Direito e Liberdade
Fernando Machado da Silva Lima*
24.11.2000
A Constituição resulta, para alguns autores, de uma autovinculação, ou seja, da fixação, pelo próprio povo, de regras destinadas a limitar a liberdade de governados e governantes, em decorrência da própria necessidade que as sociedades e os indivíduos têm, relativamente à fixação de determinados princípios fundamentais, criando assim condições institucionais adequadas para a convivência humana e para o desenvolvimento da sociedade, e ao mesmo tempo legitimando o seu governo. Essa autovinculação pressupõe, modernamente, uma decisão democrática, que no entanto carrega consigo um paradoxo, porque cada geração pretende ser completamente livre para vincular as gerações seguintes, através de determinadas regras constitucionais, que pretende sejam imutáveis, ou pétreas, mas não aceita ser vinculada pelas gerações que a precederam.
A vigente Constituição Brasileira, como todas as outras, foi escrita com o propósito de limitar o poder do governo e de permitir que os governados o controlem. Essa noção, de que os governados devem se preocupar com as ações do governo, e de que devem ser capazes de controlar sua atuação, surgiu com as primeiras Constituições escritas, como a dos Estados Unidos da América, em 1.787, e não resultou, absolutamente, de determinadas circunstâncias características daquela época, mas da compreensão profunda da natureza humana e do próprio poder. Na verdade, as razões daquela época não mudaram, nesses mais de duzentos anos, nem se espera que mudem, no próximo milênio.
Mas nenhuma Constituição, nenhuma lei, federal, estadual, ou municipal, nem qualquer documento escrito, por maior que seja a sua hierarquia, poderá proteger os direitos inalienáveis de homens e mulheres, a menos que os governados estejam permanentemente fiscalizando todos aqueles que recebem o privilégio do poder. Esse controle é insubstituível, e somente ele pode exigir que a Constituição e as leis sejam respeitadas, e evitar que os governantes abusem do poder. No entanto, para que essa fiscalização possa ocorrer, é preciso que o governado entenda o que está fiscalizando, e entenda, da mesma forma, como esses direitos foram conquistados, e como eles podem ser facilmente anulados. Somente a opinião pública “desconfiada, móvel, vigilante e bem informada”(Habermas) pode exercer esse controle.
O desconhecimento dos nossos direitos, e até o sentimento talvez generalizado de que não vale a pena, na maioria dos casos, exigir que eles sejam respeitados, é com certeza preocupante, em qualquer situação, mas poderá ser desastroso, especialmente em uma assim dita democracia representativa, como a nossa, cujos líderes têm demonstrado, freqüentemente, a facilidade com que substituem os princípios constitucionais pelos expedientes e interesses políticos mais imediatos.
Constitui, portanto, a sagrada responsabilidade de cada geração, ensinar a seus filhos não apenas sobre a liberdade e sobre o respeito à lei e à Constituição, mas também sobre os sacrifícios impostos às gerações passadas, e sobre os mecanismos do próprio governo e a terrível facilidade com que a liberdade, tão duramente conquistada, pode ser novamente perdida.
Na verdade, não interessa aos governantes que os cidadãos, e especialmente a juventude, sejam informados a respeito da corruptibilidade do poder, sobre a manutenção de determinados privilégios e sobre os perigos que o poder representa, quando opera fora da estrita supervisão dos governados.
Talvez seja cabível a seguinte pergunta: será que devemos dizer aos nossos filhos ou aos nossos alunos, ao menos àqueles que têm o privilégio de estudar, que devem confiar ou que devem desconfiar dos nossos governantes?
Infelizmente, nós somos, na maioria, inteiramente incapazes de identificar os nossos direitos constitucionais, mesmo porque muitos pais acreditam, apenas para exemplificar, que a polícia tem o direito de sumariamente eliminar os marginais. Por essas e por outras razões, nossa juventude está crescendo em um Brasil no qual esses direitos fundamentais cada vez mais se tornam irrelevantes, especialmente pelo próprio exemplo que as autoridades constituídas primam em diariamente nos oferecer.
A Constituição não passará de um pretensioso, ridículo e caro pedaço de papel, se não pudermos contar com uma cidadania alerta e consciente, que possa exigir o respeito aos seus direitos fundamentais. Infelizmente, se a ignorância do direito parece ser a herança que deixaremos para as futuras gerações, não podemos, honestamente, acreditar que ainda temos futuro, como nação. Será que estamos deixando, para os nossos filhos, os instrumentos necessários para a defesa de sua própria liberdade? Ou será que os estamos condenando à opressão e à miséria?
Afinal, a liberdade, para ser conquistada, exige guerras e sofrimentos, mas o arbítrio, a prevalência do poder pessoal, e o exercício autocrático do poder não requerem muito trabalho, nem muita preocupação. Para que sejamos merecedores deles, basta que fechemos os olhos para a realidade.
* Professor de Direito Constitucional
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