em relação aos direitos de liberdade, no sentido de que não é possível a revogação total de uma lei que protege as liberdades fundamentais sem a substituir por outra que ofereça garantais com eficácia equivalente.”
Acrescenta o nobre magistrado de maneira brilhante que “a idéia por detrás do princípio da proibição de retrocesso é fazer com que o Estado sempre atue no sentido de melhorar progressivamente as condições de vida da população. Qualquer medida estatal que tenha por finalidade suprimir garantias essenciais já implementadas para a plena realização da dignidade humana deve ser vista com desconfiança e somente pode ser aceita se outros mecanismos mais eficazes para alcançar o mesmo desiderato forem adotados. Esse mandamento está implícito na Constituição brasileira e decorre, dentre outros, do artigo 3º, da CF/88, que incluiu a redução das desigualdades sociais e a construção de uma sociedade mais justa e solidária entre objetivos da República Federativa do Brasil, sendo inconstitucional qualquer comportamento estatal que vá em direção contrária a esses objetivos.”
O Exmo. Dr. George Marmelstein, exemplifica, no caso, como possibilidade de adequação dos direitos ao princípio do não retrocesso determinados casos onde “os programas de assistência social, embora possam ser permanentes e duradouros, devem ter sempre em mira a obtenção de resultados concretos e positivos. Quando isso não ocorre, nada impede a revogação do benefício. Assim, muitas vezes, pode ser necessário revogar determinados benefícios sociais já concedidos, caso se demonstre concretamente que eles não estão reduzindo as desigualdades sociais nem promovendo uma distribuição de renda, mas, pelo contrário, desestimulando a busca pelo emprego e premiando o ócio. Vale ressaltar que essa demonstração não pode ser meramente retórica. Ou seja, será preciso apresentar dados confiáveis que indiquem a ineficácia da medida social e as vantagens que a sua revogação trará.”
Obviamente, o princípio do retrocesso social não deve ser visto como obstáculo para qualquer mudança no âmbito dos direitos fundamentais; demanda-se, na verdade, que qualquer alteração ou supressão de leis que concedam direitos e garantias fundamentais seja amplamente verificada, com vistas, a jamais usurpar desenvolvimentos sociais e legais já alcançados.
* Delegada de Polícia Civil em Minas Gerais. Bacharel em Direito e Administração – Universidade Federal de Uberlândia. Pós graduada em Direito Público – Universidade Potiguar. Pós-graduanda em Direito Penal – Universidade Gama Filho.