Direito Constitucional

A Publicidade e a Dignidade da Mulher.

A Publicidade e a Dignidade da Mulher.

 

André de Moura Soares*

 

 

INTRODUÇÃO.

 

A publicidade é uma poderosa força de persuasão que modela atitudes e comportamentos no mundo contemporâneo, influenciando profundamente as pessoas e a sua maneira de compreender a vida, o mundo e a sua própria existência, sobretudo no que se refere às suas motivações, aos seus critérios de escolha e de comportamento. Hodiernamente ninguém pode escapar à sugestão da publicidade, que, intrinsecamente é neutra, ou seja, pode ser utilizada de forma positiva ou negativa, conforme a intenção e a índole de quem a veicula. Enfim, existe a boa e a má publicidade.

 

A boa publicidade incentiva a concorrência, faz com que os preços dos bens de consumo sejam reduzidos, informa os membros da comunidade acerca de assuntos relevantes, incita as pessoas à prática de ações meritórias, enfim, estimula o progresso individual e coletivo.

 

A má publicidade, por sua vez, aconselha a utilização de produtos nocivos[1] ou totalmente inúteis, faz falsas promessas acerca de produtos ou exploram tendências menos nobres do ser humano[2], prejudicando os indivíduos, as famílias e a própria sociedade.

 

A publicidade, embora seja um instrumento válido e ético de comunicação social, muitas vezes é usado como método de persuasão e de motivação para convencer as pessoas a agir de uma determinada maneira. Não é incomum vermos publicidades que deformam a realidade e que desvirtuam valores que deveriam ser caros à sociedade. Precisamos estar atentos, pois a publicidade pode ter influência degradante sobre a cultura, sobre os valores sociais e sobre parcelas específicas da própria sociedade.

 

Com muita freqüência, a publicidade tende a caracterizar de modo ofensivo certos grupos particulares de pessoas, pondo-os numa situação de desvantagem em relação aos outros. Isto se verifica diariamente no modo de tratar a mulher. A exploração das mulheres na publicidade é um abuso corriqueiro e deplorável, com o qual parece que já nos acostumamos. Quantas vezes ela é tratada não como pessoa dotada de uma dignidade inviolável, mas como objeto direcionado a satisfazer a ânsia de prazer ou de poder de outros? Quantas vezes o papel da mulher, no mundo dos negócios ou da vida profissional, é apresentado como caricatura masculina? Quantas vezes a mulher é caracterizada apenas como objeto de satisfação da lascívia alheia?

 

A publicidade precisa se ater a certos limites éticos, dos quais destaco três: 1) o dever de veracidade; 2) o respeito à dignidade da pessoa humana e 3) o respeito à responsabilidade social.

 

O dever de veracidade exige que o conteúdo da informação transmitida seja verídico e completo, evitando qualquer forma de manipulação da verdade. É normal que se encontrem na publicidade alguns exageros simbólicos ou retóricos, mas não se pode admitir a deturpação da verdade e dos valores que integram a sociedade. O respeito à dignidade humana exige um absoluto respeito à condição de pessoa, não sendo de se tolerar a exploração das tendências mais baixas do ser humano. A publicidade pode ofender a dignidade do ser humano tanto pelo seu conteúdo – o que é publicado – como pela forma em que se dá a publicação e pelo impacto que gerará nos destinatários da mensagem. O respeito à responsabilidade social é desrespeitado quando a publicidade encoraja e estimula a que as pessoas tenham um estilo de vida desregrado, promíscuo. A falta de responsabilidade social se mostra mais nítida, no que tange ao desrespeito para com as mulheres, quando as reduzem a meros objetos de satisfação sexual.

 

 

EXEMPLOS E EFEITOS DA EXPLORAÇÃO DA MULHER NA PUBLICIDADE.

 

Em nosso atual ambiente cultural e publicitário, a exploração da mulher, mais precisamente do corpo da mulher, é presente em diversos anúncios publicitários, ocupa capa de revistas e é exposto a todo o momento em comerciais de televisão e de jornais. O mesmo diapasão pode ser visto nos programas de televisão, como, por exemplo, as novelas, cuja popularidade por aqui é assombrosa. O corpo feminino, definitivamente, se transformou em estratégia de consumo.

 

A publicidade do álcool, por exemplo, é uma contumaz exploradora do corpo da mulher, sempre colocada seminua ao lado de homens que ingerem bebidas alcoólicas. É como se as mulheres (tratadas como objeto) fossem um brinde, um plus ao produto anunciado.

 

A socióloga Berenice Bento[3], com propriedade, afirmou que:

 

“Há muitas formas de se assassinar uma mulher: revólveres, facas, espancamentos, cárcere privado, torturas contínuas. Mesmo com um ativismo feminista que tem pautado a violência contra as mulheres como uma das piores mazelas nacionais, a estrutura hierarquizada das relações entre os gêneros resiste, revelando-nos que há múltiplas fontes que alimentam o ódio ao feminino. Como não ficar estarrecida com a reiterada violência contra as mulheres nos comerciais de cerveja? Com raras exceções, a estrutura dos comerciais não muda: a mulher quase desnuda, a cerveja gelada e o homem ávido de sede. As campanhas são direcionadas para o homem, aquele que pode comprar. Alguns exemplos: uma mulher faz uma pequena dissertação sobre a cerveja para uma audiência masculina, incrédula de sua inteligência. Logo o mal-entendido se desfaz: claro, uma mulher não poderia saber tantas coisas se tivesse como mentor um homem; a mulher é engarrafada, transformada em cerveja; um mestre obsceno infantiliza e comete assédio moral contra uma discípula; ela é a BOA. Quem? O quê? A mulher ou a cerveja? Todos os comerciais são de cervejas diferentes e estão sendo exibidas simultaneamente. Nesses comerciais não há metáforas. A mulher não é ‘como se fosse a cerveja’: é a cerveja. Está ali para ser consumida silenciosamente, passivamente, sem esboçar reação, pelo homem. Tão dispensável que pode, inclusive, ser substituída por uma boneca sirigaita de plástico, para o júbilo de jovens rapazes que estão ansiosos pela aventura do verão.”

 

O potencial lesivo das propagandas de cerveja, citadas no trecho acima colacionado, ganha proporção quando lembramos que são veiculados a qualquer hora do dia e assistidos, de forma irrefletida, por crianças e adolescentes, cuja formação moral e intelectual ainda não se completou. As crianças e adolescentes (futuros homens), cujo amadurecimento é fortemente influenciado pela mídia, crescerão enxergando na mulher apenas um corpo cuja única finalidade é lhes dar prazer, incentivando, assim, uma cultura machista. As meninas, por sua vez, crescerão com a auto-estima comprometida, pois são retratadas como meros objetos, consumíveis e descartáveis. Diante do conteúdo da publicidade brasileira, quem lhes dirá o contrário?

 

O efeito deletério da exploração do corpo feminino na publicidade, na Televisão, jornais e revistas não atinge apenas crianças e adolescentes. Mulheres adultas, massacradas pelo ideal do “corpo perfeito, bonito e sensual” também são vítimas destes ataques à dignidade feminina. Basta lembrar que o Brasil figura entre os países em que mais mulheres recorrem às cirurgias plásticas e tratamentos estéticos.

 

Pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo[4] sobre as “Mulheres Brasileiras, nos Espaços Públicos e Privados”, constatou que 77% das entrevistadas consideram ruim a exposição do corpo da mulher na TV e 56% consideram que isto é ruim porque esta exposição dá muita importância somente ao corpo, desvalorizando as mulheres como ser humano.

 

Há alguns anos uma das músicas de maior sucesso entre crianças e adolescentes tinham um refrão que dizia: “um tapinha não dói”. Quem não se lembra deste refrão? Parece que de fato nos acostumamos a vilipendiar a mulher, em não lhe respeitar a dignidade da qual é tributário pelo simples fato de ser pessoa. Sem falar nas cachorras, nas popozudas, nas mulheres melancias, melão e outras expressões que ingressam em nosso cotidiano diminuindo a condição humana das mulheres.

 

Outra conseqüência do vilipêndio à dignidade da mulher é o imenso e crescente índice de prostituição no Brasil e do tráfico de mulheres. Vejamos o seguinte trecho extraído do artigo “Escravas made in Brazil[5]”:

 

“O tráfico de mulheres e a prostituição de milhões delas no mundo já alcançam níveis de exploração só comparáveis aos piores momentos do comércio de escravos do século 16.” (Jornal da Tarde – Mulheres: tráfico como no século 16 – 30/11/2000) “Dados apresentados pela Fundação Helsinque de Direitos Humanos, organização não-governamental (ONG) com sede na Finlândia, indicam que o Brasil é o maior exportador de mulheres escravas sexuais da América do Sul. Segundo a ONG, existem hoje 75 mil mulheres brasileiras trabalhando em cabarés, saunas e outras modalidades de casas de prostituição na União Européia.” (Jornal da Tarde – Artigos – As escravas brasileiras – Luiza Nagib Eluf – Procuradora de Justiça do Ministério Público de SP – 25/04/2001).

 

Ainda no mesmo artigo[6], explicitam a forma de cooptação de mulheres à prostituição, nos seguintes termos:

 

Os aliciadores colocam anúncios em jornais, montam empresas de representação ou agências de modelos, buscando chamar a atenção de mulheres e adolescentes ambiciosas, propõem empregos no exterior, com altos salários. Muitas são enganadas e vão parar em outros países onde serão obrigadas a se prostituir, vivendo sempre sobre ameaça, tem seus passaportes confiscados por seus compradores, ficando a mercê da violência em um país em que sequer conhece a língua. Outras sabem e vão para poderem conseguir dinheiro para melhorarem suas vidas e de seus familiares.

 

Ora, quando admitimos que os meios de comunicação social[7] reduzam a dignidade da mulher, as transformando em meros objetos, facilitamos a exploração da prostituição, facilitamos o tráfico internacional de mulheres, facilitamos e aceitamos a discriminação contra a mulher, afinal elas são meros objetos, consumíveis como uma cerveja gelada.

 

O problema não é só brasileiro, também se verifica em outros países. A diferença é que aqui se vê a omissão estatal, diferentemente do que ocorre em outras paragens.

Não é sem razão que na França, por exemplo, existe um Código Sobre a Utilização da Imagem da Mulher na Publicidade, datado de 1975, conforme notícia o Observatório da Imprensa[8]em que se destacam as seguintes regras:

 

·         “A publicidade deve respeitar a dignidade da mulher e não chocar a sensibilidade do publico”;

·         “a imagem da mulher não deve ser vista como uma provocação”;

·         “a exploração da nudez é desaconselhada”;

·          “a mulher não deve ser reduzida à função de objeto publicitário”;

·          “a publicidade não deve sugerir a idéia de uma inferioridade da mulher”.

 

Na Itália[9], em julho de 2007, o assunto foi amplamente debatido, depois que o jornal Financial Times publicou um artigo de quatro páginas em que dizia que a Itália havia se tornado o país das mulheres nuas e reduzidas a meros objetos, por causa da exploração sexista em programas de televisão. No artigo, o que mais impressionava, era a passividade com que o tema era tratado.

 

No Brasil, cujo desenvolvimento social é maior do que o francês e o italiano, a exploração do corpo da mulher é tolerada e observada sem reservas pelas autoridades civis. Na verdade, o próprio governo brasileiro incentiva a imagem do País do sexo, das mulheres fáceis, ao divulgar imagens de morenas seminuas no carnaval e nas praias. Fomentamos, institucionalmente, o turismo sexual. Não é sem motivo que somos um dos países que mais atraem turistas em busca de sexo fácil e barato. Há mais de duas décadas o uso de cenas eróticas ou sexuais é utilizado como ferramenta para vender produtos, e vemos tal fato com uma indiferença gritante.

 

O resultado, a despersonalização da mulher, que não sendo pessoa, passa a ser mero objeto.

 

Um corpo feminino torneado, magro e bonito é utilizado para vender de tudo, de sapatos a bebidas. A aceitação desta despersonalização acaba levando que se aceite a venda do próprio corpo. Em alguns países, onde a despersonalização feminina atingiu um grau maior do que aqui, infelizmente, já é possível observar mulheres leiloando a própria virgindade. Se não começarmos a nos preocupar e a tomar medidas concretas logo a nova “moda” chegará ao Brasil.

 

A tendência para desvalorizar o corpo da mulher e para reduzir a própria dignidade do feminino é evidente, mas sempre surge escamoteada, em forma de brincadeira. O tom jocoso com que o assunto é tratado reveste-no de pouca importância, mas pensemos em nossas mães, esposas e filhas na posição de meros objetos. O assunto é grave.  A vulgarização do corpo da mulher ofusca a inteligência e idoneidade feminina, reduzindo-a a um pequeno pedaço de carne. Todavia, a sua desvalorização e a conseqüente coisificação sexual do seu corpo adquirem proporções mais dramáticas quando se traduzem em assédio sexual, prostituição, tráfico humano ou estupro, dentre outros males.

 

Precisamos nos conscientizar, pois poucas são as vozes que se levantam contra o cenário de despersonalização da mulher. A triste e pungente realidade precisa ser coibida mediante atitudes governamentais, da sociedade civil, mas, sobretudo, com a conduta de cada um. Basta que, por exemplo, não se compre os produtos cuja publicidade é feita de forma desonesta, sem responsabilidade social, sem veracidade e em desrespeito à dignidade da mulher, tratando-as como meros objetos. Também se pode adotar a estratégia de registrar reclamações nos Serviços de Atendimento aos Consumidores – SAC – das empresas que violam a dignidade feminina. Tal assunto precisa ser debatido nas escolas, grupos de jovens, Igrejas. Não podemos receber da mídia o que eles tentam nos empurrar goela abaixo. Precisamos ser críticos e racionais.

 

 

CONCLUSÕES.

 

Impressiona-me que no Século XXI, com todo avanço tecnológico e científico alcançado pelo ser humano, ainda seja preciso reforçar a dignidade humana como princípio basilar da convivência harmônica entre as pessoas.

 

O primeiro passo, nesta senda, é registrar que homens e mulheres são iguais, pelo simples fato de serem pessoas, têm idêntica dignidade. As diferenças físicas e emocionais de um e de outro não lhe diminuem ou acrescem dignidade. Merecem idêntico respeito. Não há espaço para tergiversação.

 

O valor sagrado da vida, da dignidade humana tem de ser plenamente respeitado. O reconhecimento de tal direito é a base da sustentação da convivência humana.

 

A publicidade, que em si mesma é neutra, deve ser utilizada em consonância com os valores maiores da sociedade, em especial com o respeito a dignidade da pessoa humana. Tal exigência se mostra de forma bem acentuada em relação à exploração do corpo da mulher, que é retratada em inúmeras vezes como mero objeto, de forma despersonalizada.

 

Para atuar de forma ética, a publicidade e os meios de comunicação social, devem agir com amor à verdade, com respeito à dignidade da pessoa humana e com forte senso de responsabilidade social.

 

Os destinatários das mensagens publicitárias (que chegam por diversos meios de comunicação social) devem manter uma postura crítica e consciente. Devem usar a razão e o discernimento, não se mantendo em posição de inércia ou indiferença com o conteúdo que lhes é destinado pelas diversas vias de comunicação social.

 

Os pais, educadores e todos que de alguma forma tenham o dever de contribuir na formação dos mais jovens devem estar atentos ao conteúdo das matérias publicitárias que chegam ao conhecimento das crianças e adolescentes, que em face da idade não tem a personalidade completamente formada.

 

É dever das entidades governamentais, da sociedade civil e, sobretudo, de todos os indivíduos, combater a despersonalização da mulher, levada a efeito de forma tão ultrajante e insistente por segmentos publicitários e veiculados pelos diversos meios de comunicação.

 

Desligar a TV, não consumir produtos que explorem a imagem da mulher de forma a despersonalizá-la são pequenos exemplos de condutas que podem ser feitas por todos. Se todos agirmos, certamente, os agentes publicitários e os meios de comunicação social terão de repensar o modo de agir e teremos uma sociedade menos violenta e mais fraterna. Em resumo, um lugar melhor para as nossas filhas.

 

 

 

* Defensor Público em Taguatinga, DF.

 

 

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[1] Propagandas de bebidas alcoólicas e tabaco, por exemplo.

[2] Este tópico será mais bem explorado adiante.

[3] Em artigo publicado pela Folha de São Paulo (quarta-feira, 3/1/2007), sob o título “A cerveja e o assassinato do feminino”.

[4] http://www.partes.com.br/ed37/emquestao.asp – acessado em 08 de outubro de 2008.

[5] http://www.brazzilbrief.com/viewtopic.php?t=6847 – acessado em 10 de outubro de 2008.

[6] Idem.

[7] Publicidade, televisão, jornais, revistas etc.

[9] Ver o site http://murcon.blogspot.com/2007/07/por-c-assim-to-diferente.html – acessado em 10 de outubro de 2008.

Como citar e referenciar este artigo:
SOARES, André de Moura. A Publicidade e a Dignidade da Mulher.. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-constitucional-artigos/a-publicidade-e-a-dignidade-da-mulher/ Acesso em: 06 out. 2024