Direito Constitucional

Controle de Constitucionalidade em Sede de Ação Civil Pública

 

Controle de Constitucionalidade em Sede de Ação Civil Pública

 

 

Marcus Vinícius Lopes Montez[1]

 

 

RESUMO: O presente trabalho objetiva investigar os argumentos favoráveis e contra ao controle de constitucionalidade em sede de ação civil pública.

 

SUMÁRIO: Introdução; 1. Notas introdutórias sobre controle de constitucionalidade; 1.1. Sistemas de controle de constitucionalidade; 1.2. Métodos de controle de constitucionalidade; 2. O papel da jurisdição no Estado Democrático de Direito; 3. Argumentos a favor e contra a utilização do controle de constitucionalidade em sede de ação civil pública; 3.1. Utilização da ACP como substituta da ADIn; 3.2. Usurpação da competência constitucional reservada ao STF e aos TJs; 3.3. Eficácia da decisão de mérito em sede de ACP; 3.4. Possibilidade de existência de decisões contraditórias; 3.5. Eficácia da decisão de procedência na ACP oponível erga omnes; 4. A revisão do pensamento de Carvalho Filho; Conclusão; Referências.

 

INTRODUÇÃO

 

Em tempos de neo-constitucionalismo e pós-positivismo o direito ganha importante papel como agente transformador da sociedade, em especial pelo fato do Brasil possuir uma Constituição dirigente e compromissória, bem como pelo grande fosso de desigualdades ainda vigente.

 

Nesse contexto, na contemporaneidade, o papel da jurisdição constitucional vem crescendo de importância, na medida em que toda ordem normativa, seja direta ou indiretamente, busca seu fundamento de validade na Constituição. Desta forma, prestar jurisdição é fazer jurisdição constitucional, ainda mais no direito brasileiro em que se adota métodos de controle de constitucionalidade híbridos. Essa diversidade de controles, como se verá, permite que todas as instâncias do judiciário prestem jurisdição constitucional.

 

Por outro lado, com o surgimento das sociedades de massa, o direito cria, a cada dia, novos institutos para tornar mais eficaz a prestação jurisdicional. Uma das formas encontradas é a tutela coletiva das demandas, seja porque os interesses são considerados difusos ou coletivos, seja pelo fato de haver uma questão comum que justifique o tratamento coletivo de questões individuais.

 

Um dos instrumentos utilizados para a tutela coletiva são as ações civis públicas, instrumento de defesa dos chamados interesses trans-individuais.

 

Nessa linha, questiona-se a possibilidade da Ação Civil Pública ser utilizada como instrumento de controle de constitucionalidade, o que será objeto de investigação no presente trabalho.

 

 

1. NOTAS INTRODUTÓRIAS SOBRE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE:

 

A doutrina costuma classificar o controle de constitucionalidade em sistemas e métodos. Nas linhas que se seguem será feita uma breve abordagem ao controle de constitucionalidade, que se mostrará imprescindível para a adequada compreensão sobre o tema.

 

 

1.1 SITEMAS DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE:

 

Os sistemas de controle podem ser sub-classificados levando-se em conta dois critérios: quanto à natureza do órgão que efetua o controle e quanto ao momento de exercício do controle.

 

Levando-se em conta a natureza do órgão o controle de constitucionalidade pode ser classificado como sendo político ou judicial. Como o próprio nome já diz, será político quando o controle for praticado por órgão não-judicial; será judicial quando o controle for exercido pelo próprio judiciário.

 

Levando-se em conta, agora, o critério do momento de exercício do controle, este poderá ser preventivo, se realizado antes da norma adquirir vigência; repressivo, se feito após a norma adquirir vigência [i].

 

O Brasil, como regra, adota um modelo de sistema de controle hibrido, eclético ou misto, na medida em que se utiliza tanto do controle político – preventivo, quanto do judicial – repressivo.[ii] No Brasil, portanto, quem efetua o preventivamente o controle de constitucionalidade é órgão não-judicial; já o controle repressivo é feito, como regra, pelo judiciário.

 

 

1.2 MÉTODOS DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE:

 

Como forma de especialização do sistema judicial – repressivo tem-se os métodos de controle de constitucionalidade.

 

Classificam-se os métodos, também, levando-se em conta dois critérios: quanto ao número de órgãos que efetua o controle de constitucionalidade; e quanto ao modo de exercício deste controle.

Levando-se em conta o número de órgãos o controle poderá ser difuso, se exercido por qualquer órgão judicial (juiz ou tribunal); e concentrado, se efetuado por um órgão, ou determinado número de órgãos do judiciário (no caso do brasileiro, somente o Supremo Tribunal Federal efetua controle concentrado).

 

Considerando-se o modo como o controle é feito, este poderá ser por via de exceção, ocasião em que a inconstitucionalidade é argüida como causa de pedir; e por via de ação, em que a inconstitucionalidade é argüida como pedido da ação.

 

O Brasil possui ambos os métodos de controle: difuso, por via de exceção, e concentrado, por via de ação.

 

Superada essas breves noções introdutórias sobre controle de constitucionalidade, passa-se a algumas noções sobre Ação Civil Pública.

 

 

2.       O PAPEL DA JURISDIÇÃO NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO:

 

Atualmente, pode-se afirmar que em decorrência do surgimento das sociedades de massa, as demandas coletivas exigem do direito a construção de formas jurídicas que superem um modelo processual baseado numa concepção meramente privatista e individualista. [iii]

 

Já se encontram, decerto, superadas as concepções de jurisdição vinculadas a um ideal de Estado Liberal, positivista e privatista, em que os valores da igualdade formal, da liberdade individual mediante a não interferência do Estado nas relações privadas, bem como o princípio da separação de poderes como forma de subordinação do executivo e do judiciário à lei impediam uma visão fraterna e meta-individual do direito.[iv]

 

O que interessava à época eram a liberdade e a propriedade privada. Para tanto, construiu-se no direito meios processuais que objetivavam basicamente a tutela ressarcitória. Portanto, a jurisdição no modelo de Estado Liberal era entendida sob os valores ideológicos da época. Daí os conceitos de jurisdição como aquele poder voltado à afirmação de determinado direito objetivo, bem como a idéia de Chiovenda de que a jurisdição seria a função exercida pelo juiz em aplicar a vontade da lei ao caso concreto.

 

Tais idéias denotam claramente o ideal libera, pois se a liberdade era garantida na medida em que o Estado não interferia nas relações privadas, obviamente não se podia dar ao juiz poderes para uma atuação positiva ou construtiva.

 

Com a evolução do Estado para o modelo social e, posteriormente, assumindo feições de Estado Democrático de Direito[v] a jurisdição passa a ser vista sob outro enfoque: como instrumento de transformação social.

 

Explica-se: a lei, que outrora no Estado Social era a figura principal, agora, em tempos de pós-positivismo, está subordinada a Constituição, em especial aos princípios constitucionais de justiça e aos direito fundamentais.

 

Conforme leciona Marinoni [vi],

 

a função do jurista, onde se inclui o próprio juiz, não é mais apenas a de revelar as palavras da lei, mas sim a de projetar uma imagem, corrigindo-a e adequando-a aos princípios constitucionais.

[…]

Diante da transformação da concepção de direito, não há mais como sustentar as antigas teorias da jurisdição, que reservam ao juiz a função de declarar o direito ou de criar a norma individual, submetidas que eram ao princípio da supremacia da lei e ao positivismo acrítico.

[…] o conceito de tutela jurisdicional tem o seu conteúdo nitidamente influenciado pelos conceitos de dever estatal de proteção e de tutela dos direito.

 

Portanto, o advento do neo-constitucionalismo e do pós-positivismo trouxe uma nova concepção para a própria função do juiz. Este deixa de ser a ‘boca da lei’, como queira Montesquieu,  para assumir papel principal como agente de implementação dos valores constitucionais.

 

Nessa linha, portanto, em um Estado que pretende ser Democrático de Direito, toda jurisdição é jurisdição constitucional, na medida em que cabe ao juiz, ao prestar a jurisdição, adequar a letra fria da lei aos princípios dirigentes e programáticos da Constituição.

 

Como visto linhas acima, o Brasil é rico em tema de controle de constitucionalidade. Qualquer juiz ou tribunal pode exercer o controle difuso de constitucionalidade, pela via de exceção. Tal controle, muito mais do que um ‘poder’ é um dever do juiz, posto que este não deve aplicar lei inconstitucionais.

 

Neste ponto, não há como se concordar com o posicionamento do Ministro Gilmar Mendes ao afirmar que, [vii]

 

A Constituição de 1988 reduziu, portanto, o significado do controle de constitucionalidade incidental ou difuso, ao ampliar, de forma marcante, a legitimidade para propositura da ação direito de inconstitucionalidade (CF, art. 103), permitindo que, praticamente, todas as controvérsias constitucionais mais relevantes sejam submetidas ao Supremo Tribunal Federal mediante processo de controle abstrato de normas.

 

Não há como se concordar com tal argumentação, na medida em que a Constituição, em nenhum momento, denotou tal preferência ao controle concentrado das normas, muito pelo contrário, manteve o controle difuso, permitindo que qualquer juiz declare incidentalmente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo.

 

Nesse contexto, de um Estado Democrático de Direito, é que fica o seguinte questionamento: é cabível controle de constitucionalidade difuso em qualquer tipo de ação? Ou melhor, é cabível controle de constitucionalidade difuso em ação civil pública?

 

Há certa demanda pela criação de institutos que permitam a superação de um modelo processual privatista-individualista, permitindo, desta maneira, não só uma efetiva tutela dos direito individuais, mas a implementação de tutelas de direitos coletivos, o que, decerto, vem ao encontro de uma idéia de se diminuir demandas repetitivas no judiciário.

 

Com esse ideal veio a Lei 7.347/85 que consagrou a ação civil pública como instrumento de defesa dos interesses difusos e coletivos. A rigor, não há qualquer impedimento legal ou constitucional, com algumas ressalvas que serão vistas à frente, para que se proceda ao controle incidental de constitucionalidade em sede de ação civil pública. Muito pelo contrário, seguindo os princípios de criação de tal ação, é até recomendável a utilização do controle difuso.

 

 

3.       ARGUMENTOS A FAVOR E CONTRA A UTILIZAÇÃO DO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE EM SEDE E AÇÃO CIVIL PÚBLICA:

 

Defendem a impossibilidade de se argüir a inconstitucionalidade em sede de ação civil pública Gilmar Ferreira Mendes [viii], José dos Santos Carvalho Filho [ix], Arnold Wald [x], José Manoel Arruda Alvim[xi], Antônio Cesar Lima Fonseca[xii], o Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça (até o ano de 2000).

 

Postulam pela admissibilidade da argüição de inconstitucionalidade em sede de ação civil pública Luiz Roberto Barroso[xiii], Clèmerson Merlin Clève[xiv], Oswaldo Luiz Palu[xv], Hugo Nigro Mazzilli[xvi], Alexandre Freitas Câmara[xvii], e Lenio Luiz Streck[xviii], bem como a atual jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.

 

Os argumentos são diversos, os quais resumem-se basicamente em cinco pontos.

 

 

3.1 Utilização da ACP como substituta da ADIn:

 

Aduzem, aqueles que rechaçam o controle incidental em sede de ação civil pública, que o processo instaurado em sede de ação civil pública, sob aspectos práticos, seria semelhante ao deflagrado pela ação direta de inconstitucionalidade, na medida em que o objeto deflagrado pela ação direita de inconstitucionalidade não seria a tutela do direito difuso, coletivo ou individual homogêneo lesado no caso concreto, mas, sim, seria a aferição, em tese, da constitucionalidade da lei ou do ato normativo atacado  na ação civil pública.[2]

 

Nesse sentido era a jurisprudência do STF anterior a 2000, como se depreende da leitura da ementa do seguinte agravo regimental no agravo de instrumento: [xix]

 

Não se admite ação que se intitula ação civil pública, mas, como decorre do pedido, é, em realidade, verdadeira ação direta de inconstitucionalidade de atos normativos municipais em face da Constituição Federal, ação essa não admitida pela Carta Magna.

Agravo a que se nega provimento.

 

No mesmo sentido o Superior Tribunal de Justiça ao afirmar que, [xx]

 

Processo Civil. Ação civil pública em matéria tributária. A ação civil pública não pode ser utilizada para evitar o pagamento de tributos, porque, nesse caso, funcionaria como verdadeira ação direita de inconstitucionalidade […]

[…]

na ação civil pública, o controle incidenter tantum equivaleria, pelos seus efeitos, à verdadeira ação direta de inconstitucionalidade

 

Afirma Gilmar[xxi] que o fato do objeto da ação civil pública – condenação ou o cumprimento de obrigação de fazer ou de não fazer – ser amplíssimo, e que por conseguinte a utilização de tal tipo de ação estaria condicionada apenas à própria definição do que vem a ser interesses difusos e coletivos, conceitos indeterminados, portanto. Por tal motivo, no entender do Ilustre Ministro do Supremo, a ação civil pública estaria sendo equivocadamente utilizada como instrumento de controle de constitucionalidade.

 

Para Gilmar Ferreira Mendes, devido a especificidades processuais da ação civil pública relativa a eficácia da decisão, tal tipo de ação não poderia ser usado como instrumento de controle de constitucionalidade. O mesmo questiona, em tom de crítica[xxii]:

 

Ou, de fato, estamos diante de um processo especialíssimo, de característica notoriamente objetiva, isto é, sem partes, no qual o requerente atua na defesa genérica do interesse público?

 

Gilmar baseia todo sua argumentação no fato de que o controle difuso de constitucionalidade estaria em plena decadência, posto que a Constituição de 1988 teria reduzido seu papel ao instituir o controle abstrato. Nessa linha afirma:

 

Como visto, a Constituição de 1988 reduziu, portanto, o significado do controle de constitucionalidade incidental ou difuso, ao ampliar, de forma marcante, a legitimação para propositura da ação direta de inconstitucionalidade (CF, art. 103), permitindo que, praticamente, todas as controvérsias constitucionais relevantes sejam submetidas ao Supremo Tribunal Federal mediante processo de controle abstrato de normas.

 

Data maxima venia entendemos totalmente equivocada tal premissa, na medida em que a Constituição, ao instituir o controle abstrato, em nenhum momento restringiu o controle difuso. Não há como se chegar a tal conclusão pelo texto constitucional. O Brasil possui um rico sistema de controle de constitucionalidade, admitindo tanto o controle difuso, quanto o concentrado (ou abstrato)[xxiii].

 

Outrossim, se mostram equivocados a afirmação de que a ação civil pública estaria sendo utilizada como substituta da Ação Direta de Constitucionalidade. Ambas ações são totalmente diferente, na medida em que o exercício da ação civil pública dá ensejo à instauração de processo subjetivo, tendo em vista  que há partes individualizadas – o demandante propõe a ação em face do demandado –, com o objetivo de proteger direito difuso, coletivo ou individual homogêneo, e não de processo objetivo, posto que não há partes individualizadas – o requerente propõe a ação em face da norma –, sem o objetivo de proteger a ordem jurídica objetivamente considerada.

 

 

3.2. Usurpação da competência constitucional reservada ao STF e aos TJs:

 

Um segundo argumento utilizado é o de que haveria usurpação da competência constitucionalmente reservada ao Supremo Tribunal Federal e aos Tribunais de Justiças Estaduais, caso o parâmetro de controle seja a Constituição Federal ou as Constituições Estaduais, para o controle abstrato de constitucionalidade.

 

O próprio Supremo Tribunal Federal já se utilizou de tal argumentação, ao afirmar que “constituiria usurpação de competência do Supremo Tribunal Federal para controle concentrado de constitucionalidade a ação civil pública”.[xxiv]

 

Não há, portanto, qualquer tipo de usurpação de competência, posto que qualquer juiz ou Tribunal pode, ou melhor, deve efetuar controle difuso de constitucionalidade. Ressalte-se que o controle de constitucionalidade efetuado em sede de Ação Civil Pública é o difuso, e não o abstrato. Nesse sentido, parece haver certo equívoco na afirmação sobre usurpação de competência.

 

 

 3.3. Eficácia da decisão de mérito em sede de ACP:

 

Como uma terceira linha de argumentação tem-se a afirmação de que, de acordo com o disposto no art. 16 da Lei 7.347/85, com a eficácia da sentença ou acórdão proferido na ação civil pública seria espacialmente restrito ao território da unidade da federação na qual foi prolatado, ocorrendo declaração incidental de inconstitucionalidade, haveria a possibilidade da lei ou ato normativo declarado inconstitucional ter a sua eficácia suspensa em certa(s) Unidade(s) da Federação e em outras não.

 

Tal argumento, contudo, carece de rigor técnico, pois o âmbito de eficácia da decisão de mérito na ação civil pública não é espacialmente delimitado pelo território da entidade federativa da qual tenha emanado a decisão, na medida em que a decisão definitiva opera efeitos no espaço demarcado pelo pedido formulado pelo autor da ação civil pública e não pela competência do órgão jurisdicional para o processo e julgamento. Isto se dá em decorrência da interpretação conjunta das leis 7.347/85 e 8.078/90, restando ineficaz a alteração empreendida no art. 16 da Lei 7.347/85, em razão da lei 9.494/97.

 

 

3.4. Possibilidade de existência de decisões contraditórias:

 

Como quarto argumento tem-se que a s decisões proferidas em ações civis públicas diferentes, provenientes de órgãos jurisdicionais diversos, cuja competência é fixada segundo critério territorial, podem ser contraditórias entre si, nos termos do art. 2º da Lei 7.347/85.

 

Tal argumento também pode ser rebatido, pois a possibilidade de existência de pronunciamentos contraditórios não afasta a possibilidade de controle de constitucionalidade ser suscitado incidentalmente em sede de ação civil pública, posto que é da própria natureza do controle difuso a possibilidade de que hajam decisões contraditórias entre juízos diversos, enquanto não ocorrer a suspensão da execução da lei ou ato normativo pelo Senado Federal ou Assembléia Legislativa (conforme o controle seja em nível federal ou estadual).

 

 

3.5. Eficácia da decisão de procedência na ACP oponível erga omnes:

 

Um dos argumentos, com pretensões de ser o mais forte, seria o fato da eficácia do pronunciamento de procedência na ação civil pública ser oponível erga omnes, tal como ocorre no provimento de procedência na ação direita de constitucionalidade. Diante disso, argumentam que a sentença ou acórdão do órgão jurisdicional competente para processar e julgar a ação civil pública produziria efeitos que nunca seriam alcançados pela decisão em sede de controle concentrado de constitucionalidade, enquanto não suspensa a eficácia da leio ou ato normativo pelo Senado Federal ou Assembléia Legislativa, nos termos do art. 52, inciso X, CF.

 

Tal argumento, contudo, é facilmente rebatido na medida em que em sede de ação civil pública a decisão definitiva produz efeitos erga omnes, ultra partes ou erga vitimae, conforme a pretensão seja deduzida para tutelar direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos. Desta forma, a declaração incidental de inconstitucionalidade não provoca efeitos erga omnes, pois a eficácia subjetivamente limitada do provimento de procedência pressupõe que a decisão tenha sido alcançada pela coisa julgada material, o que, a toda evidência, não ocorre na hipótese, já que a inconstitucionalidade é suscitada como questão prejudicial, e não como questão principal, sendo declarada na fundamentação, e não no dispositivo, de acordo com o art. 469, inciso II, do CPC.

 

De toda sorte, se mostra claro que a ação direita de inconstitucionalidade e a ação civil pública são completamente distintas a saber: na ACP a inconstitucionalidade é argüida como questão prejudicial; é a causa de pedir (ou melhor, fundamento da causa de pedir); é decidida na fundamentação e não faz coisa julgada material. Já na ADIn, a inconstitucionalidade é objeto do pedido; questão de mérito; é decidida no dispositivo e faz coisa julgada material. Por tais razões se mostra impossível eventual confusão entre ação civil pública e ação direta de constitucionalidade.

 

 

4.       A revisão do pensamento de Carvalho Filho

 

José dos Santos Carvalho Filho revisou em parte seu posicionamento, passando a admitir a argüição incidental de inconstitucionalidade em ação civil pública, contudo, somente em determinados casos, conforme suas próprias palavras:[xxv]

 

Sempre sustentamos que a ação civil pública, não seria cabível em tal hipótese; na verdade a via electa não seria idônea para concretizar a pretensão formulada pelo autor. Em nosso entendimento, se, por um lado, a argüição de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo suscitada como matéria incidental em qualquer ação (incidenter tantum), propiciando controle difuso de constitucionalidade, é normalmente admissível nas ações que têm por objeto a proteção de direitos individuais, por outro é preciso proceder-se à necessária adequação para o fim de compatibilizar tal controle com a natureza de ações que visem à tutela de direitos transidividuais, coletivos e difusos.

[…]

Melhor refletindo, passamos a considerar a inadmissibilidade restrita às ações civis públicas em que o pedido é condenatório mandamental.

[…]

De outro lado, sendo condenatório pecuniário ou constitutivo o pedido, pode admitir-se a argüição incidental sob o argumento de que da sentença não emanarão determinações gerais – próprias de leis e atos normativos – mas sim decisão in concreto em relação ao réu, seja para a condenação ao pagamento de indenização (art. 3º, Lei 7.347), seja para desconstituição de relação jurídica (art. 25, IV, “b”, Lei 8.625/93 ou art. 51, § 4º, Código de Defesa do Consumidor)

 

Não obstante a revisão de posicionamento de Carvalho Filho, acreditamos não ser acertada tal argumentação, pelos mesmos críticas já expostas acima. Tal esforço de argumentação doutrinária, embora brilhante, se mostra desnecessária, posto que, como já afirmado, não há qualquer impedimento para a utilização do controle difuso de constitucionalidade nas ações civis pública, mesmo naquelas em que o pedido é de natureza mandamental. Caso procedente, a decisão não conterá emanação genérica como leciona Carvalho Filho, mas ordem concreta, posto que a inconstitucionalidade foi decidida como questão prejudicial a um caso concreto.

 

Nesse sentido que vem se posicionando o Supremo Tribunal Federal, ao menos após o ano de 2000. [xxvi]

[…] a Excelsa Corte tem reconhecido a legitimidade da utilização da ação civil pública como instrumento idôneo de fiscalização incidental de constitucionalidade, pela via difusa, de quaisquer lei ou atos do Poder Público, mesmo quando contestados em face da Constituição da República, desde que, nesse processo coletivo, a controvérsia constitucional, longe de identificar-se como objeto único da demanda, qualifica-se como simples questão prejudicial, indispensável à resolução do litígio principal.

 

O Superior Tribunal de Justiça também segue a linha da doutrina mais moderna, afirmando que [xxvii]

[…] é possível a declaração incidental de inconstitucionalidade, na ação civil pública, de quaisquer leis ou ato normativos do Poder Público, desde que a controvérsia constitucional não figure como pedido, mas sim como causa de pedir, fundamento ou simples prejudicial, indispensável à resolução do litígio principal em torno da tutela do interesse público.

 

 

CONCLUSÃO

 

Não obstante as diversas críticas contrárias a utilização da ação civil pública como instrumento de controle difuso de constitucionalidade, não vemos qualquer empecilho, seja jurídico/legal, seja prático. Muito pelo contrário, como visto, a tendência é o desenvolvimento de instrumentos que permitam uma tutela coletiva dos interesses, o que deve ser acompanhado por instrumentos processuais adequados. Não se deve olhar o novo com uma mentalidade adequada ao velho. O Brasil, nesse passo, se mostra rico em tema de controle de constitucionalidade, e, de certa forma, vem implementando instrumentos para uma tutela coletiva dos interesses trans-individuais.

 

 

REFERÊNCIAS

 

ALVIM, José Manoel Arruda. A declaração concentrada de inconstitucionalidade pelo STF e os limites impostos à ação civil pública e ao Código de Proteção e Defesa do Consumidor in: Revista de Processo, nº 81, 1996

 

BARROSO, Luíz Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da Constituição Brasileira. 4ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000

 

CÂMARA, Alexandre Freitas. Escritos de Direito Processual. 1ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001

 

CARVALHO FILHO, José dos Santos.  Ação civil pública. 6ª ed. Rio de Janeior: Lumen Juris, 2007;

 

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Ação civil pública e declaração incidental de inconstitucionalidade in: Direito em Revista, nº 7, 1998;

 

CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata da constitucionalidade no direito brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000;

 

DINAMARCO, Pedro da Silva.  Ação Civil Pública. São Paulo: Saraiva, 2001;

 

FONSECA, Antônio Cesar Lima. Da declaração de inconstitucionalidade in: Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política, nº 2, 1993/

 

MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de processo civil. Vol. 1: Teoria Geral do Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006

 

MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 1997;

 

MENDES, Gilmar Ferreira. Ação civil pública e controle de constitucionalidade. In: Aspectos polêmicos da ação civil pública, Cood. Arnoldo Wald, 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007;

 

MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de direito constitucional. 2ª ed. São Paulo: Celso Bastos Editor: IBDP, 1999;

 

MORAES, Guilherme Peña de. Direito constitucional: teoria da constituição. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006;

 

PALU, Oswaldo Luiz. Controle de constitucionalidade: conceitos, sistemas e efeitos. 1ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999;

 

STRECK, Lenio Luiz.  Jurisdição constitucional e hermenêutica. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense. 2000;

 

WALD, Arnoldo. Usos e abusos da ação civil pública (Análise de sua patologia) in: Revista Forense, nº 329, 1995.

 

 



[1] Professor universitário da UNESA-RJ; pós-graduado latu sensu; mestrando em direito. Membro do IBCCRIM e do IHJ.

[2] MORAES, Guilherme Peña de. Teoria da constituição. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, pg.150;



[i] Importa rememorar o momento exato em que um ato normativo inicia sua vigência. Tal momento, a rigor, ocorre quando, se levarmos em consideração o processo legislativo de uma lei, quando há a sanção ou derrubada do veto de uma lei. Ressalte-se que até hoje há certa confusão, principalmente entre os civilistas, sobre os termos: vigência de uma lei e produção de efeitos da mesma. Tecnicamente, determinada lei já esta em vigor desde sua sanção, ou derruba do veto, podendo, ainda, não produzir efeitos posto que, por exemplo, encontra-se em vacatio legis.

[ii] Fica a ressalva de que há casos excepcionais em que o Brasil se utiliza do sistema de controle político – repressivo e judicial – preventivo.

[iii] MENDES, Gilmar Ferreira. Ação civil pública e controle de constitucionalidade, in: Aspectos polêmicos da ação civil pública, (coord.) Arnoldo Wald. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007, pg 151.

[iv] MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de processo civil. Vol. 1: Teoria Geral do Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, pg. 30-31.

[v] Utilizamos o conceito de Estado Democrático de Direito desenvolvido por Lenio Streck e Luiz Bolzan. Para tais autores Estado Democrático de Direito seria um plus normativo em relação ao Estado Social. O Estado Democrático, antes de ser um sinônimo de Estado Social, é um novo modelo de Estado. Não há, efetivamente, um completo rompimento, seja com o modelo de Estado Liberal, seja com o Social; não há uma revolução das estruturas sociais. Mas se percebe, claramente, um plus que agrega características novas aos modelos anteriores. Neste momento, o direito ganha importância fundamento, posto que no Estado Democrático o direito deixa de ter cunho meramente ordenador, para atuar como instrumento de transformação social do status quo. O Estado Democrático de Direito nasce, portanto, com a finalidade precípua de efetivas as promessas de modernidade não cumpridas pelos modelos anteriores. O Estado Democrático, mais do que uma continuidade dos modelos anteriores, representa uma ruptura, na medida em que, utilizando-se de textos constitucionais compromissórios e dirigentes, traz as condições de possibilidades para a transformação da realidade social. (STRECK, Lenio Luiz, DE MORAES, José Luis Bolzan. Ciência Política e Teoria do Estado. 6ª Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008).

[vi] MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de processo civil. Vol. 1: Teoria Geral do Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, pg. 45; 132; 139.

[vii] MENDES, Gilmar Ferreira. Ação civil pública e controle de constitucionalidade, in: Aspectos polêmicos da ação civil pública, (coord.) Arnoldo Wald. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007, pg. 152.

[viii] MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de direitos constitucional. 2ª ed. São Paulo: Celso Bastos Editor: IBDC, 1999, pg.; 348 e ss.

[ix] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Ação civil pública e declaração incidental de inconstitucionalidade in: Direito em Revista, nº 7, 1998, pg. 34-35

[x] WALD, Arnoldo. Usos e abusos da ação civil pública (Análise de sua patologia) in: Revista Forense, nº 329, 1995, p. 10.

[xi] ALVIM, José Manoel Arruda. A declaração concentrada de inconstitucionalidade pelo STF e os limites impostos à ação civil pública e ao Código de Proteção e Defesa do Consumidor in: Revista de Processo, nº 81, 1996, pg. 129-131.

[xii] FONSECA, Antônio Cesar Lima. Da declaração de inconstitucionalidade in: Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política, nº 2, 1993, p. 12.

[xiii] BARROSO, Luíz Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da Constituição Brasileira. 4ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, pg 237-242.

[xiv] CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata da constitucionalidade no direito brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, pg. 97.

[xv] PALU, Oswaldo Luiz. Controle de constitucionalidade: conceitos, sistemas e efeitos. 1ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, pg. 217-225.

[xvi] MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 1997, pg. 63.

[xvii] CÂMARA, Alexandre Freitas. Escritos de Direito Processual. 1ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, pg. 334.

[xviii] STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense. 2000, pg. 486-495.

[xix] MORAES, Guilherme Peña de. Teoria da constituição. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, pg.150.

[xx] MORAES, Guilherme Peña de. Teoria da constituição. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, pg.150.

[xxi] MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de direitos constitucional. 2ª ed. São Paulo: Celso Bastos Editor: IBDC, 1999, pg.; 348.

[xxii] MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de direitos constitucional. 2ª ed. São Paulo: Celso Bastgos Editor: IBDC, 1999, pg.; 348.

[xxiii] Há certa tendência no Supremo Tribunal Federal em dar maior relevo ao controle abstrato. Para tanto basta uma breve investigação sobre a tese levantada pelo Ministro Gilmar sobre a abstrativização do controle concentrado, em que se defende que teria havia uma ‘mutação constitucional’ no art. 52, X, da Constituição, atribuindo-se um novo sentido ao texto para que as decisões, em sede de controle difuso de constitucionalidade, proferidas pelo plenário do Supremo, teriam eficácia erga omnes e vinculante independente da suspensão do Senado Federal, ato que passaria a ter efeito meramente declaratório. Contudo nos parece que tal ‘mutação’ contraria o próprio texto do art. 52, X, que afirmar expressamente que compete privativamente ao Senado Federal suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal.

[xxiv] Supremo Tribunal Federal, Reclamação 601, Relator Min. Carlos Velloso, in: RDA 206/267.

[xxv] Tal alteração de posicionamento veio expressa na 6ª edição de sua obra ‘Ação Civil Pública’.Ver: CARVALHO FILHO, José dos Santos. Ação civil pública: comentários por artigos. 6ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 20047, pg. 91-98.

[xxvi] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Reclamação nº 212, Rel. Min. Celso de Mello,  24.11.2000.

[xxvii] Janesch BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 401.440, Rel. Min. Eliana Calmon, 03.09.2002.

 

Como citar e referenciar este artigo:
MONTEZ, Marcus Vinícius Lopes. Controle de Constitucionalidade em Sede de Ação Civil Pública. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-constitucional-artigos/controle-de-constitucionalidade-em-sede-de-acao-civil-publica/ Acesso em: 12 fev. 2025