Projeto de plano piloto da cidade de São Paulo
Kiyoshi Harada*
Nenhuma lei pode perder de vista o referencial ético e moral, sob pena de perder sua legitimidade.
O Direito nada mais é do que uma realização de convivência ordenada, como dizia Santi Romano, ou um sistema de regras de conduta humana, como queria Kelsen. O Direito é sempre um sistema de referência em face de uma determinada realidade social, onde busca sua legitimação conservando-a, pelo seu aspecto dinâmico, acompanhando as transformações sociais. Daí a ilegitimidade, a rejeição social de uma lei, que venha violar os princípios éticos e morais que presidem a sociedade, passando por cima de valores sociais, culturais, econômicos, jurídicos e religiosos, componentes do Estado Democrático, tutelados pela Carta Política, em nível de cláusula pétrea.
A Constituição Federal atribuiu ao Município autonomia político-administrativa, conferindo-lhe governo próprio. Para tanto, deu-lhe autonomia financeira com outorga de poder impositivo, permitindo instituição e arrecadação de impostos privativos, ao lado de outras espécies tributárias, além de conferir o direito à participação no produto de arrecadação de impostos estaduais e federais.
Conferiu, outrossim, ao Município o específico poder de ordenar o desenvolvimento das funções sociais da cidade, para garantia do bem-estar de seus habitantes, por meio de ‘Plano Diretor’, que é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana. Conferiu-lhe, por meio desse ‘Plano Diretor’, aprovado pelo Legislativo, a faculdade de definir quando, onde e como a propriedade urbana cumpre sua função social (art. 182 e §§ 1º e 2º da CF).
A realidade social das megalópoles está a exigir, realmente, disciplinação rígida do uso do espaço urbanístico, por meio de normas de direito público, derrogadoras de normas convencionais e que pairam acima das normas de direito privado, sempre respeitados os princípios constitucionais asseguradores de direitos fundamentais como o direito de propriedade, com a ressalva da desapropriação, a liberdade de trabalho etc.
Por isso, não são indenizáveis as restrições ao exercício do direito de propriedade, mais precisamente, ao direito de construir, impostas pela legislação do uso e ocupação do solo, por leis de proteção do patrimônio histórico e artístico das três esferas políticas etc. Tudo isso, faz com que o art. 527 do Código Civil, que prescreve que ‘o domínio presume-se exclusivo e ilimitado, até prova em contrário’ deva ser interpretado atualizadamente. A realidade de hoje não permite conferir à propriedade o caráter absoluto, nem caráter exclusivo ou perpétuo, porque a propriedade deve cumprir função social, que passou a se constituir em seu elemento estrutural.
A essa altura, é de se perguntar: o que isso tem a ver como o tema? Tudo. É preciso deixar bem claro que as restrições impostas por normas urbanísticas, na consecução da finalidade cometida pela Carga Magna, são legítimas e salutares, já que a pluralista sociedade hodierna não pode abrigar direitos puramente individualistas, em prejuízo de direitos coletivos. O importante é que o governante exercite o poder de que se acha investido, para atingir o objetivo em função do qual aquele poder foi outorgado. Em outras palavras, a motivação de seu ato deve harmonizar-se com a finalidade perseguida, sob pena de desvio de poder, caracterizador do ato de improbidade, reprimível na forma da lei específica. E aqui é oportuno salientar que o desvio de finalidade, ainda que para outro fim de interesse público, é reprimido pela Lei nº 8.429/92.
No caso, o fundamento do ‘Plano Diretor’ é a necessidade pública de ordenação das funções sociais da cidade, objetivando o bem-estar de seus habitantes. Para tanto, o governo municipal pode e deve disciplinar o uso e ocupação do solo urbano, restringindo o caráter exclusivo e absoluto da propriedade urbana, mediante encampação, pelo ordenamento jurídico local, de normas técnicas, de natureza urbanística, capazes de propiciar a melhoria de qualidade de vida aos habitantes da comuna. Se preciso for, pode e deve até atingir o caráter perpétuo da propriedade, promovendo a desapropriação da propriedade que descumprir a função social, mediante pagamento da justa indenização em títulos da dívida pública, resgatáveis em dez anos (art. 182, § 4º, III da CF).
Importante frisar, no entanto, que essa disciplinação jurídica não pode implicar aniquilamento do direito de propriedade. A propriedade do solo abrange a do subsolo (exceto riquezas naturais) e a do espaço aéreo respectivos, em profundidade e altura úteis ao exercício do direito, como decorre do art. 526 do Código Civil. Qualquer manual de Direito Civil traz essa noção elementar, que não é dado a ninguém ignorar.
Ora, o projeto de ‘Plano Diretor’, em discussão na Casa do Povo, é a consagração do abuso legislativo, do desvio de poder. Tão radical o tratamento dispensado à matéria, interferindo em tudo aquilo que diz respeito ao regular exercício do direito pelo proprietário, que alguns estudiosos denominaram esse projeto legislativo como ‘cubanização’ da cidade. Advirta-se, desde logo, que não é a diversidade de assuntos que vicia o projeto, mas a maneira pela qual pretende regular essas diferentes matérias, conflitando com as respectivas leis de regência e, sobretudo, passando por cima dos balizamentos constitucionais.
No que tange ao direito de construir, só para citar, o projeto, praticamente, confisca o espaço aéreo, pertencente ao proprietário do solo, com vistas à ulterior venda a seu ex dono. O projeto prevê a mágica do ‘solo criado’, que vigorou na cidade de Paris, em outro contexto, em outra realidade social e com outra finalidade. Aqui, o projeto sob exame, esvazia o conteúdo da propriedade, isto é, despe o proprietário, que fica literalmente nu, e ao depois, devolve-lhe a vestimenta sob condições onerosas e penosas. Parece confundir proprietário nu, com nua propriedade. Ignora noção elementar de direito público, que faculta ao poder público competente dosar o grau de restrição, de forma a conciliar o interesse da coletividade com o princípio do menor sacrifício a ser imposto ao proprietário do imóvel. Daí os diferentes graus de utilização do imóvel, previstos na legislação vigente. Ignorando o direito em vigor, o projeto impõe o chamado Coeficiente de Aproveitamento Básico para todos os imóveis, situados na zona urbana do Município, de sorte que, grande parte deles ficarão em situações de subutilização, a menos que adquira, a título oneroso, o potencial construtivo para que a propriedade possa cumprir, adequadamente, sua função social.
Ora, se a propriedade urbana já nasce predestinada a cumprir função social, como decorre dos textos constitucionais, pergunta-se, como é possível a lei, artificialmente, retirar dessa propriedade a função que lhe é inerente? É uma forma bastante estranha de preservação do interesse público. Por falar nisso, se o interesse público ditar a limitação do gabarito de uma construção, dinheiro algum poderia abrir exceção. Se não se permitir, por exemplo, a incorporação do terreno em até duas vezes a sua área, em determinado local, porque assim exigiu o interesse urbanístico, esse interesse, que é de natureza pública, não poderia ser contrariado por meios convencionais, mediante paga. Como é sabido, o interesse público não pode ser negociado, pois, quando isso acontecer estaremos diante da mais grave forma de comprometimento da ordem pública, que a Carta Política elege como pressuposto material de intervenção federal.
As normas urbanísticas, que deveriam tutelar tão somente os interesses urbanísticos, passam a ser instrumentos de realização de receitas públicas. Procurou-se criar um imposto inominado e disfarçado sobre a propriedade territorial urbana, que teria como fato gerador o exercício do direito de construir. Senão vejamos. As receitas públicas classificam-se em receitas derivadas ou compulsórias (tributos e multas administrativas), de um lado, e em receitas originárias ou voluntárias, de outro lado. Dentre estas últimas existem a receita industrial, a comercial e a de serviços (tarifas ou preços públicos); a receita de natureza patrimonial, imobiliária e mobiliária (venda de bem imóvel de natureza dominical e privatização); e a chamada receita creditícia (empréstimo público, interno e internacional). Pergunta-se, onde se enquadra a receita auferida com a venda do potencial construtivo? Seria de natureza patrimonial, se partisse da premissa de que o direito de construir é do poder público local e não do proprietário do solo urbano, como prescreve a lei civil, aplicável nacionalmente. Por exclusão, só resta a receita tributária, porque multa, também, não pode ser, por absoluta ausência de infração imputável ao proprietário. Realmente, esse preço de venda do potencial construtivo subsume-se à figura tributária: anula-se o potencial construtivo de um imóvel, ínsito no direito de propriedade, para, ao depois, restituí-lo mediante paga. Esse pagamento, se analisado isoladamente, corresponde à expressão do direito privado, regido pelo princípio da autonomia da vontade. Mas, vimos que não é bem assim. O poder público incorpora para si, unilateralmente, o direito de construir, inerente à propriedade urbana, para forçar o proprietário a celebrar contrato oneroso, restituindo-lhe, mediante paga, aquele direito suprimido. Eventualmente, se não adquirir o direito de construção, poderá o proprietário ser até penalizado pela subutilização do imóvel.
Dessa forma, o projeto de lei sob comento, institui um imposto inominado, burlando o rígido princípio constitucional da discriminação de rendas tributárias, que protege as pessoas e seus bens contra abusos do poder tributante. Essas normas projetadas, funcionam como sucedâneos à atuação de normas tributárias, em franco desvio de finalidade. Não importa que o produto da arrecadação do preço de venda do espaço aéreo confiscado seja aplicado em benefício da sociedade, integrada, também, pela vítima. Saliente-se que é até louvável a canalização de recursos financeiros para o Fundo de Desenvolvimento Urbano, constituído, dentre outros, com recursos provenientes de outorga onerosa do direito de construir, de alienação de certificados de potencial adicional de construção, de transferência do direito de construir, de acordos, contratos, consórcios e convênios etc. É indiscutível que esse Fundo, previsto no projeto, irá viabilizar a concretização de projetos urbanísticos e ambientais de indiscutível interesse da comunidade. Só que o legislador municipal não pode vestir a roupagem de um legislador constituinte originário, para confiscar bens e direitos de particulares, como fez a Constituinte de 1946, ao separar a propriedade das riquezas do subsolo da propriedade do solo. Nem pode, ou deve apegar-se ao pensamento amoralista de Niccoló Machiavelli que, quando secretário de Estado da República Florentina, nos idos de 1499, engendrou o princípio do fim justifica o meio. Não bastassem as pétreas garantias constitucionais da propriedade, nos limites e nos termos prefixados, uma lei dessa natureza, certamente, abriria um abismo insuperável entre a Ética e o Direito. As normas de direito só se legitimam e ganham efetividade à medida em que contidas nos estritos limites da ética, da moral, do justo, do correto e do bom senso. E esse projeto legislativo, ao anular o potencial construtivo, que a propriedade urbana tem, atualmente, segundo a legislação em vigor, violenta, em bloco, todos esses valores, firmemente arraigados no seio de nossa sociedade. O desvio de poder, no caso, exsurge, com lapidar clareza, pelo simples confronto de sua motivação com o inescondível objetivo financeiro, decorrente de excessiva preocupação com a contrapartida a cargo do proprietário. Segundo o projeto, em tudo, ou em quase tudo, existe uma contrapartida. A receita pública, sempre escassa em relação aos gastos que a sociedade moderna exige, há de ser auferida segundo o paradigma constitucional, da mesma forma que os gastos devem ser comedidos e direcionados para setores prioritários. Nenhum governante é obrigado a fazer o impossível, mas, fazer o possível dentro do sistema jurídico agasalhado pela Carta Política. Bom governo se faz por meio de otimização de recursos materiais e pessoais disponíveis, e eleição de prioridades no direcionamentos de despesas públicas. Isso exige competência, seriedade, sensibilidade política, probidade e bastante trabalho, ou seja, exige a qualidade de um estadista. Enfim, o que importa é um governo, onde haja, em quaisquer circunstâncias, o predomínio do Estado Democrático de Direito, proclamado logo no art. 1º da Constituição Federal. Dificuldades financeiras não podem ser motivo para o confisco. Isso nunca deu certo e o povo já está cansado desse estilo de governar. Até agora, o plano econômico que mais deu certo é exatamente aquele que nada confiscou, fundamentado em premissas corretas, sérias e inteligentes.
A sociedade paulistana espera que seus representantes na Câmara repudiem esse projeto de lei, contaminado de incurável moléstia da inconstitucionalidade que, a pretexto de regular as funções sociais da cidade, exacerba o nível de transferência compulsória de bens do setor privado para o setor público, já suficientemente aquinhoado com generoso elenco de tributos. Espera-se que a Casa Legislativa promova os ajustes necessários, separando o joio do trigo.
SP, 12.08.02.
* Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro. Presidente Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.
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