A Assistência Judiciária Gratuita e Suas Implicações Éticas
Vitor Vilela Guglinski *
A edição da Lei nº. 1.060/50 indubitavelmente representou uma conquista para a nossa nação, ao garantir o acesso dos mais necessitados à jurisdição. Definiu em seu art. 2º, parágrafo único, como sendo necessitado todo aquele cuja situação econômica não lhe permita pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo do sustento próprio ou da família, consignando no art. 4º que para fazer jus aos benefícios daquela lei, basta que a parte faça simples afirmação de que não está em condições de suportar tais ônus, afigurando-se verdadeira exceção à regra processual que incumbe a quem alega, o respectivo ônus da prova. Em contraposição a tal estatuto, o art. 5º, LXXIV, da CF 88, dispôs que o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos (grifos meus). Nada obstante, os tribunais pátrios firmaram entendimento ratificando que a simples alegação de hipossuficiência da parte é bastante a garantir-lhe o gozo dos benefícios da Lei de Assistência Judiciária.
A preocupação do legislador pátrio em garantir o amplo acesso aos órgãos do Poder Judiciário pode ainda ser sentida na edição de outras importantes legislações, como a Lei nº. 7.437/85 (Ação Civil Pública), o Código de Defesa do Consumidor, e a Lei 9.099/95 (Juizados Especiais), evidenciando, assim, a necessidade de garantir ao cidadão o exercício de seus direitos mais básicos, bem como assegurar-lhe a não violação das garantas que lhe foram constitucionalmente conferidas pelas diretrizes do Estado Democrático de Direito.
Feito este breve intróito, e tendo em vista a nobreza de tal instituto, uma outra ótica, baseada nos abusos de direito que ocorrem no cotidiano forense, se faz necessária, uma vez que a concessão de assistência judiciária gratuita, com base na simples afirmação de hipossuficiência, faz com que advogados utilizem o remédio destinado àqueles que realmente necessitam, em favor de indivíduos abastados.
O dia-a-dia dos fóruns demonstra um panorama lamentável no que se refere ao requerimento da gratuidade judiciária. De forma a aclarar a visão do leitor, bem como fornecer-lhe dados para a formação de sua opinião, recorrerei a três casos que acompanhei como assessor do juiz da 2ª Vara Cível da Comarca de Juiz de Fora – MG, onde os respectivos juízes, contrariando a jurisprudência firmada pelo TJMG, cassaram a assistência judiciária deferida a figuras notórias da cidade, sendo que dois destes casos ocorreram em processos distribuídos perante o Juízo que sirvo.
Não faz muito tempo, um ex-vereador de Juiz de Fora – MG, cujas posses ultrapassam a cifra dos milhões, requereu a gratuidade em um processo, tendo o juiz, inicialmente, acolhido tal pedido. Em outro feito, uma senhora, sócia de uma sociedade empresária, exploradora do ramo de transporte coletivo urbano, requereu tal beneplácito, mesmo após ter confirmado em audiência, que percebia mensalmente de R$10.000,00 a R$15.000,00, como sócia da empresa. O terceiro caso, mais recente, ocorreu na 6ª Vara Cível de Juiz de Fora. Um advogado, militante na comarca, e contumaz requerente da assistência judiciária gratuita, teve o benefício cassado após o juiz proceder à consultas no sistema de acompanhamento processual, verificando que tal causídico, somente em primeira instância, figurava como patrono em aproximadamente 550 processos, sendo que destes, cerca de 120 eram em causa própria. Imperioso salientar que dito advogado sempre bradou pelos corredores do fórum que era um dos maiores “sacadores” de alvarás da comarca, e tais motivos levaram o juiz a concluir que, em razão de sua notoriedade como profissional, possuía amplos recursos para a perfeita condução das ações ajuizadas em causa própria.
Diante de tal realidade, penso seja oportuno discorrer acerca das implicações éticas que envolvem a utilização do instituto da assistência judiciária, seja pela parte, seja pelo advogado que aceita patrocinar o cliente que sabe ser detentor de amplos recursos, pois, como dito, os juízes raramente contrariam o entendimento firmado pelos tribunais, no sentido de que basta que a parte alegue não possuir condições de arcar com os ônus processuais para que seja merecedora dos benefícios instituídos pela respectiva lei.
O art. 14 do Código de Processo Civil elencou uma série de deveres a serem observados pelos sujeitos que integram a relação jurídica processual, dentre os quais está o dever de proceder com lealdade e boa-fé (inciso II). Registre-se que a boa-fé, neste particular, aparece de forma objetiva, isto é, significando que todos aqueles que de qualquer forma participem do processo são obrigados a agir com probidade, de forma que o processo como instrumento pacificador, cumpra fielmente seu desiderato. Em se tratando de requerimento de assistência judiciária gratuita, penso, com todo o respeito aos bons profissionais da advocacia, que, neste particular, a regra do dispositivo em epígrafe reclama sua estrita observação por quem possui, de forma ampla, o jus postulandi.
Recorrendo-me ao Código de Ética e Disciplina da OAB, alguns deveres do advogado, já descritos em seu preâmbulo, merecem ser destacados. São eles:
“ser fiel à verdade para poder servir à Justiça como um de seus elementos essenciais; proceder com lealdade e boa-fé em suas relações profissionais e em todos os atos do seu ofício; aprimorar-se no culto dos princípios éticos e no domínio da ciência jurídica, de modo a tornar-se merecedor da confiança do cliente e da sociedade como um todo, pelos atributos intelectuais e pela probidade pessoal; agir, em suma, com a dignidade das pessoas de bem e a correção dos profissionais que honram e engrandecem a sua classe”.
Além do constante no preâmbulo daquele diploma, ao longo de sua leitura é possível constatar que a lealdade, a boa-fé, a probidade, as reputações pessoal e profissional, a honestidade, enfim, a excelência moral com a qual o advogado deve se conduzir no exercício de seu mister aparece de forma incisiva, demonstrando, assim, sua importância na construção da democracia e da cidadania.
Dispenso especial atenção à figura do advogado neste artigo, em virtude do caos que o Poder Judiciário vivencia hodiernamente, pois a jurisdição, via de regra, é informada pela inércia, significando que afora os atos que competem de ofício ao juiz, este se movimenta principalmente em consonância com o que consta nas petições que lhe são dirigidas. São os advogados que fixam os limites da lide, e por isto devem ser destinatários de maior rigor em relação ao pleito de assistência judiciária.
O advogado, ao pleitear a assistência judiciária para seu cliente, deve entender como necessitado, consoante a dicção do parágrafo único do art. 2º, da Lei nº. 1.060/50, aquele indivíduo cujo mínimo existencial seja ameaçado, caso lhe seja imposto o pagamento das despesas processuais e dos honorários advocatícios. Isto é, aquele cujas necessidades mais básicas como: alimentação, vestuário, moradia, transporte, saúde, enfim, as condições mínimas à sua sobrevivência venham a sofrer drástica interferência com a imposição de tais ônus, uma vez que tal acarretará na redução substancial da verba destinada aos bens vitais essenciais.
Novamente ilustrando a visão do leitor, os três casos que mencionei linhas antes, referem-se à indivíduos que exibem suntuosas moradias, freqüentam lugares exclusivos, desfilam em caros de luxo, viajam frequentemente ao exterior, enfim, possuem alto padrão de vida. Mas, receosos de que o custo de um processo judicial afetasse seu patrimônio, requereram a assistência judiciária gratuita. Indago ao leitor quem é pior: a parte, que aceita ingressar em juízo sob o pálio da gratuidade, ou o respectivo patrono que a pede, sabedor da situação financeira de seu cliente?
Minha intenção, registro, não é a de atacar os advogados ou pintá-los como os vilões da crise do Judiciário. Pelo contrário, faço minhas observações no intuito de que sofram reflexões, para que cada um se aprimore no nobre exercício da advocacia. Penso seja necessário tão nobres defensores reverem seu posicionamento no que toca aos requerimentos acintosos de assistência judiciária, uma vez que a prática forense demonstra que a maioria dos processos onde tal benefício é pleiteado gera a respectiva impugnação, ou seja, faz nascer um outro processo, atrelado ao principal, a ser analisado pelo órgão julgador, provocando, destarte, um atraso no provimento jurisdicional na causa principal, que é de fato a razão de a parte ter ingressado em juízo. Ademais, não raro, aquele que hoje impugna a concessão da gratuidade à parte ex-adversa, amanhã pugnará por sua concessão em outro feito, demonstrando, dessa forma, uma incoerência incompreensível em sua conduta profissional.
Assim sendo, uma simples mudança de comportamento promoveria uma enorme mudança no cenário judiciário brasileiro, evitando atrasos desnecessários no andamento dos processos, consequentemente fazendo com que a Justiça chegue mais célere ao jurisdicionado, que é a razão de ser de qualquer instituto jurídico, na medida em que o precede.
As questões éticas, pois, merecem especial atenção de um modo geral, se levarmos em conta as sábias palavras de Miguel Reale, ao proclamar que o Homem é o “valor fonte de todos os valores”. Somente observando a ética em nossa peregrinação haveremos de alcançar, de forma legitima, e sem a necessidade da criação de novos institutos jurídicos, o bem comum. E ainda mais, alcançaremos nossa própria redenção.
* Assessor de Juiz em Juiz de Fora, especialista em Direito do Consumidor pela Universidade Estácio de Sá de Juiz de Fora.
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