O abuso de direito no uso da propriedade
Gisele Leite
Denise Heuseler
A propriedade é direito de todos, e faz parte das necessidades inerentes ao ser humano. Tendência manifesta desde os primeiros anos de vida dos homens, quando ainda jovem, apodera-se de objetos que sejam de seu interesse e recusa-se a devolvê-los, chegando mesmo a gritar e espernear, na tentativa de manter-se proprietário de sua conquista. Traduziu com maestria R. G. Renard:
“A propriedade faz parte da natureza do homem e da natureza das coisas. Como o trabalho, ela encerra um mistério – é a projeção da personalidade humana sobre as coisas. A pessoa tende à propriedade por um impulso instintivo, do mesmo modo que a nossa natureza animal tende ao alimento. O apetite da propriedade é tão natural à nossa espécie como a fome e a sede; apenas é de notar que estes são apetites da nossa natureza inferior, ao passo que aquele procede da nossa natureza superior. Todo o homem tem alma de proprietário, mesmo os que se julgam seus inimigos. É isto que se entende quando se afirma que a propriedade decorre do direito natural”
(R.G. Renard, L’Église et la Question Sociale, p. 137 et seq.).
Abuso de direito não é simplesmente usar contra o direito, e diferencia-se por ser além de usar, de ultrapassar. E, se o abuso de direito significasse genericamente que é ir além de um limite, confundir-se-ia com a modalidade geral de ilícito. O há de peculiar está em ultrapassar um limite teleológico ou funcional. O ato abusivo enquadra-se na descrição do direito , mas desrespeita a função deste, exemplo disto verificamos na jurisprudência abaixo:
“CHEQUE. FURTO-PROTESTO. ABUSO DE DIREITO. ESTABELECIMENTO BANCÁRIO. SUSTAÇÃO DE PROTESTO. – Cheque furtado de dentro do próprio estabelecimento bancário. Apresentação e devolução com essa anotação. Legitimidade do banco para a sustação do protesto e anulação. Tendo o cheque sido furtado, juntamente com outros talões do banco sacado, o apresentante que os recebeu de estelionatário, não pode forcar o titular da conta a um pagamento, sob a ameaça de protesto. O protesto, no caso, é abusivo, porque na devolução o apresentante tomara ciência das circunstancias, além de desnecessário na forma do art. 47 da Lei 7357.85. O banco do sacado tem legitimidade para a sustação do protesto e anulação dos títulos, porque o talão foi furtado antes da entrega ao cliente e, caso o correntista sofresse qualquer prejuízo, o banco seria responsabilizado. Reconvenção. Não pode o apresentante que foi vítima de estelionato, porque não conferiu a assinatura do emitente, pretender repassar o prejuízo ao sacado. Apelação desprovida.”
. (TARS – APC 194.180.865 – 5ª CCiv. – Rel. Juiz Jorge Alcibiades Perrone de Oliveira – J. 16.02.1995)
Obviamente o conteúdo inicial do ato abusivo é lícito, age dentro da órbita jurídica e, permitida por ela, mas transgride seu fim, e interfere de modo agressivo e lesivo na esfera jurídica de outrem.
Não obstante todo os princípios de eticidade e socialidade abraçado pelo Código Civil vigente, é preciso lembrar que todos os direitos têm limites, mesmo os direitos de personalidade.
O abuso de direito consiste exatamente no exercício desfuncionalizado de um direito. O direito de propriedade de bem imóvel, foi o berço donde surgiu a teoria do abuso do direito.
José de Oliveira Ascensão faz digressão histórica interessante a relatar que a propriedade foi exaltada com a Revolução Francesa e sacralizada enquanto direito. A própria classificação técnica do direito de propriedade como absoluto, no sentido de ser erga omnes, daí resultou o equívoco de que a propriedade não teria limites, e foi essa concepção que vigorou durante o século XIX.
Na verdade contemporaneamente sabemos que os direitos reais tidos como absolutos e oponíveis erga omnes, não poderá contrariar a função social da propriedade consagrada em berço constitucional e, nem mesmo o princípio da boa-fé objetiva e ainda os direitos de vizinhança. Ademais as normas de ordem pública, voltadas para a proteção do interesse público são cogentes e, também se aplicam aos direitos reais:
“Processo REsp 821083 / MG
RECURSO ESPECIAL 2006/0035266-2
Relator(a) Ministro LUIZ FUX (1122)
Órgão Julgador T1 – PRIMEIRA TURMA
Data do Julgamento 25/03/2008
Data da Publicação/Fonte DJe 09.04.2008
Ementa
ADMINISTRATIVO. AMBIENTAL. ARTS. 16 E 44 DA LEI Nº 4.771/65. MATRÍCULA DO IMÓVEL. AVERBAÇÃO DE ÁREA DE RESERVA FLORESTAL. NECESSIDADE.
1. A Constituição Federal consagra em seu art. 186 que a função social da propriedade rural é cumprida quando atende, seguindo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, a requisitos certos, entre os quais o de “utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente”
2. A obrigação de os proprietários rurais instituírem áreas de reservas legais, de no mínimo 20% de cada propriedade, atende ao interesse coletivo.
3. A averbação da reserva legal configura-se, portanto, como dever do proprietário ou adquirente do imóvel rural, independentemente da existência de florestas ou outras formas de vegetação nativa na gleba.
4. Essa legislação, ao determinar a separação de parte das propriedades rurais para constituição da reserva florestal legal, resultou de uma feliz e necessária consciência ecológica que vem tomando corpo na sociedade em razão dos efeitos dos desastres naturais ocorridos ao longo do tempo, resultado da degradação do meio ambiente efetuada sem limites pelo homem. Tais conseqüências nefastas, paulatinamente, levam à conscientização de que os recursos naturais devem ser utilizados com equilíbrio e preservados em intenção da boa qualidade de vida das gerações vindouras (RMS nº 18.301/MG, DJ de 03/10/2005).
5. A averbação da reserva legal, à margem da inscrição da matrícula da propriedade, é conseqüência imediata do preceito normativo e está colocada entre as medidas necessárias à proteção do meio ambiente, previstas tanto no Código Florestal como na Legislação extravagante. (REsp 927979/MG, DJ 31.05.2007)
6. Recurso Especial provido.”
Não há, em verdade, direitos absolutos, apesar de conhecermos direitos hierarquicamente superiores, como os direitos de personalidade e, particularmente o direito à vida e o direito à liberdade.
Preleciona o mestre luso que todo direito consiste positivamente numa atribuição, cujo conteúdo é delimitado por regras positivas e negativas. Os limites dos direitos são passíveis de diversas qualificações e podem ter conteúdo taxativamente descrito, mas podem ser meramente valorativos. Exige-se do intérprete e do julgador a avaliação do caso concreto para se determinar seguramente o limite.
É bom que se mencione que tal avaliação pode resultar de exclusão de um certo exercício ou pelo contrário pela imposição positiva de uma conduta.
A concretização do abuso de direito na seara jurídica depende desses conteúdos. E, é aplicável a todo direito, mas se reflete mais nitidamente sobre a propriedade.
Formou-se o instituto do abuso de direito num ambiente individualista e liberal comum do século XIX e que tanto influenciou nosso vetusto Código Civil de 1916. A técnica jurídica prevalente se escorava no positivismo exacerbado e no legalismo. Havia a falsa idéia de que “não há obrigação que não conste da lei”. Mas, lembremos que o Direito não é apenas a lei, e quiçá, a lei expressa.
A existência de atos emulativos que só visavam a prejudicar outrem, principalmente no domínio da vizinhança imobiliária, onde surgiram os famosos “muros da inveja” ou os grandes espigões erguidos para furar os dirigíveis que tinha como base o prédio vizinho que se construíam apenas para privar de sol ou vistas o prédio contíguo.
Foi quando se descobriu na virada para o século XX o abuso de direito. É evidente que o proprietário tem direito efetivamente, mas abusou. Esse vácuo que não cessou até hoje sobre a admissão lógica e funcional do conceito, ainda é debatido nas hordas acadêmicas.
Mas logo a teoria do abuso de direito obteve consagração e justamente no BGB em § 226: “Não é permitido o exercício de direito quando só puder ter por fim causa prejuízo a outrem.”
Há dois requisitos logo identificáveis nesse conceito: um é de cunho subjetivo que é a intenção e, o outro é de cunho finalístico que é o fim único de causar prejuízo.
Esse derradeiro requisito tornou praticamente o instituto inutilizado pois não é fácil a demonstração de uma intenção exclusiva.
Mas o que o fez ressurgir das cinzas qual fênix foi exatamente a mudança da índole do Direito que deixou de ser extremamente formalista e centrado no interesse individual, Aliás, o movimento de personalização do direito privado promoveu sérias releituras sobre institutos jurídicos tradicionais como contrato, propriedade, empresa e até família.
Num approach do direito comparado podemos perceber que a recepção do abuso de direito no Código Civil Brasileiro no art. 187 em seqüência do art. 186 que prevê o ilícito em geral, veio engrossar outras previsões, vejamos: Código Civil grego de 1940 em seu art. 281 que declara o abuso de direito como proibido; o Código Civil português de 1966 em seu art. 334 que o declara ilegítimo.
Identificamos que os códigos evitaram a qualificação como ilícito para possibilitar outras conseqüências jurídicas do ato, diferentes das que atribuem à mera ilicitude, tentando escapar que tudo fosse para seara da responsabilidade civil.
O Código Civil de 2002 não qualifica o ato abusivo e deixa ao intérprete maior liberdade na classificação da figura, o que resultaria num feixe de três figuras unitariamente expressa como abuso de direito, a saber: excesso dos limites da boa-fé, bons costumes e o fim econômico ou social.
Prevê então três limites funcionais do direito subjetivo. E reforça o §2º do art. 1.228 do CC aonde há previsão específica a remontar à origem histórica do instituto.
O BGB não assenta em nenhuma apreciação objetiva da utilidade ou inutilidade do ato, mas o art. 1.228 do Código Civil, em seu segundo parágrafo alude a comodidade, utilidade do proprietário:
“Art. 1.228 – § 2º São defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem.”
Enquanto a lei alemã nos limita a identificar a intenção exclusiva, a lei brasileira permite o diálogo entre a intenção e o significado objetivo do ato, buscando um equilíbrio.
Há de se pesquisar a fronteira do ato emulativo no direito atual. In DANTAS, Tiago apud, TARTUCE, 2006, p. 90. “Já se sabe o que foi a vida medieval, o ambiente de emulação por excelência. A rixa, a briga, a altercação, é a substância da vida medieval. Brigas de vizinho, brigas de barões, brigas de corporações, no seio das sociedades; brigas entre o poder temporal e o poder espiritual. Todas as formas de alterações, a sociedade medieval conheceu, como não podia deixar de acontecer numa época de considerável atrofia do Estado. É aí que, pela primeira vez, os juristas têm conhecimento deste problema: o exercício de um direito com o fim de prejudicar a outrem. O direito como elemento de emulação. Entende-se, por emulação, o exercício de um direito com o fim de prejudicar outrem. Quer dizer, que em vez de ter o fim de tirar para si um benefício, o autor do ato tem em vista causar prejuízo a outrem”.
Sem dúvida, a tendência a eticização é presente o que resulta num claro limite à autonomia privada, onde não se pode admitir que o direito subjetivo se torne uma vigorosa arma contra terceiro.
Aponta José de Oliveira Ascensão que o Código Civil Português de 1867 continha um dispositivo precursor e que dispensava completamente o recurso ao abuso de direito, era o art. 2.167 que definia: “Diz-se direito de propriedade a faculdade, que o homem tem, de aplicar à conservação da sua existência, e ao melhoramento da sua condição, tudo quanto para esse fim legitimamente adquiriu e de que, portanto, pode dispor livremente.”
Aludia esse preceito à função pessoal da propriedade que não surgia como direito absoluto mas como direito intrinsecamente limitado pela função que tinha em relação ao seu titular.
O limite de funcional da propriedade só é captável por meio de valoração.
Apesar do acolhimento pela lei alemã do abuso de direito, há um defeito-base que consiste em confundir interpretação com aplicação. Pois a interpretação faz ver o sentido geral da norma e não sua valoração. Esta só ocorre no momentum da aplicação onde se avalia perante o caso concreto o alcance da norma. A aplicação é concreta, e somente pela aplicação se pode aferir os limites funcionais da propriedade.
Infelizmente a doutrina germânica fora reticente quanto aos limites funcionais, por isso o rechtsmissbraunch é essencialmente subjetivo porém Larenz e Wolf nos fornecem boa exemplificação baseada no equilíbrio contratual e da justiça contratual que não é preocupação freqüente da doutrina alemã, elencam os doutrinadores o aproveitamento da inferioridade, a lesão à boa-fé e a culpa in contrahendo como situações de liberdade negocial diminuída que e podem também se aplicar ao exercício do direito de propriedade.
Mas pensemos todos os prejuízos são evitáveis? Para identificarmos a excluir a tipificação do abuso de direito. Com certeza há um limite funcional dirigido ao exercício do direito de propriedade com referências a sociedade fraterna e solidária prevista constitucionalmente.
Mas logo outro princípio importante se assanha que é o da ponderação de interesses perante terceiros que está ligado à justiça distributiva.
Ascensão aponta que mais feliz definição de abuso de direito é encontrada no Código Civil holandês em seu art 3. 13 e, se adianta em traduzir , in verbis: “São casos de abuso de direito: 1) o exercício de um direito apenas com intenção de causar prejuízo a outrem; 2) com objetivo diferente daquele que foi concedido; ou 3) exercício de um direito quando o titular não poderia razoavelmente decidir exercer, dada a desproporção entre o interesse em exercer o direito e o prejuízo por ele causado”.
A disfuncionalidade do exercício é a pedra fundamental para caracterizar o abuso de direito mas quais seriam os seus contornos exatos? Há no art. 187 no codex pátrio vigente um advérbio de nos traz a fronteira “manifestamente”.
É certo que não pode a lei introduzir uma litigiosidade global e generalizada . E da dicção brasileira sobre o instituto se extrai três nítidos elementos: a referência ao exercício do direito, o caráter manifesto do excesso e a funcionalidade compreendida na referência ao fim econômico ou social do direito.
O espírito do Direito é mesmo orientado por cláusulas gerais vocacionadas a dar aplicação ao caso concreto levando-se em consideração a proporcionalidade.
E a função social da propriedade é razão justificante para a intervenção legislativa, que proíbe a destruição arbitrária de bens como patrimônio histórico, cultural e artístico, ou danos ao meio ambiente:
“Art. 1.228 – § 1º O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.”
A função social pretende propor conciliação entre o interesse e a iniciativa privada com o interesse coletivo. E isso se aplica à propriedade como um todo, englobando-se também a chamada propriedade intelectual.
Há três modalidades de exercício disfuncional e violador: no espaço da cidade, na utilização agrária e na relação de vizinhança. E o solo seja na área urbana ou rural é alvo de disciplina legal contundente.
O desenvolvimento das cidades e mesmo de país faz com que o Plano Diretor e, demais leis esparsas priorizem cada vez mais o uso adequado e socialmente útil da propriedade.
E há no desatendimento da função social da propriedade, vertentes como: não edificar, subutilizar e utilizar mal. Todas formas comprometedoras da função social do espaço urbano.
“STF Súmula nº 414 – 01/06/1964 – DJ de 6/7/1964, p. 2182; DJ de 7/7/1964, p. 2198; DJ de 8/7/1964, p. 2238.
Distinção entre Visão Direta e Oblíqua na Proibição de Abrir Janela e Fazer Terraço, Eirado, ou Varanda – Limites entre Prédios
Não se distingue a visão direta da oblíqua na proibição de abrir janela, ou fazer terraço, eirado, ou varanda, a menos de metro e meio do prédio de outrem.”
Outra questão é que o direito de vizinhança é tradicionalmente parte do direito onde se há contaminação desse novo espírito valorativo que passou a notabilizar a ordem jurídica brasileira.
E onde o princípio do mínimo sacrifício do art. 1.279 CC concilia a convivência harmônica de diversos direitos de propriedade. E impera ainda o princípio autônomo que é o da preservação do equilíbrio ecológico ou imobiliário. A ninguém é dado perturbar esse equilíbrio senão em casos expressamente ditados pela lei.
Assim, a função social, a preservação do equilíbrio imobiliário e a solidariedade na relação de vizinhança são limites razoáveis ao exercício do direito de propriedade, havendo mesmo uma contraposição natural entre função pessoal e função social.
“RE 211385 / CE – CEARÁ
RECURSO EXTRAORDINÁRIO
Relator(a): Min. OCTAVIO GALLOTTI
Julgamento: 20/04/1999 Órgão Julgador: Primeira Turma
Publicação
DJ 24-09-1999 PP-00043 EMENT VOL-01964-03 PP-00518
Parte(s)
RECTE. : INSTITUTO SÃO JOSÉ DE MARACANAU
RECDO. : JULIO CESAR COSTA LIMA E OUTRO
Ementa
EMENTA: A garantia da função social da propriedade (art. 5º, XXIII da Constituição) não afeta as normas de composição de conflito de vizinhança insertas no Código Civil (art. 573 e seus parágrafos), para impor gratuitamente, ao proprietário, a ingerência de outro particular em seu poder de uso, pela circunstância de exercer este último atividade reconhecida como de utilidade pública.”
Portanto, concluímos que haverá abuso de direito quando ocorrer violação subjetiva da função pessoal do direito e por o ato se dirigir a prejudicar terceiros; e ainda, quando há violação objetiva do interesse coletivo, caracterizando uma lesão mais gravosa à função social da propriedade.
Referências
DELGADO, Mário Luiz e Jones Figuerêdo Alves (coordenação). Novo Código Civil: questões controvertidas: Direito das coisas. São Paulo. Editora Método, 2008(Grandes Temas de Direito Privado).
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