Direito Administrativo

Os primeiros registros do recém-chegado direito administrativo no Brasil do século XIX

Gustavo Henrique Carvalho Schiefler[1]

Importa ao interesse publico que a acção administrativa não seja entorpecida em sua marcha, como aconteceria, se fôsse outorgado ao poder judiciario (cujo caracteristico é a independencia) o direito de ter a espada e a balança alçadas sobre a cabeça do Governo, chamâ-lo todos os dias a Juizo, e atacâ-lo de frente.

(Vicente Pereira do Rego, autor do primeiro livro de Direito Administrativo brasileiro, em 1860, §103, grafia da época) 

Quando o direito administrativo aportou no Brasil, como ramo autônomo do direito, em meados do século XIX, sob a égide da Constituição de 1824 e sob o influxo dos princípios inspiradores da Revolução Francesa[2], o governo vigente se estruturava pela forma de monarquia parlamentar constitucional.

À época, segundo os autores daquele tempo, existia uma jurisdição administrativa para tratar dos conflitos entre os interesses privados e os interesses públicos[3][4]. O conteúdo do interesse público era tido como intimamente vinculado ao interesse do estado. E, assim, os interesses da administração pública, quando envolvidos em contenciosos, sujeitavam-se em última instância ao Conselho do Estado[5] brasileiro, sem prejuízo da eventual intervenção do chefe do Poder Executivo (o Imperador), tal como na França da época[6]. A jurisdição administrativa era responsável por julgar a contraposição de interesses privados com o interesse do estado, enquanto o Poder Judiciário restringia-se às esferas penal e civil[7]. É como ensinava Antonio Joaquim Ribas[8]:

Os agentes da administração, obrando jurisdiccionalmente, são verdadeiros magistrados administrativos, que se distinguem dos judiciarios, não pela natureza das funcções, mas somente pelas materias sobre que as exercem, ou pela sua extensão e permanencia.

Noutra passagem doutrinária histórica, o mesmo relato sobre a competência administrativa para julgar os contenciosos contratuais da administração pública brasileira:

U’na cousa é contenciosa, quando está em questão; quando é, ou pode ser disputada. A jurisdicção contenciosa é a dos Juizes naturaes e ordinários. É principio e regra que a mesma Administração deve julgar as reclamações que se erguem por occasião dos seus actos, que ellas se apoiem em simples interesses, quer se fundem em direitos. O contencioso administrativo é pois a jurisdicção da Administração, que é o Juiz natural e ordinário dos seus actos. […] Quanto ao contencioso entre os fornecedores ou contractadores e o Governo, é da competencia da autoridade administrativa[9].

Tal como não passou desacautelado de Vicente Pereira do Rego[10], havia algo de enigmático em conceder à própria administração pública o direito de julgar os seus interesses. Contudo, ao que tudo indica, essa estranheza não era algo a se discutir – supõe-se pela magnitude da autoridade que se revestia a administração pública sobre os particulares, especialmente porque a hierarquia partia de um Imperador: 

A quem deverá pois pertencer o direito de julgar o contencioso administrativo? Julgar-se-ha a Administração a si mesma? Não cabe aqui discutir estas questões, aliás de grande interesse. Limitar-nos-hemos a indicar os argumentos invocados a favor da Administração para julgar o contencioso administrativo, como mais valiosos.

Dizia-se à época que sujeitar os interesses da administração pública ao Poder Judiciário seria uma medida inconciliável com a separação dos poderes, “porquanto, o executivo seria collocado em posição de dependência e subalternidade em relação ao judicial”, arriscando-se a “sacrificar muitas vezes os interesses publicos á supersticiosa, servil e material observancia dos textos legislativos.”[11]

As passagens denotam um direito administrativo incipiente, guarnecido por uma autoridade indiscutível exercida pela administração pública, que notadamente amainava as garantias e liberdades do indivíduo em seu defronte. Pelo trecho acima referenciado, percebe-se uma construção doutrinária do direito administrativo brasileiro do século XIX em defesa de uma intocabilidade da administração pública, seja perante o Poder Judiciário seja diante do Poder Legislativo.

São marcas do conflito permanente entre autoridade e liberdade, observado com mais agudez no direito público do que em qualquer outro ramo do direito[12]. Diga-se, a propósito desse conflito, que o desenrolar histórico do direito administrativo é o justo produto dessa “tensão dialética entre a lógica da autoridade e a lógica da liberdade.”[13]

Outra característica digna de nota refere-se ao conceito de serviço público. À época do Império de Pedro II, serviço público se desvelava em noção substancialmente distinta da que hoje é considerada. Referia-se muito mais aos serviços prestados pelos empregados públicos ao próprio estado do que aos serviços prestados por eventuais contratados do estado aos administrados. Por exemplo, quando o empregado do estado faltava ao serviço, dizia-se – e diz-se até hoje – que se ausentou do serviço público; embora também se pudesse empregar o termo para designar um contrato de serviços públicos (prestados em favor do Estado, eventualmente também em favor dos administrados).  Não havia um uso técnico ou sistematizado do termo, até porque não existiam serviços públicos propriamente ditos, tal como viriam a ser considerados pela doutrina francesa e, posteriormente, brasileira. Serviço público remontava a um serviço prestado ao estado, porquanto tanto o empregado público como o contratado prestavam serviços públicos – ainda que o serviço prestado ao estado representasse algum serviço de interesse geral[14][15].

Até hoje persistem esses dois conceitos para serviços públicos: o primeiro, de cunho orgânico, em referência aos serviços prestados pelos agentes públicos ao próprio estado (como o inciso XIII do artigo 37 da Constituição Federal), e o segundo, de cunho dito objetivo, em referência às atividades administrativas prestacionais (como o artigo 175 da Constituição Federal)[16].

A origem do direito administrativo, especialmente no Brasil, não foi tão romanesca quanto se poderia supor num cenário em que houvesse o reconhecimento abrupto e amplo de garantias de direitos aos cidadãos contra o estado. Aliás, sobre os primórdios do direito administrativo, em si, Gustavo Binenbojm[17] comenta que não há como concebê-lo como se tivesse sido forjado com ideais liberais e com o propósito único de conter e submeter a administração pública à legislação[18]. Para o autor, inclusive, ao contrário, a sua construção, partindo de dentro da própria jurisdição administrativa francesa – e irradiando efeitos para o Brasil –, não intentava defender as garantias e os direitos individuais, mas manutenir, após a derrocada do Antigo Regime, a imunidade do Poder Executivo diante dos demais poderes, e, especialmente, do controle do cidadão. No Brasil, ao menos, tal característica restou nítida com as lições transcritas dos primeiros juristas administrativistas brasileiros.

De toda sorte, as particularidades autoritárias, mais vinculadas às origens do direito administrativo, receberam, com o decorrer da história, aportes de uma vertente mais garantista, aproximando a atividade administrativa do controle dos cidadãos. A dogmática administrativista confrontou-se desde sempre com uma constante contradição entre os vetores da liberdade e da autoridade[19].

Em suma, os registros históricos indicam que o século XIX foi marcado pela autoridade do estado sobre os cidadãos – mesmo após a proclamação da república, que, quiçá, ensejou o exercício de uma autoridade ainda maior[20], mesmo com a extinção da jurisdição administrativa e a importação do sistema anglo-americano de jurisdição unitária[21][22].



[1] Doutor em Direito do Estado (USP). Mestre e bacharel em Direito (UFSC). Advogado e professor. A essência do presente texto foi publicado originalmente em: SCHIEFLER, Gustavo Henrique Carvalho. Procedimento de Manifestação de Interesse (PMI): solicitação e apresentação de estudos e projetos para a estruturação de concessões comuns e parcerias público-privadas. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Ciências Jurídicas. Programa de Pós-Graduação em Direito, 2013

[2] Cf. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. 500 anos de direito administrativo brasileiro. Revista Diálogo Jurídico, nº 10, Salvador, Bahia, 2002, p. 8-9.

[3] Cf. REGO, Vicente Pereira do. Elementos de direito administrativo brasileiro para uso das faculdades de direito do Imperio. Recife: Typographia Commercial de Geral Henrique de Mira & C., 1860, §9.

[4] Cf. RIBAS, Antonio Joaquim. Direito administrativo brasileiro. Rio de Janeiro: F. L. Pinto & C, Livreiros-Editores 87, 1866, p. 110.

[5] É da lição de Vicente Pereira do Rego: “Já vimos que a Administração contenciosa é a que julga os interesses privados que se prendem á acção administrativa. Abre-se o meio contencioso, todas as vezes que o interesse privado é ferido por uma decisão procedente d’uma autoridade que está sob a alçada do Conselho do Estado.” REGO, Vicente Pereira do. Elementos de direito administrativo brasileiro para uso das faculdades de direito do Imperio. Recife: Typographia Commercial de Geral Henrique de Mira & C., 1860, §9, grafia da época.

[6] Cf. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. 500 anos de direito administrativo brasileiro. Revista Diálogo Jurídico, nº 10, Salvador, Bahia, 2002, p. 9.

[7] Cf. RIBAS, Antonio Joaquim. Direito administrativo brasileiro. Rio de Janeiro: F. L. Pinto & C, Livreiros-Editores 87, 1866, p. 162.

[8] Cf. RIBAS, Antonio Joaquim. Direito administrativo brasileiro. Rio de Janeiro: F. L. Pinto & C, Livreiros-Editores 87, 1866, p. 113, grafia da época.

[9] Cf. REGO, Vicente Pereira do. Elementos de direito administrativo brasileiro para uso das faculdades de direito do Imperio. Recife: Typographia Commercial de Geral Henrique de Mira & C., 1860, §40, grafia da época.

[10] Cf. REGO, Vicente Pereira do. Elementos de direito administrativo brasileiro para uso das faculdades de direito do Imperio. Recife: Typographia Commercial de Geral Henrique de Mira & C., 1860, §81, grafia da época.

[11] Cf. RIBAS, Antonio Joaquim. Direito administrativo brasileiro. Rio de Janeiro: F. L. Pinto & C, Livreiros-Editores 87, 1866, p. 80, 163 grafia da época.

[12] Cf. GORDILLO, Agustín A. Princípios gerais de direito público. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977, p. 49.

[13] Cf. BINENBOJM, Gustavo. A constitucionalização do direito administrativo no Brasil: um inventário de avanços e retrocessos. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado (RERE), Salvador, Instituto de Direito Público, nº 13, março/abril/maio, 2008, p. 2.

[14] Cf. REGO, Vicente Pereira do. Elementos de direito administrativo brasileiro para uso das faculdades de direito do Imperio. Recife: Typographia Commercial de Geral Henrique de Mira & C., 1860, § 316.

[15] Cf. RIBAS, Antonio Joaquim. Direito administrativo brasileiro. Rio de Janeiro: F. L. Pinto & C, Livreiros-Editores 87, 1866, p. 102.

[16] A classificação é de Fernando Vernalha Guimarães. GUIMARÃES, Fernando Vernalha. Concessão de serviço público. São Paulo: Saraiva, 2012, p.73.

[17] Cf. BINENBOJM, Gustavo. A constitucionalização do direito administrativo no Brasil: um inventário de avanços e retrocessos. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado (RERE), Salvador, Instituto de Direito Público, nº 13, março/abril/maio, 2008, p. 1-2.

[18] Em sentido contrário, ver Emerson Gabardo (2009, p. 239).

[19] Cf. BINENBOJM, Gustavo. A constitucionalização do direito administrativo no Brasil: um inventário de avanços e retrocessos. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado (RERE), Salvador, Instituto de Direito Público, nº 13, março/abril/maio, 2008, p. 1-2.

[20] Cf. BARBEIRO, Heródoto; CANTELE, Bruna. O livro dos políticos. São Paulo: Ediouro, 2008, p. 239-260.

[21] Cf. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 28ª ed.São Paulo: Malheiros Editores, 2011, p. 86.

[22] Cf. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. 500 anos de direito administrativo brasileiro. Revista Diálogo Jurídico, nº 10, Salvador, Bahia, 2002, p. 14.

Como citar e referenciar este artigo:
SCHIEFLER, Gustavo Henrique Carvalho. Os primeiros registros do recém-chegado direito administrativo no Brasil do século XIX. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2017. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-administrativo/os-primeiros-registros-do-recem-chegado-direito-administrativo-no-brasil-do-seculo-xix/ Acesso em: 03 dez. 2023