Direito Constitucional

Controle externo do judiciário

Controle externo do judiciário

 

Kiyoshi Harada*

 

 

Introdução

 

    

O tema não é novo. Já vem de longa data. O Min. Sydney Sanches, em dezembro de 1992, ao encerrar o Congresso realizado pela Associação Paulista de Magistrados, vaticinava que alguma forma de controle externo seria introduzida na revisão constitucional. Como sabemos, nenhuma forma de controle foi introduzida. Alías, a revisão constitucional simplesmente deixou de acontecer. Por isso, a Carta Magna vem sendo, periódica e sistematicamente, emendada e remendada de acordo com a direção dos ventos, para se adaptar às múltiplas situações conjunturais. Logo teremos uma Constituição inteiramente amoldada à vontade de cada governante, que esteja no exercício temporário do poder político.

    

O tema sempre vem à baila, porque o Judiciário não vem cumprindo ou não vem conseguindo cumprir adequadamente as suas nobres funções de distribuir a justiça. Por “n” razões não tem conseguido assimilar as mutações decorrentes de transformações sociais, políticas, econômicas e tecnológicas, implementadas por um mundo globalizado. Inegável o desempenho inadequado do Poder Judiciário, inadequação essa traduzida, principalmente, pela excessiva morosidade de sua atuação, no sentido de satisfazer o direito reclamado e afinal reconhecido. Uma justiça que leva uma década entre a propositura da ação e final satisfação do direito, certamente, não estará cumprindo o preceito constitucional que assegura a distribuição da justiça. Justiça tardia é a negação da justiça.

   

Por conta dessa morosidade, que macula profundamente a imagem do Judiciário, muitas vozes passam a apregoar a necessidade de controle externo. Outras, aplaudem a CPI do Poder Judiciário, que tende a transbordar os limites constitucionais, porque, apesar de já aprovada não se apontou nem se descobriu fato determinado a ser investigado pelo Legislativo.

    

Diante de qualquer problema que se apresente é necessário, antes de mais nada, procurar conhecer a sua causa. É preciso atacar a causa e não simplesmente combater os seus efeitos como vem acontecendo, por exemplo, no campo das reformas intermináveis. Senão vejamos. Fez-se a reforma administrativa para diminuir os gastos com pessoal, através da redução do quadro de servidores e da fixação de um novo teto salarial. Ora, o quadro inchou porque não vem sendo cumprida a exigência do ingresso no serviço público mediante concurso de títulos e provas, expressa desde a primeira Carta Republicana. Por outro lado, os marajás existem porque não se tem aplicado o disposto no art. 17 do ADCT, que determina a redução imediata dos vencimentos excedentes aos limites fixados no art. 37, XI da CF (antes da EC nº 19/98). A Reforma da Previdência foi implantada porque o INSS estaria “quebrado”. E assim continuará enquanto a União continuar retendo os recursos financeiros pertencentes à autarquia securitária e enquanto não se tapar os ralos abertos por práticas corruptivas, por onde fogem os recursos arrecadados. Outrossim, toda vez que o País acumula um déficit, e isso ocorre todo final de ano, vem à tona a idéia da Reforma Tributária que, nos últimas anos, vieram sob forma de ajustes fiscais pressionando cada vez mais o nível de tributação, que já está mais do que saturado. Agora, está se discutindo a reforma batizada, ironicamente, de “Reforma para Simplificar”. Basta simples exame ocular do seu projeto de nº 175/95 para constatar que nada está sendo simplificado, limitando-se a aumentar o encargo tributário e conferindo à União maior fatia do bolo tributário, acentuando, ainda mais, o sacrifício do princípio federativo. Enquanto não se “descobrir” e eliminar a causa – estrutura estatal maior que o PIB – nenhuma reforma tributária será capaz de superar o problema do déficit sistemático.

 

 

Causas da morosidade da justiça

 

Antes de propor qualquer medida legislativa é preciso bem diagnosticar a causa ou causas da morosidade da Justiça. Fiquemos apenas com o aspecto da morosidade, que mais de perto tem atingido a credibilidade do Judiciário. Na verdade, a crise do Judiciário tem raízes tão profundas que pode ser comparada com aquela crise que GRAMSCI definia como uma situação em que o velho está morrendo e o novo, ainda, não tem condições de nascer. Não caberia, neste modesto trabalho, o exame da crise do Judiciário em todas as suas vertentes. Daí a sua limitação ao aspecto da morosidade.

    

No nosso entender a morosidade decorre dos seguintes fatores:

 

    

a) Estrutura do Judiciário

    

A exemplo do Poder Legislativo e do Poder Executivo, o Poder Judiciário peca pelo tamanho de sua estrutura.

    

Apesar da unidade do Poder Judiciário este compõe-se de vários órgãos, dentre os quais o Superior Tribunal de Justiça, o Superior Tribunal Militar, o Tribunal Superior Eleitoral, o Tribunal Superior do Trabalho, os Tribunais Regionais Eleitorais, os Tribunais Regionais do Trabalho, os Tribunais Regionais Federais, os Tribunais de Justiça Militar, os Tribunais de Justiça dos Estados, os Tribunais de Alçada, além de inúmeros órgãos de primeira instância, como juízos federais, juntas de conciliação e julgamento, juízos militares, juizos dos Estados, Tribunais do Juri, Juizados Especiais etc., encimados pelo Supremo Tribunal Federal.

    

A proliferação de juízos e tribunais nas esferas estaduais e federal, cada qual fechado em sua estrutura peculiar, a ponto de inviabilizar a informatização da Justiça como um todo, acaba por tornar os seus serviços lentos, caros e deficientes, acarretando um distanciamento cada vez maior entre o Judiciário e seus usuários.

    

Assim, é preciso diminuir o tamanho da máquina judiciária, com enxugamento de seus órgãos a fim de eliminar a megacefalia reinante, que traz como resultado inexorável a ineficiência crônica, de difícil controle pelo seu órgão de cúpula, fato que tem estimulado a pregação de uma solução simplista, o controle externo do Judiciário quando o que, na realidade, deve ser feita é a reengenharia do Poder Judiciário. Os procedimentos administrativos nas esferas dos diferentes órgãos judiciários devem ser uniformizados para possibilitar o uso adequado das modernas conquistas tecnológicas no campo da informática, bem como criar serviços de protocolos centralizados e integrados, quer para agilizar os serviços judiciários, quer para economizar os seus custos operacionais, que são gritantemente elevados.

 

    

b) Inadequação de normas processuais

    

Além de excessivo número de recursos, como se a sua quantidade significasse boa distribuição da justiça, existe um formalismo exacerbado no estatuto processual, retardando a prestação jurisdicional. De nada adianta assegurar “n” recursos, que interpostos por milhares, através de sistema computadorizado, não terão possibilidade material de serem lidos, analisados e apreciados adequadamente por poucos julgadores que compõem os tribunais. É preciso, pois, enxugar os recursos. É preciso, também, que as leis processuais assegurem direito a um processo justo, priorizando este ou aquele tipo de processo, estatuindo procedimentos específicos para aqueles casos que devem merecer atenção especial do Estado. Finalmente, impõe-se a gradativa deformalização do processo, privilegiando o aspecto da sumariedade do processo com vistas à efetividade da jurisdição, assim como aperfeiçoar os mecanismos processuais que conduzam à rápida implementação da sentença. Do contrário, o processo constiuir-se-á em fonte permanente de insatisfação do vitorioso na demanda. A tutela antecipatória genérica, se bem assimilada, poderá trazer grande contribuição nesse sentido.

 

    

c) Massificação da Justiça

   

É verdadeiramente assustadora a enorme escalada das lides judiciais. Basta um feriado forense no meio da semana para que, no dia seguinte, as filas para distribuição de ações, para protocolo de petições e para consulta de processos ganhem proporções gigantescas. As pautas para audiências vivem eternamente congestionadas. Os partidores e contadores forenses não dão conta do recado e por isso a legislação vai impondo esse ônus para as partes, que ficam responsáveis pela elaboração do esboço de partilha, das contas de liquidação e do cálculo de custas para recursos em geral, acrescentando mais um fator de risco para os advogados. Os serventuários encontram dificuldades na localização dos processos em meio a milhares deles espalhados pelo Cartório ou Secretaria. As distribuições de procesos em segunda instância, em alguns tribunais, levam mais de dois anos, o que nos leva a repensar a utilidade das reformas processuais para agilizar o andamento do feito em primeira instância. Simples despacho de seguimento ou de indeferimento de recurso extraordinário ou especial, em alguns tribunais sediados em São Paulo, leva mais de seis meses.

    

Diante de tal quadro, pergunta-se, adianta mais reformas do Código de Processo Civil?

    

Uma das formas de diminuir as demandas individuais – caríssimas sob todos os aspectos e, ultimamente, de resultados completamente imprevisíveis – é intensificar o uso de medidas de natureza coletiva: mandado de segurança coletiva, ação direta de inconstitucionalidade etc.

    

Na área tributária, onde os abusos legislativos frequentemente extrapolam dos limites constitucionais, o exercício da ação direta de inconstitucionalidade por quem de direito (art. 103, incisos I a IX da CF) desafogaria, em grande parte, o Judiciário que tem a sua atuação voltada para solução de milhares e milhares de demandas da espécie.

    

Lamentavelmente, os titulares dessa ação direta de inconstitucionalidade vêm se omitindo. Alguns deles por razões óbvias e perfeitamente compreensíveis. Mas, essa omissão não se justifica em relação ao Procurador-Geral da República, que não é mais demissível “ad nutum” como no passado, e em relação ao Conselho Federal da Ordem os Advogados do Brasil, que tem por uma de suas atribuições defender a Constituição e zelar pela ordem jurídica do Estado Democrático de Direito. Exatamente os órgãos legitimados com maior amplitude no exercício desta ação, por não lhes serem oponíveis as restrições decorrentes da pertinência temática, são os que mais se omitem, mesmo quando provocados por entidades que representam os diversos seguimentos da sociedade.

   

É preciso conscientizar a sociedade quanto a utilidade e necessidade dessa ação direta de inconstitucionalidade que, em última análise, confere efetividade ao princípio de acesso à justiça para todos(1), desafoga o Judiciário com economia de recursos materiais, pessoais e financeiros e, sobretudo, exerce um salutar papel profilático inibindo a proliferação de leis obscuras, insidiosas e inconstitucionais, rompendo, de vez, com o cansativo círculo vicioso em que vivemos. O ideal seria o estancamento, no nascedouro, de projetos de leis ou de Emendas inconstitucionais, ao invés de aguardar o surgimento do dano em potencial aos direitos do cidadão, o que acontece sempre que esses instrumentos normativos viciados ingressam na ordem jurídica. Outra forma de desafogar o Judiciário seria a divulgação do método alternativo de solução das controvérsias de caráter patrimonial privado, através da arbitragem (Lei nº 9.307/96) onde as partes, de forma absolutamente livre e soberana escolheriam um árbitro com poderes para decidir fora das normas positivadas(2), com o emprego privilegiado dos usos e costumes, da equidade e das práticas internacionais de comércio.

 

 

Posições contrárias e favoráveis ao controle externo

    

Do que foi exposto até agora pode-se concluir que o problema da morosidade da Justiça, causa geradora da idéia de um controle externo, não vai desaparecer com a mera implantação de um mecanismo de fiscalização externa. Não irá sanar problema algum, mas, certamente, irá criar outras várias dificuldades. A questão não pode ser colocada, simplesmente, em termos pretensamente democráticos, submetendo-a à aprovação ou rejeição da mídia leiga e, muito menos, a um processo de votação pelo “sim” ou pelo “não” em instituições de elite.

    

O tema há que ser amplamente debatido, analisando-se os argumentos favoráveis e aqueles contrários.

    

Os contrários ao controle externo apontam o perigo de ingerência na atividade jurisdicional, atingindo a independência do Judiciário, imprescindível para a correta distribuição da justiça. Os favoráveis, entendem que o controle externo é uma das alternativas válidas para dissipar o clima de descrença que tomou conta do Judiciário, principalmente, por conta de sua morosidade.

 

 

O projeto do deputado José Genoíno

 

     O ilustre parlamentar paulista propõe Emenda Constitucional para criar o órgão de controle externo.

    

Essa propositura visa criar um conselho nacional e conselhos estaduais integrados por juízes, membros do Ministério Público, advogados e cidadãos brasileiros com mais de trinta e cinco anos, vedada a inclusão de parlamentares. O sistema de controle externo exercerá a fiscalização externa do Poder Judiciário, proibida a interferência no mérito das decisões proferidas e nas atividades jurisdicionais.

    

Apesar de todo cuidado com que foi elaborado o Projeto de Emenda Constitucional e apesar da respeitabilidade dos membros componentes desse órgão de controle externo, temos para nós que, não será possível limitar a ação desse órgão aos casos de desvios de conduta dos magistrados. Com o passar dos tempos, com toda certeza, será aberta a porta para interferência nas decisões judiciais comprometendo a garantia constitucional da distribuição da justiça, fundada na independência do Poder Judiciário.

    

Se é inoportuna e até mesmo inconcebível a idéia de controle externo do Judiciário, sob pena de interferir direta ou indiretamente na atividade jurisdicional, é verdade, também, que se deve fortalecer os mecanismos de controle interno, pois não há e nem pode haver “Poder intocável”. Criar um Conselho Nacional encimado pelo STF, dada a existência de elevado número de tribunais, não resultaria em uma atuação eficaz do órgão de fiscalização interna. Só serviria para congestionar, ainda mais, a pauta de julgamentos naquela Alta Corte de Justiça do País. Por outro lado, deixar a critério de cada tribunal exercer o controle interno pecaria pela falta de visão global das eventuais irregularidades administrativas no âmbito do Judiciário.

    

Na nossa opinião, para viabilizar o controle interno, o Judiciário deve, necessariamente, passar por uma reengenharia. Deve reestruturar seus órgãos com supressão daqueles não imprescindíveis à boa prestação jurisdicional. Deve haver um enxugamento de seus órgãos evitando direções múltiplas, dispersão de recursos financeiros, conflitos de competência e morosidade.

 

 

Conclusões

 

    

Para reverter o quadro atual, de descrédito da Justiça, antes de falar em controle externo do Judiciário devem ser esgotadas as medidas em níveis constitucional e infraconstitucional que poderiam aperfeiçoar esse modelo tradicional de justiça, com a incorporação de algumas práticas jurídicas pluralistas.

   

Essas medidas podem ser assim resumidas:

 

 

Fortalecimento dos mecanismos de controle interno com criação de órgãos nacionais e estaduais compostos por juízes eleitos;

 

Reengenharia do Poder Judiciário com enxugamento de seus órgãos e tribunais;

 

Uniformização de procedimentos administrativos na esfera dos diferentes órgãos judiciário a fim de possibilitar o uso adequado das modernas conquistas tecnológicas no campo da informática, bem como, criar serviços de protocolos centralizados e integrados quer para agilizar, quer para economizar os custos operacionais;

 

Difusão e incentivo do uso intesivo de instrumentos jurídicos de natureza coletiva para substituir, no que for possível, as ações de natureza individual;

 

Prosseguimento dos trabalhos de deformalização dos processos e de implantação de outros órgãos extrajudiciais, ao lado dos já existentes, para solução de conflitos, tais como a instalação de agências de conciliação e de orientação, bem como, o reaparelhamento de órgãos e tribunais administrativos para solução de controvérsias de natureza fiscal, de forma a dar maior transparência e confiabilidade às suas decisões;

 

Criação de vontade política dos operadores do direito em geral para mudar o quadro atual, desenvolvendo esforços para assimilarem os novos instrumentos jurídico-processuais quer os de natureza coletiva, quer aqueles voltados à efetividade do processo, para que tais instrumentos não se tornem letras mortas;

 

Fortalecimento da expressão econômica do Poder Nacional para que a autonomia orçamentária, conquistada na Constituição de 1988, correspoda à efetiva disponibilidade de recursos financeiros.

 

Notas

 

 

 

 

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(1) No dizer dos expoentes da Escola Paulista de Direito Processual (Cândido Dinamarco e Kazuo Watanabe) o acesso à justiça não se esgota com o simples ingresso no processo e o acesso aos órgãos do Judiciário, mas envolve também a viabilização de acesso à ordem jurídica justa e a efetiva realização do direito. Se assim é o cidadão não precisa ser necessariamente parte no processo, podendo colher os frutos de uma ação direta de inconstitucionalidade que o irá livrar de pagamento de um tributo inconstitucional, sem necessidade de, per si, movimentar a dispendiosa e morosa máquina judiciária.

(2) Os juízes, adeptos do direito alternativo, na verdade, exercem atividades próprias de árbitros sem terem sido eleitos para tal mister, porém, investidos do poder jurisdicional para promover a aplicação da lei ao caso concreto.

 

 

* Advogado. Diretor da Escola Paulista de Advocacia. Professor de Direito Financeiro, Tributário e Administrativo. Ex-procurador-chefe da Consultoria Jurídica da Prefeitura de São Paulo.

 

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Como citar e referenciar este artigo:
HARADA, Kiyoshi. Controle externo do judiciário. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-constitucional-artigos/controle-externo-do-judiciario/ Acesso em: 04 out. 2024