Direito Constitucional

“Conversas reservadas no Supremo”

“Conversas reservadas no Supremo”

 

Francisco César Pinheiro Rodrigues*

 

 

Um título alternativo para este artigo seria o shakespeariano “Much ado for nothing”, muito barulho por nada.

 

Sem exceção, os atuais ministros do Supremo Tribunal Federal são juristas da mais absoluta integridade. Como posso afirmar isso? Porque para chegar a essa posição há um não confessado peneiramento do passado de cada um. Lupas e até mesmo microscópios focalizam a vida pregressa do candidato à posição máxima do judiciário do país, tão logo enunciado seu nome. Quem tiver telhado de vidro e um mínimo de juízo não se atreve a ocupar a posto porque trombetas — até então silenciosas —, estremecerão os espaços jurídicos, denunciando crimes ou fortes deslizes dos candidatos. Farão isso ou por zelo para com coisa pública ou por mera inveja.

 

Além do mais, há algo, no cargo — talvez por ser a instância máxima final —, que inibe, de maneira quase absoluta, qualquer desvio sério de conduta, principalmente na área financeira Se o jurista já era sério, fica ainda mais sério quando assume o posto. Até mesmo por natural e elogiável orgulho de ser visto com respeito — aquele merecido, porque verdadeiro. Além do mais, o fator idade representa um terceiro fator psicológico no sentido de inibir a prática de atos desonestos. Os ministros do STF ou são sexagenários ou próximos dessa faixa etária. Preocupam-se com legado moral que deixarão para filhos e netos. Não querem se transformar na vergonha da estirpe. Também não são pobretões, premidos por dificuldades econômicas. Não estão interessados em acumular fortuna, mesmo porque nem poderiam livremente dela desfrutar vez que condenados — pelo cargo e vigilância da mídia —, a uma vida de estudo e recolhimento. Querem ser lembrados, depois de mortos, como exemplos de sabedoria e correção, o orgulho da família, não como celerados mercadores de votos, falha que logo apareceria porque em toda demanda há dois adversário mutuamente se vigiando.

 

Esse intróito vem a propósito da compreensível mas não correta bisbilhotice da imprensa, que registrou uma troca de impressões pessoais, via computador, entre dois ministros do STF quando do recebimento da denúncia do “mensalão”. Enquando um dos ministros lia seu longo voto, de dezenas de páginas, dois de seus colegas trocaram, por alguns momentos, impressões pessoais, imaginando resguardados pelo sigilo. Esqueceram que vivemos, hoje, numa espécie de aquário com paredes transparentes.

 

O que mais chamou a atenção da mídia foi o fato de parecer — a um dos ministros que dialogava com uma colega de tribunal —, que um outro ministro havia antecipado seu voto, ou opinião, a respeito do rumoroso caso. E hoje, segunda-feira, 27 de agosto, em jornal paulista, o digno ministro — aquele mencionado como antecipador de voto ou opinião — aparece, em entrevista, negando esse adiantamento de voto, ou opinião, explicando que um juiz não tem o direito de antecipar seu voto. Dá como fonte dessa proibição, a LOM – Lei Orgânica da Magistratura.

 

Não sei se o honrado ministro criticado emitiu, ou não, previamente, sua opinião pessoal sobre o “mensalão”, sendo ouvido por algum colega. Mas se o fez dentro do Tribunal, apenas entre seus pares, nada há, “data vênia”, de ilegal ou mesmo imoral nessa conduta. A extrema honradez do ministro criticado, que veio do quinto constitucional, o leva até a exagerar na interpretação das obrigações dos magistrados.

 

Quando a referida LOM, no art.36, III, diz que é “vedado ao magistrado manifestar opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem”, quis se referir, tudo indica, à manifestação fora do âmbito restrito dos colegas, ao público, à mídia. Nada impede, porém, que, indagado por um colega qual sua opinião, diga que decidirá deste ou daquele modo. É óbvio que até o momento de enunciar formalmente seu voto, poderá mudar de idéia quantas vezes quiser. O que um ministro, ou desembargador, não pode fazer é pressionar seus colegas para que decidam de determinada maneira. Não lhe cabe se arvorar em tutor, orientando meninos. Pode fazer um certo esforço de eloqüência tentando convencer, evitando algo que lhe pareça uma injustiça ainda não percebida pelos colegas, mas é só. Não pode se transformar em aguerrido lobista de uma posição, cerceando, mesmo minimamente, a livre opinião dos colegas de julgamento. Se estes não querem mais ouvi-lo deve calar-se. Mesmo porque é previsível que um colega, sentindo-se pressionado, revide com certa violência verbal a essa liberdade tola e excessiva. E o honrado ministro que teria emitido opinião prévia não foi acusado de qualquer pressão.

 

Na Suprema Corte Americana os ministros decidem a portas fechadas, trocando idéias e argumentos, até chegarem a uma decisão, que também freqüentemente não é unânime. Mas que discutem entre eles, discutem, embora o mundo exterior pouco saiba exatamente como transcorreram esses debates.

 

Esse sistema — digamos “previamente comunicante” — é bem melhor que o brasileiro, porque com essa livre troca de idéias e argumentos, longe do público, um ministro pode alertar os demais quanto a enfoques e detalhes não percebidos anteriormente pelos demais. E, anunciada publicamente a decisão, com seus fundamentos, os ministros em minoria podem, querendo, detalhar as razões de suas divergências. O fato é que, durante o julgamento, em sessão secreta, os argumentos podem ser mais esmiuçados, “esmerilhados”, do que em julgamentos solenes, como ocorre no Brasil. Em tese, pelo menos em tese, argumentos previamente trocados antes de uma decisão formal devem resultar em decisões mais bem informadas e ponderadas — esclarecidas pelo debate secreto —, que aquela anunciada sem um prévio “contraditório” entre magistrados do mesmo tribunal.

 

Na maioria dos julgamentos coletivos, os mais rotineiros, não há necessidade nem utilidade de os julgadores ficarem trocando opiniões. Basta cada um apresentar o seu voto, e depois contá-los para ver qual opinião prevaleceu. Mas nos casos mais polêmicos, é até mesmo útil que haja um debate interno — sem pressões, frise-se — debate esse que provavelmente pode trazer mais luz ao problema.

 

Um outro fator prático que aconselha certa tolerância no encarar emissões de opinião antes do momento formal: um ministro, filmado ou iluminado pelos flashes dos fotógrafos, dá o seu voto solene, em favor da tese “A”. O ministro seguinte, talvez por ter tido mais tempo para examinar o caso, dá o seu voto pela tese oposta, “B”, e o faz com tal persuasão que o ministro anterior se convence que esta, e não a sua, é a decisão mais correta. O que deve fazer, nesse caso? Manter sua posição, por orgulho — mesmo sabendo que está errada —, ou pedir ao presidente da sessão licença para alterar o seu voto? Para fazer isso na frente de milhares ou milhões de pessoas, pela TV, é preciso uma boa dose de coragem moral, porque parte do público achará que esse “recuo” é uma prova de superficialidade e fraqueza; intelectual ou de caráter. Se tivesse antes trocado idéias com os colegas, em ambiente reservado, essa mudança de voto provavelmente não teria ocorrido porque no dia do julgamento ele estaria conhecendo todos os argumentos em favor da tese contrária a seu entendimento inicial. Imaginemos, ainda, uma situação ainda mais extrema: depois desse “recuo” (que lhe custou tanto, moralmente), o mesmo julgador, ouvindo um quarto, quinto ou sexto voto, mude novamente de entendimento. Como agir? Se der nova “guinada” podem contar que estará intelectualmente desmoralizado. Será, doravante, chamado de “Dr. Biruta”, aquele dispositivo, existente nos aeroportos, que muda de posição conforme a direção dos ventos. Provavelmente, num caso extremo como esse, manterá sua segunda posição, mesmo sabendo que está errada. Nem sob tortura mudará novamente de ponto de vista.

 

A explicação para o sistema americano de julgamento na Corte Suprema está, provavelmente, no espírito prático da tradição anglo-saxônica. Nos julgamentos pelo tribunal do júri os jurados deliberam, na sala secreta, trocando impressões, ao contrário do que ocorre no júri brasileiro, de total incomunicabilidade. Presumem que da discussão nasce a luz. Só discordo da técnica americana quanto à exigência de unanimidade na condenação pelo júri, porque isso permite que um único jurado, dos doze, firme posição; teimosamente ou porque discretamente ameaçado pelo crime organizado, conduzindo a um impasse, com dissolução do corpo de jurados. Isso mostra que eles também erram. Quanto à Corte Suprema, o sistema dele é mais eficaz. Na hora de votar, os ministros já conhecem todos os argumentos, prós e contras. Não vão conhecendo-os à prestações, à medida que vão ouvindo os votos dos colegas, como ocorre entre nós.

 

Já li depoimentos de ministros orgulhando-se de serem “ilhas” nos tribunais. Isso, para eles, significaria independência. “Ilhas”, no entanto, são melhores quando dotadas de boas “pontes”, ligando-as às demais. Quanto mais troca de informações, mais completo fica o quadro geral. Juiz melhor informado deve, em tese, decidir melhor que um juiz menos informado. E opinião divergente é informação, mesmo quando desagradável de ouvir.

 

Quanto às tendências ideológicas, ou “campos”, dentro do mesmo tribunal, não há como evitar que um jurista mais, digamos, “de direita”, ou “de esquerda”, pense como tal. Essa divergência é saudável, normal, e mesmo recomendável porque em ambas as posições ideológicas existem aspectos positivos e negativos.

 

Finalmente, quanto a alguma eventual “fofoca” em algum comentário secreto, está para existir um agrupamento humano totalmente livre dela. Alguém imagina que nas redações de jornais isso não existe? A imprensa não denuncia porque sua vigilância é dirigida toda ao mundo exterior, poupando os próprios filhos. Há um acordo de cavalheiros, bem compreensível. Mas uma lição restará da foto indiscreta: doravante as telas de computadores só serão lidas pelo proprietário, como devem ser.

 

Que o Supremo Tribunal Federal continue com sua difícil missão, fazendo o melhor possível com a problemática ferramenta legal de que dispõe: nossa legislação. Nenhum dos envolvidos no incidente nos deve explicação. Todos continuam merecedores de nosso respeito, simpatia e até mesmo amizade.

 

(27-8-2007)

 

 * Advogado, desembargador aposentado e escritor. É membro do IASP Instituto dos Advogados de São Paulo. Website do autor: http://www.franciscopinheirorodrigues.com.br

 

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Como citar e referenciar este artigo:
RODRIGUES, Francisco César Pinheiro. “Conversas reservadas no Supremo”. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-constitucional-artigos/conversas-reservadas-no-supremo/ Acesso em: 04 out. 2024