Direito Administrativo

Recurso Extraordinário 89.217-6/SC: discussão sobre a natureza jurídica de contrato celebrado pela Administração Pública. Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF)

 

Ementa

 

ADMINISTRATIVO.

1) Contratos da administração. Distinção entre contratos privados da administração e contratos públicos da administração. Somente quanto aos últimos é possível reconhecer à administração, em princípio, o poder de rescisão unilateral, por motivo de inexecução das obrigações de concessionário e para satisfação de interesse coletivo, sujeito o ato a controle “a posteriori” para eventual satisfação de perdas e danos.

2) Contrato para exploração de hotel e de fontes de águas minerais de propriedade e lavra do estado de Santa Catarina, em Caldas da Imperatriz. Nele não há regras atinentes e custos e tarifas, que caracterizam a concessão de serviço público: trata-se de arrendamento complexo, em que as partes estão em pé de igualdade, nem há cláusulas inequivocamente exorbitantes da disciplina de relações jurídicas privadas, havendo-se, no contrário, incompatíveis com o poder implícito da rescisão unilateral, acrescendo, ainda, que não deve ser considerado serviço público aquele que outro particular pode prestar independentemente de concessão.

3) Rescisão que não poderia ter sido decretada unilateralmente por decreto do Poder Executivo. Conhecimento e provimento do recurso extraordinário, para concessão de segurança.

 

Dados do processo

Supremo Tribunal Federal

Recurso Extraordinário 89.217-6/SC

Relator:  Min. Cordeiro Guerra

Relator p/ Acórdão:  Min. Décio Miranda

Órgão Julgador: Tribunal Pleno

Julgado em 6 jun. 1979

Publicado em 26 out. 1979

Recorrente: Caldas da Imperatriz Comércio e Indústria S/A

Recorrido: Estado de Santa Catarina

Resultado: provimento por maioria de votos

 

Composição do STF quando do julgamento

Ministro Antonio Neder                 (presidente ao final – não tomou parte no julgamento)

Ministro Thompson Flores              (presidente ao início – não tomou parte no julgamento)

Ministro Cordeiro Guerra (relator)   (voto pelo não conhecimento)

Ministro Décio Miranda                 (voto pelo conhecimento e provimento)

Ministro Soares Muñoz                 (voto-vista pelo não conhecimento)

Ministro Cunha Peixoto                 (voto-vista pelo não conhecimento)

Ministro Moreira Alves                  (voto-vista pelo conhecimento e provimento)

Ministro Leitão de Abreu               (voto-vista pelo conhecimento e desprovimento)

Ministro Xavier de Albuquerque      (voto pelo conhecimento e provimento)

Ministro Djaci Falcão                    (voto pelo conhecimento e provimento)

Ministro Rafael Mayer                   (não tomou parte no julgamento)

 

1. Contexto extraprocessual

A denominação da região em que os fatos se sucedem – o município de Santo Amaro da Imperatriz, sítio também conhecida por Caldas da Imperatriz – expressa homenagem a uma visita do casal imperial brasileiro à localidade em outubro de 1845. A história contada é a de que a imperatriz, Dona Teresa Cristina Maria de Bourbon, acompanhada do imperador, Dom Pedro II, determinou a construção de um hospital, com quartos e banheiras, para os visitantes da região que buscavam as propriedades medicinais das águas termais encontradas na região. Ainda nos dias atuais, a visita da família real é celebrada no município.

 

Posteriormente, na década de 1920, e até os dias atuais, o hospital foi transformado em hotel, explorado, a partir de então e até época dos fatos do processo, em regime de arrendamento. Na mesma década, a água mineral passou a ser industrializada, com o seu respectivo engarrafamento e comércio realizado na região de Florianópolis, capital do Estado de Santa Catarina.

 

O processo diz respeito a um litígio envolvendo o Estado de Santa Catarina e uma arrendatária, em que o ente público buscava retomar para si a exploração do local – tanto a hospedagem em águas termais, como a industrialização da água mineral.

 

A despeito do resultado deste julgado, favorável à arrendatária, fato é que, atualmente, a região é explorada por duas entidades, uma pública e outra privada. A Companhia Hidromineral Caldas da Imperatriz, ente público criado à época dos fatos relatados no processo, mantém, ainda hoje, o antigo hotel na região, realizando, inclusive, concursos públicos periódicos para as suas atividades, com vagas, por exemplo, para as atividades de garçom, faxineiro, jardineiro, cozinheiro, recepcionista, camareira, lavadeira, passadeira e barman. A rede Plaza de hotéis, entidade privada, também possui um hotel na região e usufrui o direito de exploração parcial das águas minerais da região. A captação e envase da água mineral encontram-se sob responsabilidade de outra sociedade empresarial, a JAN Envasadora de Águas Minerais Ltda.

 

 

2. Fatos

Segundo o que consta do relatório elaborado pelo Ministro relator do Supremo Tribunal Federal, a União, por meio do Manifesto 1.042/42, concedeu ao Estado de Santa Catarina o direito de lavra sobre a região mencionada, especialmente para o aproveitamento de suas fontes de água mineral.

 

Em outubro de 1955, o Governo do Estado de Santa Catarina e a sociedade empresarial Caldas da Imperatriz Comércio e Indústria S.A. celebraram, após o devido processo licitatório, um contrato de arrendamento complexo com a finalidade de ceder ao particular a exploração industrial e turística da instância hidromineral, cujo período estimado de vigência era de trinta anos.

 

Em síntese, o objeto contratual envolvia a o arrendamento de área para a lavra de água mineral, com obrigações de manutenção de maquinário para a industrialização do produto, assim como a construção e manutenção de novos aposentos para hospedagem.

 

A avença reconheceu ainda, ao Estado de Santa Catarina, o direito de usufruir parcialmente dos apartamentos de hospedagem, de receber uma quantia mensal referente ao custeio da fiscalização do contrato e um percentual de 2% sobre o lucro líquido na venda da água mineral industrializada.

 

Também foi atribuído ao ente público o direito de reversão dos bens após a extinção do contrato (excetuado o maquinário para a industrialização da água) e a responsabilidade de promoção de desapropriações em favor da contratada, quando por ela assim requerido, mediante a correspondente indenização pelo ente privado ao ente público, sempre que necessário para a escorreita execução do contrato.

 

Ainda, os preços correspondentes aos serviços de hospedagem prestados pela arrendatária deveriam ser previamente submetidos à aprovação do Estado, com a garantia de que nunca seriam inferiores à média dos hotéis similares e congêneres do sul do país. Havia também no contrato a previsão de que os litígios seriam resolvidos por arbitragem e de que, aqueles que assim não o fossem, seriam submetidos ao foro comum.

 

O contrato fora precedido de autorização legislativa (lei estadual) e administrativa (decreto estadual).

 

Passados cerca de vinte e dois anos, em fevereiro de 1977, o Governador do Estado promoveu unilateralmente a rescisão do contrato (decreto estadual).  

 

A justificativa foi a de que a contratada não estaria cumprindo o contrato a rigor, especialmente porque a fonte de água mineral “Caldas da Imperatriz” havia sido interditada pelo Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), órgão federal responsável pela regulação do setor. Segundo o Estado de Santa Catarina, aquela situação de interdição colocava em risco o bem estar geral, a saúde e a segurança pública, razão pela qual o contrato deveria ser rescindido.

 

Pontualmente, a motivação e os pressupostos da rescisão contratual, ocorrida em fevereiro de 1977, foram os seguintes:

 

(i) O Estado de Santa Catarina era o legítimo proprietário da área e dos direitos de lavra;

 

(ii) Em julho de 1976, o Estado de Santa Catarina foi alertado pelo DNPM sobre a possibilidade de vir a ser instaurado processo de caducidade dos direitos de lavra que lhe haviam sido concedidos pela União em virtude de irregularidades observadas na exploração industrial das Caldas da Imperatriz, que se contrapunham às normas e exigências do Código de Minas, Código de Águas Minerais e demais normativas do setor;

 

(iii) A intenção do Estado de Santa Catarina era a de reassumir a exploração do local para promover as medidas indispensáveis para que se afastasse a possibilidade de instauração do processo de caducidade. Para tanto, foi constituída comissão destinada a elaborar relatório pormenorizado sobre o estado do que fora arrendado em confronto com as cláusulas contratuais, a fim de se verificar o seu eventual descumprimento. A conclusão da comissão foi desfavorável à contratada;

 

(iv) O DNPM e o Departamento Autônomo de Saúde Pública (DASP/SC) obtiveram resultados bacteriológicos desfavoráveis à contratada, razão pela qual a fonte de água mineral encontrava-se interditada, com as instalações lacradas;

 

(v) Cabia ao Estado de Santa Catarina exercer o seu poder de polícia sanitária para remediar situações nocivas à saúde pública e ao bem-estar social;

 

(vi) A exploração industrial das águas minerais de Caldas da Imperatriz configurava matéria que se circunscrevia nas razões de interesse público, de interesse social ou de conveniência administrativa, que justificavam o poder de antecipação unilateral do término do contrato (rescisão administrativa).

 

A contratada impetrou mandado de segurança contra ato do Governador do Estado (decreto estadual) com o objetivo de invalidar o ato, que, segundo ela, violava a legislação ordinária e a Constituição Federal vigentes.

 

 

3. História processual pretérita ao acórdão

 

Os fundamentos da recorrente e do recorrido

 

Argumentos da recorrente (Caldas da Imperatriz Comércio e Indústria S/A)

 

Segundo a contratada, o Estado de Santa Catarina havia lhe cedido o direito de lavra e industrialização das águas minerais do local, a partir de quando a sua relação jurídica, como empresa de mineração, passara a se dar com o DNPM (esfera federal), e não com o Estado.

 

Assim, como a Constituição determinava que as questões envolvendo atividade mineradora deveriam ser resolvidas na esfera federal, o Estado de Santa Catarina, com a rescisão contratual, teria violado preceito constitucional (intromissão em matéria privativa da União). Por consequência, também teria sido violado o dispositivo constitucional que assegurava o livre exercício de qualquer atividade lícita. Em suma, haveria violação dos arts. 8, XVII, h e parágrafo único; art. 168, parágrafo 1º e art. 153, parágrafo 23 da Constituição Federal vigente à época.

 

Além disso, conforme alegava a contratada, a rescisão teria sido fundamentada no poder discricionário do Estado para “revogar” unilateralmente os contratos administrativos. No entanto, o Código de Mineração determinava que o direito aplicável à propriedade mineral haveria de ser o direito comum. Logo, o Estado teria celebrado um “contrato de arrendamento”, regido pelo direito civil, concernente a um bem público dominical, e não um contrato administrativo de “concessão de uso”. Dessa sorte, em sendo um contrato de direito privado, não poderia ser rescindido unilateralmente. Demais disso, ainda que fosse caracterizado como contrato administrativo típico, o Estado não poderia revogá-lo unilateralmente, pois a única maneira de fazê-lo findar prematuramente seria a rescisão judicial ou amigável.

 

Argumentos do recorrido (Governador do Estado)

 

O Governador do Estado de Santa Catarina sustentava que o processo deveria ser extinto sem resolução do mérito em virtude de litispendência com mandado de segurança preventivo impetrado anteriormente pela contratada, que visava a impugnar o ato pelo qual se pretendia rescindir o contrato.

 

No mérito, argumentou que, por se tratar de contrato administrativo, a existência de cláusulas exorbitantes permitiria que houvesse a sua rescisão unilateral.

 

O julgamento no Tribunal de Justiça de Santa Catarina (tribunal de origem)

 

O mandado de segurança foi denegado pelo voto de desempate do presidente do Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Da leitura do acórdão recorrido, verifica-se que todos os julgadores concluíram que o contrato em apreço era de natureza administrativa, sujeito às regras de direito público, portanto.

 

O mandado de segurança preventivo sobre o mesmo objeto

 

Consta do relatório a informação de que o mandado de segurança preventivo foi julgado prejudicado por falta de objeto, muito provavelmente porque, quando de sua apreciação, o ato já havia sido perpetrado.

 

O recurso extraordinário

 

A contratada interpôs recurso extraordinário, subscrito pelo advogado Galeano Lacerda, com base nas letras a, c e d do inciso III do artigo 119 da Constituição Federal.[1]

 

A opinião da Procuradoria Geral da República

 

A Procuradoria Geral da República opinou pelo não conhecimento do recurso extraordinário e, subsidiariamente, caso conhecido, pelo seu desprovimento.

 

 

4. Questões jurídicas

 

Qual a natureza jurídica do contrato celebrado entre o Estado de Santa Catarina e Caldas da Imperatriz Comércio e Indústria S.A.?

 

Trata-se de um contrato administrativo típico ou de um contrato privado da Administração?

 

A avença está sujeita às regras de direito público (administrativo) ou de direito comum (civil)? 

 

O que caracteriza o contrato administrativo? Basta que seja celebrado pela Administração Pública com vistas à consecução de objetivos de interesse público?

 

Podia o Estado rescindir unilateralmente o contrato e, em tal caso, quais as consequências que de tal ato adviriam? Ou não podia fazê-lo?

 

5. Decisão

 

O acórdão começou a ser julgado em 26 de outubro de 1978 e terminou em 6 de junho de 1979. A ementa foi assim prolatada:

 

ADMINISTRATIVO.

1) Contratos da administração. Distinção entre contratos privados da administração e contratos públicos da administração. Somente quanto aos últimos é possível reconhecer à administração, em princípio, o poder de rescisão unilateral, por motivo de inexecução das obrigações de concessionário e para satisfação de interesse coletivo, sujeito o ato a controle “a posteriori” para eventual satisfação de perdas e danos.

2) Contrato para exploração de hotel e de fontes de águas minerais de propriedade e lavra do estado de Santa Catarina, em Caldas da Imperatriz. Nele não há regras atinentes e custos e tarifas, que caracterizam a concessão de serviço público: trata-se de arrendamento complexo, em que as partes estão em pé de igualdade, nem há cláusulas inequivocamente exorbitantes da disciplina de relações jurídicas privadas, havendo-se, no contrário, incompatíveis com o poder implícito da rescisão unilateral, acrescendo, ainda, que não deve ser considerado serviço público aquele que outro particular pode prestar independentemente de concessão.

3) Rescisão que não poderia ter sido decretada unilateralmente por decreto do Poder Executivo. Conhecimento e provimento do recurso extraordinário, para concessão de segurança.
(Supremo Tribunal Federal, Recurso Extraordinário 89.217-6/SC, Relator:  Min. Cordeiro Guerra, Relator p/ Acórdão:  Min. Décio Miranda, Órgão Julgador: Tribunal Pleno, Julgado em 6 jun. 1979, Publicado em 26 out. 1979)

 

A decisão, portanto, foi pelo provimento do recurso extraordinário, por maioria de votos.

 

Destaque é merecido para peculiaridade de que quatro ministros votaram pelo conhecimento e provimento do recurso, enquanto, contrários à tese, três ministros votaram pelo não conhecimento do recurso e um ministro votou pelo conhecimento e desprovimento do recurso. Os ministros que votaram pelo não conhecimento do recurso adentraram ao mérito da questão em seus votos.  

 

6. Fundamentação

 

Tese favorável e vencedora: o poder de rescisão unilateral do contrato, assim como as demais cláusulas exorbitantes presentes na teoria do contrato administrativo, não existe nos contratos privados da Administração, a não ser que expressamente estipulado. O contrato analisado, cujo objeto envolve a exploração de lavra de água mineral e de hotel, não se caracteriza como concessão de serviço público, pois não possui regras referentes a custos e tarifas ou cláusulas inequivocamente exorbitantes da disciplina de relações jurídicas privadas. Ademais, não deve ser considerado serviço público aquele que outro particular pode prestar independentemente de concessão. Nesses casos, a rescisão do contrato não pode ser decretada unilateralmente por decreto do Poder Executivo, devendo respeitar a resolução de litígios conforme estipulado no contrato, seja por arbitragem ou pelo foro comum.

 

Tese contrária: como se trata de um contrato administrativo típico, regido por princípios de direito público, há que se reconhecer a aplicabilidade das cláusulas exorbitantes, independentemente de previsão contratual, que permitem à Administração Pública a sua revisão unilateral e, inclusive, a sua rescisão unilateral, sem prejuízo do eventual ressarcimento por perdas e danos, por parte da contratada, acaso a extinção prematura do contrato não tenha sido causada por falha durante a sua execução. Princípio da mutabilidade do contrato administrativo e da supremacia de poder em favor da causa pública. Embora denominado contrato de arrendamento, trata-se de contrato de concessão de uso de bem público, pois, em direito administrativo, não é permissível o uso e gozo de bem público com exclusão dos poderes irrenunciáveis da Administração Pública.

 

Votos

 

Voto do Ministro Relator Cordeiro Guerra

 

Resultado: Não conhecimento do recurso

 

Considerou o contrato como uma concessão de uso de bem público e reconheceu ao Estado o direito de rescindi-lo unilateralmente, como decorrência da aplicabilidade do regime de direito público; especificamente, das cláusulas exorbitantes.

 

O Ministro relator adotou as razões da Procuradoria Geral do Estado de Santa Catarina, conforme:

 

Como se trata de um contrato administrativo típico, regido por princípios de direito público, há que se reconhecer a aplicabilidade das cláusulas exorbitantes e o direito à rescisão unilateral do contrato. Apoiou-se no princípio da mutabilidade do contrato administrativo e da supremacia de poder em favor da causa pública, que encontram fundamento na doutrina de Marcelo Caetano, Hely Lopes Meirelles, Caio Tácito e Themistocles Cavalcanti.

 

No presente caso, não se discute a propriedade ou os direitos de lavra, mas o contrato que se mostrava lesivo ao Estado de Santa Catarina. Assim, não há que se falar na existência de legislação sobre matéria privativa da União ou de intervenção sobre direitos adquiridos do contratante. 

 

Como o decreto estadual impugnado caracteriza-se como ato administrativo típico, não há como se exigir do Poder Judiciário o exame à luz de critérios de oportunidade ou conveniência, que dizem respeito ao mérito administrativo, alçada exclusiva da Administração Pública, a quem compete definir o interesse público. Portanto, tratando-se de ato praticado por autoridade competente e na forma regular, não seria sensível ao remédio heróico, pois “os atos ilegais são hostilizáveis pelo mandado de segurança; os injustos, não.”.

 

Adotou também as razões do voto proferido pelo desembargador catarinense João de Borba:

 

Em síntese, sustentou o desembargador que o Estado de Santa Catarina (i) não ofendeu o art. 8, XVII, h e parágrafo único da Constituição Federal por não haver legislado sobre matéria da competência da União; (ii) nem o art. 168, § 1º, porque o Decreto Estadual atacado não deu concessão, apenas rescindiu o contrato; (III) nem o art. 153, § 23, porque não vedou o livre exercício do trabalho da impetrante, a qual manteve íntegra a autorização que lhe foi concedida pela União para funcionar como empresa de mineração.

 

O desembargador citou dois precedentes do Supremo Tribunal Federal: Caso da Panair (a corte reconheceu o direito de rescisão unilateral da concessão de serviços públicos) e caso da Companhia Industrial de Ilhéus S.A. (a corte também reconheceu o direito de rescisão unilateral da concessão de serviços públicos)

 

Afastou a aplicabilidade do precedente do Supremo Tribunal Federal que supostamente seria favorável à recorrente (Estado da Guanabara x O. Ribeiro Tecidos S.A.). Segundo o desembargador, tratava-se aquele caso de contrato de compra e venda de bem imóvel (terreno). Portanto, considerou-se que, como a promessa de compra e venda de imóveis é irretratável e dá direito à adjudicação compulsória acaso as prestações sejam quitadas, o Estado somente poderia retomá-lo mediante indenização, diferentemente do presente caso. Defendeu, então, que o caso do Estado de Guanabara não é aplicável por analogia ao presente, uma vez que, nesse, não haveria qualquer transferência de propriedade.

 

O Ministro relator também expôs o voto do desembargador Eduardo Pedro da Luz, que catalisou a divergência em favor da recorrente:

 

Segundo o desembargador, a revogação de atos administrativos encontra limite na impossibilidade de assim proceder quanto a atos dos quais derivaram direitos subjetivos (e não apenas interesses).

 

Sustentou a irrevogabilidade do contrato em questão também em virtude de que este havia sido autorizado por lei e, assim sendo, somente por lei poderia ser desconstituído, conforme:

 

“A lição de Merkl pode resumir-se no seguinte período:      o ato administrativo que aplica a lei ao caso concreto só pode ser revogado ou modificado por outro posterior na hipótese e na medida em que a própria lei atribua a esse ato posterior a força modificadora ou revocatória da mesma maneira que uma sentença judicial só poderá ser revogada ou modificada por outra posterior nos casos admitidos em lei.”

 

Assim, considerando-se que os contratos administrativos são negócios bilaterais, criadores de direitos, concluiu que são irrevogáveis e que, portanto, o Estado de Santa Catarina atingiu ato irrevogável.

 

O desembargador discordou do doutrinador Brandão Cavalcanti, que coloca os contratos de arrendamento como contratos celebrados pela Administração que não são considerados contratos administrativos. Concordou com Duguit, segundo o qual a Administração quando intervém, o faz para prover um serviço público, sendo que todos os seus contratos devem ser considerados administrativos. Até porque, caso o presente caso não fosse caracterizado como contrato administrativo, não poderia ser atacado por mandado de segurança, que exige um ato lesivo praticado pelo Estado na condição de Poder Público. Considerou o contrato analisado como uma concessão administrativa, mas que não poderia ser revogada sem autorização legal.

 

O desembargador demonstrou preocupação com as conseqüências econômicas da decisão, que, caso desfavoráveis à contratada, abalariam a segurança jurídica, conforme: “E não é demasia salientar que atrás da Caldas da Imperatriz Comércio e Indústria S.A., uma ficção jurídica fria, escondem-se, abrigam-se as pessoas físicas dos seus diretores, dirigentes, que com este ato unilateral, ou melhor, um ato confiscatório, terão sua parte comercial duramente afetada, senão atingida por falência, pois não há ignorar que uma indenização reclamada sob os remédios processuais comuns é muito demorada.”

 

O Ministro relator mencionou, ainda, a “presunção de verdade que acompanha os atos públicos”. Sustentou que o decreto impugnado não versou sobre direito de lavra, apenas sobre o inadimplemento do contrato de concessão de uso e lembrou que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal admitiria, vide MS 18.028/DF, a rescisão unilateral do contrato administrativo por ato da Administração Pública, assegurado ao concessionário o direito de demandar indenização por perdas e danos se a causa alegada pela Administração Pública não importava em falta por ele cometida na execução do contrato.

 

Para o eminente relator, o Estado de Santa Catarina tão somente teria preservado o seu direito de lavra, que lhe outorgara a União, contra a desídia do concessionário, que o ameaçava de caducidade. Ao fim e ao cabo, a interdição provisória legitimava o ato unilateral, o que significa que não teria havido qualquer violação de textos constitucionais e legais dados como violados pela contratada recorrente.

 

Voto do Ministro Décio Miranda

 

Resultado: Conhecimento e provimento

 

O Ministro considerou que o relator focalizou o problema à luz das regras pertinentes à concessão de serviço público. No entanto, o contrato não seria um contrato de concessão de serviço público, e sim um contrato administrativo de arrendamento, cuja substância é regida pelo direito comum, já que não existia, por exemplo, regras sobre o custo do serviço ou o preço de remuneração pelo público.

 

Assim sendo, não existiria uma supremacia, uma reserva de poder em favor do ente público, mas uma igualdade entre os contratantes. A pretensão de rescisão haveria de se manifestar pela via judicial, portanto.

 

Ainda, embora houvesse uma alegada prova do inadimplemento, o acórdão recorrido não havia encontrado neste fato o seu fundamento, mas na existência da supremacia do interesse público.

 

O Ministro afastou a argumentação de que a Administração poderia revogar os seus atos e que, então, isso legitimaria o decreto. Segundo o seu entendimento, não se tratava de uma revogação, mas de uma rescisão contratual.

 

Segundo o Ministro, ainda, a tese de que a Administração Pública pode rescindir os seus contratos, sujeitando-se apenas à indenização consequente, não pode ser recebida em caráter absoluto. Para ele, se o contrato possui prazo certo, este deve ser respeitado, sob pena de se fazer dele letra morta, em benemérito de um poder supremo da Administração Pública.

 

Concluiu pelo conhecimento e provimento do recurso extraordinário, uma vez que teria havido um atentado a ato jurídico perfeito, contrariando-se o parágrafo 3º do artigo 153 da Constituição Federal vigente à época.

 

Voto-vista do Ministro Soares Muñoz

 

Resultado: Não conhecimento do recurso

 

O Ministro se funda em doutrina que diferencia o contrato administrativo propriamente dito das demais avenças regidas pelo direito privado, embora celebradas pela Administração Pública.

 

Os contratos administrativos propriamente ditos seriam caracterizados pela existência de concessão de um serviço público ou de utilidade pública e que, por terem sido nesta qualidade reconhecidos pela Administração Pública, jamais poderiam ser paralisados por inadimplemento da contratada.

 

Nesse sentido, defendeu que caso houvesse a simples venda de bem dominical ou arrendamento para utilização privada do locatário, a Administração Pública não poderia rescindir unilateralmente; caso o trespasse fosse acompanhado de cessão de serviço público, contudo, a cláusula de rescisão em favor da Administração Pública deveria ser reconhecida.

 

No caso em análise, reconheceu a existência de cessão de serviço público, caracterizada, principalmente, pelo fato de que a arrendatária estava obrigada a executar as obras previstas e submetida à fiscalização da Administração Pública, inclusive remunerando-a para tanto, e de que os preços correspondentes aos serviços eram submetidos à aprovação do Estado. Assim, como não teria havido qualquer violação de textos constitucionais e legais dados como violados pela contratada recorrente, votou pelo não conhecimento do recurso.

 

Voto-vista do Ministro Cunha Peixoto

 

Resultado: Não conhecimento do recurso

 

Segundo o Ministro, a Administração pode utilizar-se do instituto do contrato, quer na sua pureza originária, isto é, sob as normas exclusivas do direito privado (contrato regido sob o direito comum), como pode fazê-lo com supremacia do Poder Público (contrato administrativo propriamente dito).

 

Exemplos de contratos privados da Administração seriam a compra de edifício particular e o arrendamento para uso do serviço público [sentido orgânico], enquanto contratos de administração típicos seriam o contrato de serviço público e o contrato de obras públicas.

 

Argumentou que o contrato administrativo propriamente dito traz ínsito o poder de rescisão unilateral, pouco importando que não haja, neste sentido, cláusula prevista expressamente em lei ou consignada no contrato.

 

Para o Ministro, o objeto do contrato era sintetizado pela “exploração das águas minerais existentes na região em que se situa o hotel”. A exploração do hotel seria acessória, tanto é que não existiria contrapartida para tanto (a não ser a reversão dos bens ao final, com as devidas construções a que se obrigou a contratada). A contraprestação propriamente dita estaria no recebimento, por parte do Estado de Santa Catarina, de um percentual de 2% sobre o lucro líquido anual verificado na venda de água mineral industrializada.

 

Ademais, a cláusula que permitia à contratada requerer ao Estado a promoção de desapropriação das áreas vizinhas afastaria qualquer dúvida sobre a natureza administrativa do contrato, de interesse da coletividade e, portanto, rescindível unilateralmente. Neste sentido, acompanhou os ministros que votaram pelo não conhecimento do recurso.

 

Voto-vista do Ministro Moreira Alves

 

Resultado: Conhecimento e provimento do recurso

 

Segundo o Ministro, a importância em distinguir o contrato privado da Administração e o contrato administrativo propriamente dito está no reconhecimento de que os últimos carregam implicitamente o poder de rescisão unilateral por parte da Administração Pública, “pela consideração de que o interesse público impõe a observância do princípio da continuidade do serviço público”.

 

No caso analisado, contudo, sendo um contrato de arrendamento de bem público dominical, ainda que se entenda que as normas de direito comum não se aplicam de forma absoluta, o direito público só ganharia espaço na medida em que existissem cláusulas exorbitantes (Laubadère).

 

O Ministro mencionou que este entendimento se encontrava no próprio direito francês, que se inclinava decididamente em favor da Administração Pública. Sendo assim, seria correto entender que a supremacia da posição contratual do Estado decorreria apenas da natureza do objeto (como na concessão de serviço público) ou das cláusulas apostas no contrato (ainda que em contrato cujo objeto seria considerado submetido ao direito comum).

 

O Ministro sustentou que, no Brasil, ao contrário do direito francês, o direito positivo propende para a aplicação do direito comum aos contratos administrativos, excetuados os contratos administrativos que visam à consecução de serviços públicos.

 

Neste sentido, valeu-se da doutrina de Oswaldo Aranha Bandeira de Mello para explicar que, à época, vigia o Código de Contabilidade Pública, que não diferenciava os contratos administrativos dos contratos comuns, com exceção de algumas formalidades que deveriam ser observadas para a validade desses contratos celebrados pela União. O Decreto federal 15.783/22 sujeitava o contrato administrativo ao direito comum – especialmente em relação ao acordo de vontades e ao objeto –, apenas disciplinando algumas regras distintas para a estipulação, aprovação e execução do contrato. Essas regras distintas, contudo, não prescreviam qualquer direito à modificação unilateral dos contratos.

 

Assim sendo, analisando-se o contrato, entendeu, ao contrário dos Ministros que votaram pelo não conhecimento do recurso, que, em verdade, existiam cláusulas que afastavam a posição de supremacia da Administração Pública.

 

Especialmente, mencionou a cláusula XIX, que determinava a resolução por arbitragem de qualquer divergência que surgisse entre a arrendatária e o Governo do Estado de Santa Catarina. O Ministro citou, ainda, a cláusula XXI, que estipulava o foro comum de Florianópolis para a resolução de quaisquer questões suscitadas na aplicação do contrato que não fossem resolvidas por arbitramento.

 

Segundo o Ministro, essas cláusulas incluíam a forma de resolução de litígios relacionados ao inadimplemento de obrigações contratuais, o que retirava da Administração o poder implícito de rescisão unilateral do contrato.

 

Afirmou que as demais cláusulas – como a de reversão dos bens, de fiscalização e de sujeição dos preços de hospedagem à aprovação do Estado de Santa Catarina – poderiam ser apostas em contratos firmados exclusivamente entre particulares, não significando, portanto, pela sua simples existência, que se tratava de contrato administrativo propriamente dito.

 

Seguindo o raciocínio, tampouco exorbitaria do direito comum a cláusula que conferia à arrendatária o direito de solicitar ao Estado de Santa Catarina que adquirisse terras vizinhas.

 

Em primeiro lugar, pois, o mesmo direito poderia ser previsto em contrato privado, com a diferença de que, em vez de desapropriação, prever-se-ia a aquisição por meio de compra. Em segundo lugar, a simples existência desta cláusula não fazia com que o contrato passasse a ter utilidade pública, até porque dificilmente uma desapropriação que objetivasse aumentar o domínio privado do Estado, com vistas ao interesse da exploração comercial dele por arrendatária particular, poderia ser enquadrada nos casos de utilidade ou necessidade públicas, ou de interesse social, únicos que permitiam a desapropriação.

 

Com essas razões, o Ministro Moreira Alves acompanhou o voto do Ministro Décio Miranda.

 

Voto-vista do Ministro Leitão de Abreu

 

Resultado: Conheceu e negou provimento ao recurso

 

Com o apoio da doutrina de Otto Mayer, o Ministro diferenciou os bens públicos em duas classes: (i) bens administrativos, desdobrados em bens de uso comum e bens de uso especial, pelos quais o Estado promove o interesse público e; (ii) bens fiscais, denominados em direito brasileiro por bens dominicais, por meio dos quais o Estado aufere meios pecuniários.

 

Segundo o Ministro, os bens administrativos são regidos pelo direito público, enquanto os bens fiscais (dominicais), pelo direito privado. Nada impediria, no entanto, que o Estado decidisse inserir cláusulas exorbitantes em contratos envolvendo bens dominicais.

 

A partir desse entendimento, o Ministro Leitão de Abreu, discordando do Ministro Moreira Alves, analisou as cláusulas contratuais e concluiu que, “[A]o ceder a empresa particular a exploração do próprio estadual “Caldas da Imperatriz” visou a Administração transferir a particular a execução de serviço, que entendia ser de utilidade coletiva, não tendo sido animada, desta sorte, pelo propósito de angariar lucro patrimonial ou tirar proveito pecuniário desse negócio jurídico.” [sic]. Para o Ministro, a retribuição pecuniária teria caráter meramente simbólico.

 

Entendeu, assim, que da existência de cláusula que permitia a desapropriação se extraía a conclusão de que o objeto contratual possuía fim de utilidade pública, já que apenas neste caso é que a desapropriação seria permitida.

 

Ao contrário dos demais Ministros que entendiam pela possibilidade de rescisão unilateral do contrato, o Ministro Leitão de Abreu conheceu do recurso (embora o tenha desprovido no mérito). Como se verá, o conhecimento do recurso pelo Ministro foi o que impediu o empate do julgamento.

 

Voto do Ministro Xavier de Albuquerque

 

Resultado: Conhecimento e provimento do recurso

 

O Ministro sustentou que não deve ser considerado público o serviço que qualquer particular pode prestar independentemente de concessão. No caso, “[q]ualquer titular de concessão de lavra, em fonte de água mineral, pode explorá-la, como pode construir no imóvel um hotel, e explorar a atividade hoteleira conjugada com a atividade hidromineral.”. Assim, para ele, o contrato em questão transferiu serviço privado, e não serviço público.

 

Ressaltou que o objetivo pecuniário do contrato não estaria tão somente na remuneração percebida pelo Estado, mas também no fato de que não haveria necessidade de despender recursos públicos com a manutenção e aprimoramento do imóvel. Ainda, destacou que em qualquer arrendamento poderia haver obrigação de fiscalização, até para que se verifique a manutenção do nível qualitativo da exploração hoteleira, por exemplo. Considerou, igualmente, que a cláusula de desapropriação previa o impossível, já que não haveria como se supor que o Estado poderia desapropriar terrenos adjacentes para transferir à exploração pela entidade particular.

 

Neste sentido, acompanhou a corrente capitaneada pelo Ministro Décio Miranda e votou pelo conhecimento e provimento do recurso.

 

Voto do Ministro Djaci Falcão

 

Resultado: Conhecimento e provimento do recurso

 

Acompanhou o voto da corrente pelo provimento do recurso, manifestando especial apoio ao conteúdo do voto proferido pelo Ministro Moreira Alves.

 

* Acórdão analisado durante a participação na disciplina “Serviço Público e seus Desafios Contemporâneos”, ministrada pelos Profs. Dr. Floriano Peixoto de Azevedo Marques Neto e Dr. Rodrigo Pagani de Souza. Seminário: “A noção de serviço público na pauta dos debates jurisprudenciais”, apresentado em 6 de  março de 2014.

 

** Gustavo Henrique Carvalho Schiefler é doutorando em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre e Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), onde desenvolveu pesquisa na área de Direito Administrativo. Advogado no escritório Menezes Niebuhr Advogados Associados. Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Direito Administrativo Democrático da Universidade de São Paulo (NEPAD/USP). Professor de cursos de capacitação em licitação pública e contrato administrativo. Consultor em sistemas de Direito e Tecnologia. Autor de artigos científicos publicados em revistas especializadas.

 


[1] Constituição Federal de 1967 (com a emenda de 1969)

Art. 119. Compete ao Supremo Tribunal Federal: […]

III – julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância por outros tribunais, quando a decisão recorrida:

a) contrariar dispositivo desta Constituição ou negar vigência de tratado ou lei federal; […]

c) julgar válida lei ou ato do govêrno local contestado em face da Constituição ou de lei federal; ou

d) der à lei federal interpretação divergente da que lhe tenha dado outro Tribunal ou o próprio Supremo Tribunal Federal.

Como citar e referenciar este artigo:
SCHIEFLER, Gustavo Henrique Carvalho. Recurso Extraordinário 89.217-6/SC: discussão sobre a natureza jurídica de contrato celebrado pela Administração Pública. Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF). Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2014. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-administrativo/recurso-extraordinario-89217-6sc-discussao-sobre-a-natureza-juridica-de-contrato-celebrado-pela-administracao-publica-jurisprudencia-do-supremo-tribunal-federal-stf/ Acesso em: 26 jul. 2024