RESUMO
O presente artigo objetiva, em uma linguagem clara, tecer algumas considerações sobre a o conceito de Constituição Dirigente, e conseqüentemente sua relevância para uma real implementação do Estado Democrático de Direito. Abordaremos, também, a nova fase do professor Canotilho, em que este teria afirmado que a Constituição Dirigente estaria morta. Investigaremos em que circunstâncias tais afirmações foram feitas e se refletem as necessidades brasileiras, de um país de modernidade tardia e promessas constitucionais não cumpridas. Por fim, concluiremos constatando se realmente a Constituição Dirigente morreu.
SUMÁRIO: Introdução;
Introdução
É incontestável nos meios jurídicos a maestria do jurista português Joaquim José Gomes de Canotilho, devida, não só, a relevante influência em Portugal como também aqui no Brasil.
Tal fato não foi obra do acaso. A revolução portuguesa de 1974, de caráter socialista, impôs aos juristas e intelectuais um importante papel, na medida em que tiveram que construir a Constituição Portuguesa de 1976, objetivando dar legitimação e conformação às aspirações revolucionarias.
Tal Constituição possuía grande carga socialista e conteúdo eminentemente programático, contudo, sofrera grande reação conservadora dos constitucionalistas tradicionais. Estes defendiam um viés teórico-ideológico de que o texto constitucional de 1976 era dúplice, possuindo em seu conteúdo duas Constituições: uma liberal/democrática e outra dirigente/autoritária. Certo é que tal posicionamento continha implícito o objetivo de manter o status quo, sob o argumento de que somente era passível de aplicação as normas de conteúdo liberal/democrático, posto que as dirigentes não eram capazes de conformar a liberdade do legislador infraconstitucional, bem como não possuiriam aplicação direta, na medida em que eram apenas diretrizes ou instrumentos governamentais.
Foi nesse contexto histórico que Canotilho elaborou sua tese de doutoramento sobre a “Constituição Dirigente”. Buscava-se, portanto, a unidade substancial da Constituição; seu valor normativo e, principalmente, o caráter vinculante desse conjunto normativo. Por fim, cuidava-se de demonstrar que a Constituição Portuguesa devia atuar juridicamente, refutando a tese de não normatividade das normas programáticas.
Afirmava o próprio autor que “tínhamos uma Constituição que incorporava grandes conquistas e valores profundamente democráticos e se tinha que elaborar um discurso capaz de conferir-lhe força normativa, a força normativa própria do direito.”[i] As normas programáticas não são, portanto, meros programas, simples exortações morais, declarações, ou sentenças meramente políticas, mas possuem valor jurídico constitucionalmente idêntico ao dos restantes preceitos constitucionais.
Tal tese de doutoramente, somada a magistral obra Constituição Dirigente e a Vinculação do Legislador, tiveram grande e decisiva influência na Constituição Brasileira de
Canotilho, porém, veio gradativamente revendo sua posição, chegando a afirmar no prefácio da 2ª edição do seu “Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador” que a Constituição Dirigente está morta.[ii]
Este trabalho objetiva analisar, ao menos brevemente, essa nova fase de Canotilho, para muitos, chamado de Canotilho II, bem como investigar até que ponto esse novo posicionamento pode ser aplicado à realidade brasileira. Para tanto, inicia-se o trabalho abordando os conceitos e relações entre Constituição Dirigente e Estado Democrático de Direito. Passa-se, então, à análise do novo posicionamento de Canotilho, concluindo respondendo a questão sobre a morte da constituição dirigente, ao menos para a realidade brasileira de modernidade tardia.
Antes de abordarmos propriamente o tema, necessário se faz delimitar-se com exatidão os conceitos de Constituição Dirigente e de Estado Democrático de Direito, conceitos estes que apesar de estarem em voga, são freqüentemente utilizados sem qualquer parâmetro.
O constitucionalismo, em sua origem, objetivou criar mecanismos de limitação/oposição ao poder absolutista do rei. Para tanto, o constitucionalismo aspirava uma Constituição escrita, como instrumento na tentativa de impor tais limitações.
As primeiras constituições enfrentaram tal questão se utilizando do parlamento, responsável por garantir limites à propriedade e à liberdade dos cidadãos. O parlamento, representante do povo, era responsável por controlar e limitar os poderes, até então, absolutos do monarca. Nessa linha, o parlamento não deveria se submeter ao controle de nenhum outro órgão superior, posto que era representante da vontade popular, e atuava em nome deste com o objetivo de proteger a liberdade e propriedade frente ao monarca.
Por mais paradoxal que seja, o foco de tensão deixa de ser os poderes ilimitados do monarca, para se situar com maior nitidez na questão do controle da atividade do legislado, tendo em vista sua livre atuação em nome do povo.
Portanto, os abusos do Poder Legislativo geraram um terreno fértil para que, no século XX, germinasse uma nova concepção de constituição, agora com o principal objetivo de limitar os poderes constituídos, em especial a irrestrita idéia de liberdade de conformação do legislado – é a revolução coopernicana ocorrida no constitucionalismo.
O império, nesta época da história, deixa de ser da lei e passa a ser das Constituições, na qualidade de norma fundamental do ordenamento jurídico.
Dessa breve e diminuta contextualização histórica nasce o modelo de Constituição Dirigente. A Constituição não mais pode ser considerada um simples instrumento de governo, definidor de competências e procedimentos, mas sim deve aspirar e determinar um plano global de determinação de tarefas, estabelecendo programas, diretrizes e definindo fins para o Estado e sociedade.
O dirigismo constitucional reformula a própria finalidade das Constituições. A Constituição deixa de ser mero instrumento garantidor do status quo, concebida unicamente como norma jurídica formalmente superior e abstraída de qualquer conteúdo material. A Constituição Dirigente se presta a um algo mais; é condição de possibilidade para a concretização das promessas não cumpridas.
Observa-se que tal evolução no constitucionalismo encontra-se intimamente ligada com a própria evolução do Estado.
No Estado Liberal a principal preocupação era garantir a liberdade e propriedade privada. Por esse motivo, Fábio Comparato chega a afirmar que tal modelo de Estado é estático e conservador, cuja única tarefa é a de government by Law, isto é, o direito se resume às leis. A liberdade do legislador era ampla, porém muitas vezes inefetiva na redução das desigualdades.
O Estado Liberal, que se revelou um Estado de Direito puramente formal, não tardou em ser superado pelo Estado Social de Direito, no intuito de atribuir, ao próprio Estado, encargos sociais considerados pelo constituinte como indispensáveis à manutenção da paz social. A função do direito, em um Estado Social, deixa de ser meramente negativa, para adotar uma concepção positiva, na medida em que passa a assegurar o desenvolvimento do indivíduo, por meio de uma intervenção social, cultural e econômica. O Estado não se limita mais a assegurar uma liberdade formal, mas procura estabelecer uma igualdade material, igualdade de oportunidades, justificando a intervenção Estatal.
Importante ressaltar que enquanto no Estado Liberal se sobressaia a figura do Poder Legislativo, no Estado Social é o Poder Executivo que ganha importante relevo, tendo em vista que a necessidade de uma intervenção estatal.
Por fim, após a segunda grande guerra mundial, sobreveio a instituição de uma terceira forma de Estado de Direito – Estado Democrático de Direito, que no Brasil se materializou, ao menos formalmente, na Constituição de 1988. Mas afinal, o que é o Estado Democrático de Direito? O Estado Democrático de Direito é concebido com base em dois fundamentos: respeito aos direitos fundamentais / sociais e democracia.
O Estado Democrático de Direito é, portanto, um plus em relação ao Estado Social, na medida em que o Direito é visto com instrumento necessário à implantação das promessas de modernidades não cumpridas pelo Estado Social.
Desta forma, há um inevitável deslocamento do centro de tensão / decisão dos Poderes Legislativos e Executivo para o Poder Judiciário (Jurisdição Constitucional).
Concluí-se esta parte introdutória, observando que o Estado Democrático de Direito e Constituição Dirigente são conceitos/institutos intimamente ligados; são instrumentos garantidores da conformação dos poderes constituídos com a finalidade precípua de implementarem as promessas de uma igualdade material. O Direito, portanto, assume relevante papel nessa empreitada, na medida em que é o instrumento de conformação social, frente à inércia dos outros poderes.
Canotilho, com a 2ª edição do prefácio de seu livro “Constituição Dirigente e vinculação do legislador, parece ter revisto sua posição inicial de uma Constituição dirigente como instrumento de transformação social e política.
Ao cunhar a teorização da Constituição Dirigente, Canotilho defendeu que as normas programáticas não eram simples programas, exortações morais, sentenças políticas, como a doutrina tradicional insistia em defender. As normas programáticas possuiriam valor jurídico constitucional idêntico às outras normas constitucionais. Vinculariam o legislador, na medida em que seriam uma imposição constitucional; também serviriam como diretivas materiais, vinculando todos os órgãos concretizadores; por fim, seriam também limites negativos.
Esse posicionamento, contudo, vem sendo revisto pelo próprio Canotilho. O direito não mais seria hábil a regular sozinho, de forma autoritária e intervencionista, desconhecendo outras formas de intervenção de outras áreas, como a política. A Constituição, portanto, teria que necessariamente ceder perante novos modelos políticos-organizatórios, adequando-se a novos planos normativos, à novas associações abertas de estados nacionais abertos.
Nessa linha, Canotilho passa a defender um “constitucionalismo moralmente reflexivo”, entendido como tal a substituição de um direito autoritariamente dirigente, mas ineficaz, para outras fórmulas que permitam completar o projeto da modernidade. A lei dirigente cede lugar à transnacionalização e globalização. O direito constitucional deixaria de ser uma disciplina dirigente para assumir o papel de disciplina dirigida.
Diante de tais mudanças, o constitucionalismo dirigente não teria se dado conta da complexidade do mundo e das conseqüências das integrações entre as nações. Uma nova teoria da constituição seria necessária.
Por fim, conclui Canotilho dizendo que “a Constituição dirigente está morta se o dirigismo constitucional for entendido como normativismo constitucional revolucionário capaz de, só por si, operar transformações emancipatórias”. Prossegue afirmando “que alguma coisa ficou, porém, da programaticidade constitucional, …, acreditamos que os textos constitucionais devem estabelecer as premissas matérias fundantes da políticas públicas num Estado e numa sociedade que se pretende continuar a chamar de Direito, democráticos e sociais.”[iii]
Diante dessa mudança de pensamento do Canotilho sobre o constitucionalismo dirigente, necessário se faz verificarmos se tal viragem de pensamento gera reflexos no direito brasileiro, ou mesmo se se adéquam à realidade político-jurídica-social brasileira.
Há, portanto, que se contextualizar as afirmações de Canotilho, especialmente sobre a morte da Constituição dirigente. O próprio Canotilho demonstrou essa preocupação ao ressaltar que a Constituição Dirigente estaria morta, “se o dirigismo constitucional for entendido como normativismo constitucional revolucionário capaz de, só por si, operar transformações emancipatórias.”[iv] (grifo nosso)
A tese inicial de Canotilho foi cunhada para a Constituição portuguesa, em que o texto constitucional possuía claramente um caráter revolucionário, posto que previa a transformação ao socialismo.
Essa não foi a realidade da Constituição brasileira de 1988, tendo em vista ter ficado um tanto distante desse caráter revolucionário, outrora explícito na Constituição portuguesa, limitando-se apenas a marcar a transformação para um Estado Democrático de Direito.
A Constituição brasileira, portanto, não possui uma função normativa-revolucionária, tal qual prevista inicialmente na Constituição portuguesa.
Diante de tais premissas, necessárias para a compreensão e contextualização da nova tese de Canotilho, podemos responder o questionamento no que toca a Constituição Dirigente morreu.
Ao menos para a realidade brasileira, respondemos que não, a Constituição Dirigente não morreu!
Relevante são as afirmações de Lenio Streck ao afirmar que parece evidente que quando se fala de Constituição Dirigente não se está a sustentar um normativismo constitucional revolucionário, capaz de, por si só, operar transformações emancipatórias. Constituição Dirigente é a vinculação do legislador às imposições da materialidade da Constituição, pela exata razão de que, nesse contexto, o Direito continua a ser um instrumento de implementação de políticas públicas negligenciadas.
A tese da Constituição Dirigente pode ter “morrido”, tal qual cunhada originalmente para o constitucionalismo português, hoje inserido em tratados internacionais envolvendo os países europeus (União Européia). Contudo, não se pode negar que a realidade brasileira difere em muito daquela vista nos países europeus: lá houve efetivamente a instituição de um Estado Social; aqui o Estado Social foi um mero simulacro, utilizado para exacerbar ainda mais as diferenças sociais.[v]
Conclusão
As teses cunhadas por essa nova fase de Canotilho não representam necessariamente uma ruptura como muitos afirmar.
É verdade que Canotilho expressamente endereça críticas ao modelo de Estado e Constituição atuais. Tais críticas são feitas com fundamento na teoria de um Direito reflexivo, no interior do qual não se admite a interferência de um sistema em outro, numa clara crítica ao que hoje é denominado de politização do jurídico e judicialização da política. O direito, portanto, não transformaria a sociedade, mas apenas reduziria sua complexidade.
Parece evidente, nesse ponto uma certa aproximação (um tanto paradoxal) às teorias sistêmicas de Niklas Luhmann.
Apesar da Constituição de 1988 estar fazendo seu 20º aniversário, parece que a dogmática jurídica brasileira ainda não compreendeu (ou não quer compreender) o conceito exato da expressão Constituição, pelo menos em seu sentido léxico – “constituir”.
A crise vivida aqui no Brasil não é uma crise da Constituição, mas sim da sociedade, do governo e do Estado.[vi] É verdade que o direito, por si só, não conforma a realidade; quem o faz são os homens. Mas, para tanto, necessitam dos instrumentos. Essa é a importância do Direito e da Constituição. A Constituição de 1988 foi farta em prever instrumentos de correção/implementação dos direitos nela garantidos: mandado de segurança; ação declaratória de inconstitucionalidade por omissão; mandado de injunção, para se citar apenas alguns. Não faltam, portanto, meios jurídicos para a concretização da Constituição. O que falta é uma maior consciência do papel que a Constituição assume no ordenamento jurídico, bem como do papel do Judiciário frente a não implementação/realização dessa mesma Constituição.
Parafraseando Chico Buarque de Hollanda: “só Carolina não viu”.
Confirmando o que todos sabem e vêem, menos grande parte da dogmática jurídica brasileira, vale repetirmos as constatações de Sergio Buarque de Holanda: “As constituições feitas para não serem cumpridas, as leis existentes para serem violadas, tudo em proveito de indivíduos e oligarquias, são fenômenos corrente em toda a história da América do Sul.”[vii]
Referências:
BERCOVICI, Gilberto. A problemática da constituição dirigente: algumas considerações sobre o caso brasileiro. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/web/cegraf/ril/pdf/pdf_142/r142-06.pdf>. Acesso em: 10.05.08.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 6ª ed. São Paulo: Malheiros.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. El Derecho Constitucional como um compromisso permanentemente renovado (entrevista a Eloy Garcia) in Anuário de Derecho Constitucional y Parlamentario, (1998), p. 33;
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador. 2ª ed. Coimbra: Coimbra. 2001;
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Canotilho e a Constituição dirigente. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005;
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil, 2ª ed, Rio de Janeiro: José Olympio, 1948, p. 273;
STRECK, Lenio Luiz. Teoria da constituição e estado democrático de direito: Ainda é possível falar em constituição dirigente?. Doutrina, Rio de Janeiro/RJ, n. 13, p. 280-310, 2002.
STRECK, Lenio Luiz. Constituição ou barbárie? – a lei como possibilidade emancipatória a partir do Estado Democrático de Direito. Disponível em: < http://www.ihj.org.br/poa/professores/Professores_02.pdf> Acessado em 10.05.08.
* Marcus Vinícius Lopes Montez, Mestrando pela UNESA, pós-graduado (especialização) pela UNESA, professor universitário.
[i] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. El Derecho Constitucional como um compromisso permantentemente renovado (entrevista a Eloy Garcia) in Anuário de Derecho Constitucional y Parlamentario, (1998), p. 33 apud COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Canotilho e a Constituição dirigente. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005 p. 5.
[ii] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador. 2ª ed. Coimbra: Coimbra. 2001 apud COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Canotilho e a Constituição dirigente. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005 p. 5.
[iii] Id.
[iv] Id.
[v] STRECK, Lenio Luiz. Constituição ou barbárie? – a lei como possibilidade emancipatória a partir do Estado Democrático de Direito. Disponível em: < http://www.ihj.org.br/poa/professores/Professores_02.pdf> Acessado em 10.05.08.
[vi] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 6ª ed. São Paulo: Malheiros. p345-348.
[vii] HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil, 2ª ed, Rio de Janeiro: José Olympio, 1948, p. 273.