Direito Constitucional

Constituição e Medidas Provisórias

Constituição e Medidas Provisórias

 

 

Fernando Machado da Silva Lima*

 

 

A Constituição cidadã é provisória. As medidas provisórias são permanentes.

 

O Mestre Otávio Mendonça, em brilhante estudo publicado no O Liberal de 01.01.00, apontou como uma das características de nosso Direito a instabilidade constitucional, mostrando que a atual Constituição já sofreu mais emendas do que as anteriores, de 46 e 67.

 

 Na realidade, a prática tem demonstrado que o Brasil só tem democracia e Constituição, quando isso é conveniente. Os grandes interesses econômicos e financeiros exigem o desrespeito aos princípios constitucionais. Um artigo do Código de Trânsito é mais importante, porque sua desobediência é imediatamente punida. Todos os Presidentes, Sarney, Collor e Itamar, abusaram da edição e reedição das medidas provisórias, mas o atual tem transformado esse instituto em um instrumento de exceção, digno dos governos militares, tornando definitivo o que deveria ser apenas provisório, nos termos do art. 62 da Constituição Federal, e utilizando-o para atentar contra os mais sagrados princípios de nosso ordenamento jurídico.

 

No Estado democrático de Direito, as leis devem ser feitas pelo Poder Legislativo. Afinal de contas, não será para isso que o povo brasileiro mantém, com os impostos que paga, o Congresso Nacional?

 

O Presidente FHC declarou, porém, demonstrando uma vez mais seu humor negro, que é impossível governar sem medida provisória, e que não está preocupado com a popularidade. Na realidade, o uso excessivo que tem sido feito das medidas provisórias, com suas inúmeras reedições, nos onze anos de vigência da atual Constituição, causou preocupantes conseqüências institucionais, pelo enfraquecimento do princípio fundamental da separação dos poderes, consagrado no art. 2o da Constituição.

 

O Presidente legisla, sem qualquer limitação, porque o Senado e a Câmara não conseguem reagir, nem mesmo para a defesa de suas competências constitucionais.

 

O Judiciário tem sido tolhido, de diversas maneiras, em sua função de tutelar os direitos do povo e de proteger a Constituição, podendo ser aqui citada, apenas para exemplificar, a Medida Provisória no. 1.570/97, que após cinco reedições, foi convertida na Lei 9.494/97, embora atingindo frontalmente os princípios-garantias da independência e harmonia entre os Poderes da União, da isonomia, do livre e pleno acesso à Justiça e da inafastabilidade da jurisdição.

 

Assim, entre outras aberrações jurídicas, os juízes e tribunais brasileiros foram proibidos de conceder medida liminar contra atos do Governo relacionados com finanças públicas. A jurisdição cautelar, embora direito fundamental de todos e dever indeclinável do Estado, foi proibida, de modo que os juízes e tribunais estão impedidos de reconhecer a ilegalidade da exigência de um imposto, ou o direito de um servidor, um aposentado ou um pensionista, a receber quantia que legalmente lhe cabe. É evidente que se nem mesmo a Lei poderia excluir da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito (CF, art. 5o, XXXV), muito menos a norma excepcional da medida provisória.

 

Para completar o absurdo, o Presidente ingressou no Supremo com ação declaratória de constitucionalidade, assinada também pelos Presidentes da Câmara (que é um competente professor de Direito Constitucional) e do Senado, pretendendo, naturalmente, que o STF diga que é constitucional impedir os juízes de dar eficaz proteção aos direitos, como é sua obrigação. E mais, pelo efeito vinculante,  que todas as decisões já proferidas fossem revogadas, e todas as ações em andamento no Brasil fossem sustadas, de modo a que fosse impedida toda e qualquer decisão liminar contra a Fazenda Pública.

 

      O Brasil se tornou uma ditadura constitucional, porque a Carta Magna serve apenas para manter as aparências de legalidade, uma vez que o Poder Legislativo se omite diante da apropriação de sua competência pelo Executivo, e o Supremo Tribunal Federal, infelizmente, quando teve a oportunidade, se curvou, julgando legal a prática da reedição das medidas provisórias.

 

      Se não é possível governar sem medidas provisórias, certamente o Brasil será um caso único. Teremos uma democracia, em que os representantes do povo não legislam, exatamente como ocorria durante os governos revolucionários, em que o General-Presidente legislava, através de decretos-leis e Atos Institucionais, e o Legislativo era apenas tolerado, assim como o Judiciário.

 

Mas sob a vigência da Constituição de 46, não existiam medidas provisórias, nem decretos-leis, e nunca se ouviu dizer que o Presidente da República estaria impedido de governar, por essa razão. Realmente, deve ser muito difícil, para o Chefe do Executivo, imaginar a possibilidade de ter que abdicar do poder que vem sendo usurpado, ao longo desses onze anos de vigência da Constituição de 88.

 

      Mas a verdade é que a medida provisória deveria ter sido utilizada, sempre, apenas excepcionalmente, em casos de urgência, e desde que houvesse relevante interesse público, e se não fosse convertida em lei, no prazo de 30 dias, perderia a eficácia, desde a edição, conforme dispõe o parágrafo único do art. 62 da Constituição Federal.

 

Por essa razão, a melhor doutrina é unânime, no sentido de que a reedição das medidas provisórias é inconstitucional. Mas o instituto jurídico da medida provisória foi descaraterizado pelo seu uso político indiscriminado.

 

 Através do abuso na sua edição, o Executivo adotou a tática de impedir que o Legislativo funcione, pelo acúmulo de medidas editadas e pela prática de obstruir sua votação. Transcorrido o prazo fatal de 30 dias, o Presidente reedita a medida provisória, indefinidamente, e freqüentemente com alterações.

 

Evidentemente, essa prática é inconstitucional, vulnerando não somente a letra, mas também o espírito da Constituição, e anulando o princípio da separação dos Poderes.

 

 A única diferença entre o Regime atual e o de 64 é que hoje, ainda podemos denunciar o desprestígio de nossas instituições democráticas e o desrespeito ao nosso Texto Fundamental. Nada, porém, que uma boa canetada em uma medida provisória não possa resolver.

 

 

* Professor de Direito Constitucional

 

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Como citar e referenciar este artigo:
LIMA, Fernando Machado da Silva. Constituição e Medidas Provisórias. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-constitucional-artigos/constituicao-e-medidas-provisorias/ Acesso em: 22 mai. 2025