Direito Civil

Algumas dúvidas questionamentos

Algumas dúvidas questionamentos

 

 

Maria Berenice Dias*

 

 

Sumário: 1. Mantença da separação; 2. Culpa; 3. Nome; 4. Bem de família; 5. Regime de Bens.

 

Cabe ao Estado organizar a sociedade de tal forma que, além de regular as relações das pessoas, precisa respeitar sua dignidade. Deve garantir o direito à vida, não só vida como mero substantivo, mas vida de forma adjetivada, vida digna, vida feliz.

 

Para isso, é necessário o estabelecimento de regras de comportamento, pautas de condutas a serem respeitadas por todos. Cabe ao legislador “carimbar” – para usar a expressão de Pontes de Miranda – os fatos da vida, os transformando em normas jurídicas. É delegado ao Executivo a obrigação de fazê-las cumprir, ficando a cargo do Judiciário a vigilância para seu cumprimento.

 

A sociedade evolui, se transforma e reforma-se por fenômenos múltiplos, o que implica na necessidade constante de atualização das normas jurídicas. O influxo da chamada globalização rompeu com tradições, vinculações e amarras e, mudar as regras que dizem com a própria vida da pessoa, é uma tarefa constante.

 

Principalmente quando se trata das relações afetivas – afinal é disso que trata o Direito de Família – a missão é mais árdua, por ser matéria que diz com a própria vida das pessoas, seus sentimentos, sua alma.

 

Mas preferir que as coisas fiquem como estão, tecer críticas é mais cômodo, mas,  em nada contribui para que algo seja mudado.

 

De primeiro, é necessário chamar a atenção a um fato: o Projeto original do Código Civil data de 1975, ou seja, é anterior, inclusive, à Lei do Divórcio, que é de 1977.

 

Tramitou no Congresso Nacional antes da promulgação da Constituição Federal, que adotou uma nova ordem de valores, dando outro enfoque ao próprio sistema jurídico, privilegiando a dignidade da pessoa humana.

 

Assim, o sem-número de emendas a que foi submetido o novo Código decorre dessa circunstância. Mas é obrigatório reconhecer que arrojada foi a verdadeira luta empreendida pelo relator seu, Deputado Ricardo Fiúza. Preocupado com a constitucionalidade do Projeto, conseguiu alterar o próprio Regimento do Congresso Nacional, procurando um meio de afeiçoar a lei para albergar o conteúdo dos direitos já consagrados na Lei Maior.

 

Louvável o trabalho do Des. Jones Figueiredo e dos Drs. Alexandre Assunção e Mário Delgado, que em muito aperfeiçoaram o texto legal. Apesar de todo esse esforço, imperioso reconhecer que chegou uma lei já velha. As plásticas a que foi submetida não lhe deram o viço que a sociedade merece.

 

O Código Civil de 1916 regulava a família do início do século passado, com nítida influência da Igreja. Família era só o vínculo decorrente dos sagrados laços do matrimônio, verdadeira instituição matrimonializada, patrimonializada, patriarcal, hierarquizada e heterossexual. Em um primeiro momento, o casamento era indissolúvel. O regime legal de bens era o da comunhão universal. Era obrigatória a identificação da família pelo nome do marido. Ele era o cabeça do casal, o chefe da sociedade conjugal, por isso a relativização da plena capacidade da esposa quando do casamento.

 

O surgimento de novos paradigmas da família – quer pela emancipação da mulher, quer pelo surgimento dos métodos contraceptivos – levou à dissolubilidade do vínculo do casamento. A evolução da engenharia genética dissociou casamento, sexo e reprodução, que não mais são conceitos atrelados e interdependentes.

 

O atual enfoque dado à família deixa de priorizar suas características exclusivamente patrimoniais, voltando-se muito mais à identificação do vínculo afetivo.

 

 

 

1. Mantença da separação

Antes o casamento era indissolúvel, as pessoas, no máximo, podiam se desquitar. Cabe lembrar que os desquites, ainda que amigáveis, eram submetidos a reexame necessário, ou seja, o juiz, ao decretar a separação, recorria da própria sentença ao Tribunal, para o pedido ser reapreciado.

 

Com o advento da Lei do Divórcio, tributo que se deve à ingente luta do Senador Nelson Carneiro, surgiram duas modalidades de “descasamento”. Primeiro as pessoas precisavam se separar, o que rompe direitos e deveres entre os cônjuges, mas não rompe o casamento. Só depois é que podiam se divorciar, mediante a conversão da separação em divórcio. Como exclusivamente o divórcio resgata a possibilidade de um novo casamento, a separação é quase um limbo, em que a pessoa não está mais casada, mas não pode casar de novo.

 

Essa verdadeira manobra, que se fez necessária para conseguir a aprovação do divórcio, não mais se justifica 25 anos depois. Ainda assim mantêm o novo Código os dois institutos. A sociedade conjugal termina pela separação (art. 1.571, III), mas só o divórcio e a morte dissolvem o casamento (§ 1º do art. 1.571). Os cônjuges devem permanecer separados por um ano para só depois libertarem-se pelo divórcio (art. 1580).

 

É de questionar-se: por que a mantença da separação? Por que não pode alguém, no momento em que o amor se esvai, simplesmente romper com o casamento? Por que o estabelecimento de um prazo para se pôr fim ao casamento, ainda que ambos os cônjuges, consensualmente, não mais queiram continuar casados?

 

Talvez o mais importante seja indagar: Tem o Estado legitimidade para impor que permaneçam unidas pessoas que não mais se amam?

 

Ainda que disponha o Estado de interesse na preservação da família, não há como impor que prevaleça o casamento acima da vontade das pessoas.

 

De outro lado, cabe lembrar que a condição de separado impede o casamento, mas não a união estável. Como a Constituição determina que a lei busque transformar a união estável em casamento, a permanência do instituto da separação, não afrontaria a recomendação constitucional?

 

 

 

2. Culpa

A mesma perplexidade persiste com referência à necessidade da identificação de um culpado para que se rompa o vínculo marital. Somente o cônjuge “inocente” tem direito de pedir a separação (art. 1.572). Até na anulação do casamento se perquire culpa e se impõem sansões (art. 1.564).

 

A postura ainda é nitidamente punitiva. A nova lei mitiga um pouco a pena de morte que praticamente era imposta ao culpado pela separação, pois não tinha direito a alimentos, Agora, a quem deu causa à separação, podem ser deferidos alimentos, mas apenas os indispensáveis à sua subsistência (arts. 1.694, § 2º, 1702 e 1704, parágrafo único).

 

Mas, como o juiz irá identificar o culpado pelo fim do amor? Quando e quem deu causa ao fim do sonho do amor sem fim? Como provar, por exemplo, o carinho que não foi feito? Quem fez uma lágrima rolar? O que levou as frustrações transformarem-se em brigas e até em agressões?

 

Ainda que tenha o Estado interesse na preservação da família, de todo descabida a intromissão de terceira pessoa, no caso o juiz, para avaliar o motivo como suficiente para por fim ao casamento.

 

De outro lado, infringe o cânone Constitucional, que garante o direito à privacidade e à intimidade, impor que seja revelado o comportamento ou a maneira de as pessoas viverem no interior de seus lares. O casamento não outorga a qualquer dos cônjuges o direito de invadir essa auréola de privacidade. Portanto, de todo incabível que, para o desfazimento do casamento, imponha a lei a um dos cônjuges o ônus de expor a vida do par a um juiz, para que ele avalie a conveniência de extinguir o vínculo matrimonial. Assim, além de indevida, é inconstitucional tal ingerência na vida privada para por fim ao casamento.

 

 

3. Nome

Como grande novidade, o art. 1.565, § 1º, faculta a qualquer dos cônjuges adotar o nome do outro. Novidade? Inexiste qualquer vedação na Lei dos Registros Públicos, tanto que judicialmente tal direito já era assegurado.

 

Como é facultado a qualquer do par, quando do casamento, adotar o nome do outro, pode a noiva adotar o nome do noivo e não há qualquer impedimento que ele adote o nome dela. Sem limitação na lei, tal troca é possível. 

 

A partir do casamento o nome de um passa a ser também do outro. Ou seja – para se ficar com a novidade – se adota o marido o nome da mulher, este passa a ser o seu nome e a servir para sua identificação. Ao incorporar outro nome, este integra sua identidade. O nome não é mais do outro, passa a ser seu nome. O nome não tem dono. Assim, nada justifica que haja a possibilidade da perda do nome, por vontade de outrem. A eventual culpa pelo rompimento da vida em comum, não pode deixar ao alvedrio do par a perda do direito à identidade. Nada justifica esta faculdade assegurada ao “dono do nome”, ainda que seja o outro responsável pelo fim do casamento. A honra é um atributo personalíssimo, e a postura de um não se reflete na imagem do outro, a não ser que se considere que um é propriedade do outro.

 

Portanto, depender da concordância do “dono” do nome a mantença do sobrenome do cônjuge culpado (art. 1.578), infringe o sagrado princípio constitucional de respeito à dignidade. Não pode a perda de um atributo da personalidade ficar condicionada a um favor de alguém, à condescendência de outrem.

 

 

4. Bem de família

Ainda que a Constituição outorgue especial proteção à família, sua maior responsabilidade é com o cidadão. O enfoque central do ordenamento jurídico, ditado pela Constituição Federal, é a proteção do ser humano.

 

Assim, é descabida a possibilidade de constituição como bem de família, exclusivamente, da sede onde reside uma entidade familiar. Fere o princípio da igualdade deixar à margem da lei, e, por conseqüência, ao relento, o indivíduo que por opção ou contingência vive só ou mantém um relacionamento homoafetivo.

 

Cabe registrar que só no primeiro dispositivo que trata do tema (art. 1.711) é outorgada a possibilidade de instituir bem de família ao cônjuge ou à entidade familiar. Em todos os outros dispositivos é usada somente a expressão cônjuge. Como admitir esse tratamento diferenciado ante a conceituação plural da família? A Constituição Federal não outorga igual proteção aos conviventes da união estável e às famílias monoparentais?

 

 

 

5. Regime de Bens

A mantença, no atual estatuto civil, de outra previsão nitidamente punitiva, não se justifica. É a imposição do regime da separação legal de bens, quando as pessoas casam descumprindo as ordens legais, ou seja, quando não atendem à “recomendação” de não casar. Parece que a lei quer se vingar da desobediência, subtraindo dos noivos a liberdade de decidir sobre seus bens (art. 1.641).

 

Talvez a mais esdrúxula reprodução na nova lei, seja da regra que impõe o regime da separação de bens, sem a comunicação dos aqüestos, em face da idade dos nubentes. A única equalização foi quanto à idade. Até agora as mulheres a partir dos 50 anos, não podiam escolher o regime de bens. Daqui para frente tanto os homens como as mulheres a partir dos 60 anos perdem a capacidade plena tão-só para optar pelo regime de bens. Bela vantagem. Pelo jeito ganharam as mulheres mais 10 anos de higidez mental. Agora homens e mulheres, aos 60 anos, sofrem uma limitação de sua plena capacidade, tornam-se absolutamente incapazes exclusivamente para fins matrimoniais, pois não podem escolher o regime de bens.

 

A evolução da ciência passou a buscar, e vem encontrando, meios da cada vez mais eficientes para aumentar, não só a quantidade de vida, mas principalmente a sua qualidade. As pessoas vivem mais e melhor, e a expressão terceira idade é um termo tido por pejorativo. Que preconceito é este de presumir a lei, de forma absoluta, que a partir de determinada idade alguém é incapaz de despertar o amor de outrem? Será que aos 60 anos se perde a capacidade de viver um amor verdadeiro? Será que toda a aproximação configura interesse de ordem patrimonial? Todos querem dar o “golpe do baú”? E, por que se preocupa o Estado em proteger os “velhinhos” para que não sejam alvos de aventureiros ou interesseiros? Que bem quer a lei tutelar? Ao certo o patrimônio da família. Mas, será que quer garantir aos herdeiros o direito à herança de pessoa viva?

 

De outro lado, por que alguém que trabalhou uma vida inteira, formou seu patrimônio, não pode livremente dele dispor, escolhendo o regime de bens que lhe aprouver? De todo injustificável, e flagrantemente inconstitucional, a intervenção do Estado em impor o regime de bens aos nubentes.

 

Ao depois, a norma peca por inconstitucionalidade de outra ordem. Fere o princípio da isonomia, pois privilegia as relações estáveis dos idosos. Se o par resolver casar, pelo regime que a lei impõe, não pode dividir nem o patrimônio amealhado durante a vida em comum. Porém, tal vedação inexiste se a relação for estável. Assim, está-se privilegiando um vínculo em relação ao outro.

 

Questionamentos não faltam, e as respostas serão dadas pelos doutos e pelos juízes.

 

 

 

 

 

* Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM

 

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Como citar e referenciar este artigo:
DIAS, Maria Berenice. Algumas dúvidas questionamentos. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2003. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-civil/algumas-duvidas-questionamentos/ Acesso em: 19 jun. 2025