Ninguém duvida que nossa legislação por numerosa que seja, não atende a demanda de questões postas à decisão pelo Poder Judiciário. Assim é que, não raro, acabamos por nos deparar com o que se chama delacuna da lei, ou seja, com seu silêncio a respeito de um assunto ou outro, colocando algum obstáculo a respostas efetivas pela sociedade esperadas.
É que a legislação não tem conseguido acompanhar os tempos, mais precisamente, a multiplicidade de situações que o homem cria no curso de sua existência, atendendo ora a razão, ora a paixão, enfim, dando azo aos apelos que a vida lhe faz.
Entretanto, nada justifica que um Juiz pudesse vir a omitir-se na prestação jurisdicional, alegando lacuna da lei. O Judiciário se erige como poder, exatamente como forma de dizer presente e ter, em nome da justiça, resposta efetiva e pronta ao conflito suscitado. Não poderá deixar sem decisão qualquer questão que lhe seja proposta. Neste sentido, de forma sábia afirmam Aftalión, Garcia y Vilanova(1), com os quais comungo no sentido:
“Contra la opinión de algunos autores, que han sostenido que en el ordenamiento jurídico existen lagunas – o sea, casos o situaciones no previstas – que sería necesario llenar o colmar a medida que las circunstancias mostrasen la conveniencia de hacerlo, debemos hacer notar que el ordenamiento jurídico es pleno: todos los casos que puedan presentarse se encuentran previstos en él (…) No hay lagunas, porque hay jueces”.
Desde que a Constituição de 1988, demonstrando solicitude ante a situação concreta de conviventes, pessoas que sem o selo legal, entre si pactuaram tacitamente, obrigações recíprocas, erigiu-a à condição de família, duas leis foram editadas. A primeira, Lei 8.971/94, cognominada lei dos concubinos. A segunda, Lei 9.278, de 10 de maio de 1996, regulamentando da Constituição Federal:
Art. 226 – A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
§ 3º – Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
A partir de então, ao menos dois aspectos vêm apresentando alguma dificuldade: convivência duradoura e sua respectiva repercussão sobre o patrimônio, quando há.
Convivência duradoura
Na regulamentação do dispositivo constitucional acima , veio dizendo o art. 1º da lei citada: É reconhecida como entidade familiar a convivência duradoura, pública e contínua, de um homem e uma mulher, estabelecida com objetivo de constituição de família.
Pergunta-se como é que deve ser entendida essa convivência duradoura ou como deve ser reconhecida. Não é sem razão. Como família, não difere da que se forma mediante casamento. E há casamentos que terminam no dia seguinte até, quanto mais há os que duram apenas alguns meses, pouquíssimos anos, menos de cinco, muitos. E cinco anos é o lapso que o Instituto Nacional de Seguridade Social sempre prescreveu como forma de caracterizar a relação dos outrora companheiros, até amantes, para conceder-lhes benefício.
Logo, se o fato de no casamento não carecer de tempo para configurar o que anteriormente entre os contraentes foi pactuado, dir-se-á ser porque se processou segundo as regras civis. Mas mais que de casamento fala-se em família e é à família que foi assegurada pela Constituição, a proteção do Estado.
Na hipótese de ter havido casamento entre duas pessoas, isto é, tenha havido celebração: do pacto anti nupcial ao ato consumativo, ao ser proclamado: “eu vos declaro marido e mulher”, na hipótese de que jamais venham a coabitar ou conviver, se entre os dois não há aquele respeito recíproco recomendado aos cônjuges, se cada um continua adotando o comportamento que antecedeu à celebração; se mesmo vindo a terem filhos, ignoram-nos, poderá ser admitido que a intenção foi outra, jamais que tenham sido movidos pelo ânimo de constituir uma família.
Ao invés, entre os que apenas convivem, mas agem em sentido oposto, visíveis aquelas características, teremos a família. Além disto, não é que seja grande a dificuldade do reconhecimento, pois, o que vai caracterizar uma convivência duradoura, está previsto na própria lei, ou seja, que seja pública, contínua, entre um homem e uma mulher, e que tenha sido com o fim de constituição de uma família.
O lapso de tempo se confunde com o ânimo do qual se alimentam os que se unem. Não será o tanto em anos que caracterizará a união estável, mas repete-se, a prova de que ao se unirem foram determinados pelos pressupostos evidenciados e que a caracterizam.
Como já escrevi em outro artigo(2): “a dificuldade se evidenciará na hora de eventual necessidade de postulação em juízo, porque, assim como não basta dizer ao Estado Juiz, eu sou casado com fulano, mas tenho que provar mediante exibição de certidão do registro respectivo do meu casamento, não basta que eu diga, vivo, convivo, desde tal dia, ou por este tempo com A. Preciso provar”. Entendo que esta prova possa ser produzida antecipadamente e será facilitada pela presença de filhos. Uma forma é valer-se do que dispõe o art. 861 do Código de Processo Civil: “quem pretender justificar a existência de algum fato ou relação jurídica, seja para simples documento e sem caráter contencioso, seja para servir de prova em processo regular, exporá, em petição circunstanciada, a sua intenção”, ao Juiz.
Já adotei este procedimento há mais de vinte anos atrás, quando procurada por um casal que se preocupou com a situação em que conviviam, na hipótese principalmente da morte dele, com bem mais anos que ela e porque em seu nome estavam todos os bens que tinham.
A prova testemunhal, por alguém já cognominada “a prostituta das provas” continua sendo meio idôneo, até porque, quando desde sempre admitida, o foi em nome do respeito que se deve tributar à palavra cidadã de todo homem, proferida consoante o dever cívico de ser honesto e verdadeiro.
Efeitos patrimoniais da União Estável
O termo patrimônio na sua origem latina traduz “patris” = do pai, mais “munus” = ofício, encargo. O “pater famílias” era o único detentor da propriedade de todos os bens. Hoje, vulgarizado o termo, corresponde ao conjunto de bens que alguém tem ou ao conjunto de bens de que alguém é titular com as obrigações que disto decorrem.
No casamento, no que diz respeito ao patrimônio, admite-se a opção por uma das três modalidades: comunhão universal ou pela parcial de bens, como de sua total separação.
Erigida à condição de família a união estável, a ela se reconhece na hipótese de rescisão (termo com que a lei se exprime ao mencioná-la), o direito de partilha dos bens. Daqui nasce a questão de como se fará?
Em princípio, responder-se-á, tal qual se faz na separação ou no divórcio. Mas em qual das formas? No casamento, a escolha prévia determinou o regime, o que não acontece na união estável.
A lei não diz. Mas nem nesta hipótese falar-se-á de lacuna, pois, o ordenamento jurídico reservou a determinado agente, no caso, ao juiz, a atribuição de dizer sobre o fato concreto que lhe for apresentado. Que se valha por conseguinte, do disposto no art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil: “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”.
Como de acordo com a analogia? pelos ditames do bom senso. Como segundo os costumes? segundo o que ouve do povo do qual deve estar muito perto, para não correr o risco de errar, mesmo quando aplicar exclusivamente a lei; e quanto aos princípios gerais de direito, porque os homens já não terão o que inovar em se tratando de si mesmos. Quando pensarem que estarão dizendo algo que seja novo, retrocedam e saibam que no passado, já houve alguém quem disse o que estará dizendo.
Pessoalmente, considero que se devam adotar as regras previstas para a comunhão parcial de bens, ou seja, será partilhado o patrimônio comprovadamente acrescido no curso da convivência pelo esforço comum dos que a constituem, isto é, dos conviventes.
Diversamente, a equiparação de direitos entre os que se casam e os que apenas convivem os desigualaria, pois, reconheceria a estes um direito mais amplo que àqueles, ferindo o bom senso e a própria justiça.
Vai chegar o dia em que os que decidirem conviver sem satisfação dos preceitos civis que se aplicam ao casamento, concluirão pela necessidade de contratar expressamente sobre como deverá ser interpretada suas vontades(3). Estarão condicionados somente a se haverem nos limites do que seja lícito, sendo ambos capazes e sem ferir qualquer preceito de lei. Aliás, tal e qual já previa o Código de Hamurabi – dezoito séculos antes de Cristo: art 128 – Se alguém toma uma mulher, mas não conclui um contrato com ela, esta mulher não é esposa.
Conclusão
Trata-se de assunto novo no mundo jurídico, outras dúvidas virão, outras questões serão postas.
Quando os juízes e tribunais, mediante boa argumentação jurídica, que por sua vez deve brotar da pena das partes, forem provocados, se fará claridade nestas sombras e cada um confirmará o que já lhe dita o bom senso do qual o direito é apenas aquele que o manifesta, expressa ou traduz.
NOTAS
1. Introducción al Derecho, n 1º 27, pág. 233, Buenos Aires, 1975.
2. União Estável e Concubinato
3. Tenho comigo um contrato firmado entre um senhor de mais de 60 anos de idade com o pai de uma garota de apenas 14. Deparei-me com esta situação no Juizado da Infância e do Adolescente em Vitória – ES..
* Marlusse Pestana Daher, Promotora de Justiça, Ex-Dirigente do Centro de Apoio do Meio Ambiente do Ministério Público do ES; membro da Academia Feminina Espírito-santense de Letras, Conselheira da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Vitória – ES, Produtora e apresentadora do Programa “Cinco Minutos com Maria” na Rádio América de Vitória – ES; escritora e poetisa, Especialista em Direito Penal e Processual Penal, em Direito Civil e Processual Civil, Mestra em Direitos e Garantias Fundamentais.