Direito Administrativo

Orçamento anual. Contradições.

Orçamento anual. Contradições.

 

 

Kiyoshi Harada*

 

 

No editorial do Jornal ‘O Estado de São Paulo’, do dia 16-05-05, p. A3, chamou-me a atenção o artigo intitulado ‘Dirigismo orçamentário’.

 

     Segundo esse editorial, a Carta Política de 1988 teria caráter ‘dirigista’. Exatamente ‘ por obrigar o Poder Executivo a gastar parte do orçamento em educação, desenvolvimento regional e assistência social, entre outros setores, limitando a capacidade dos governantes de escolher livremente as prioridades de sua administração, a Carta seria um instrumento de justiça distributiva e correção de desigualdades’.

 

     Esse interessante tema que o Estadão trouxe à baila merece estudos e reflexões. Se a Carta Política, por si só, fosse um instrumento de justiça distributiva e correção de desigualdades, o País não precisaria de um estadista para buscar o progresso da nação que, diferentemente do mero desenvolvimento econômico, traz o bem-estar geral da sociedade, traduzido pela qualidade de vida melhor, sob todos os aspectos, inclusive o econômico.

 

     Uma coisa é certa. O ‘dirigismo orçamentário’ no sentido de a Carta Política vincular percentual de receitas para determinadas despesas é tão ruim quanto o ‘dirigismo econômico’ imposto pelas Cartas de 1967/69, que resultou na planificação da economia em âmbito nacional, a qual, mostrou-se desastrosa como bem demonstrou o fim do ‘milagre econômico’. Foi banido pela Constituição de 1988, sendo substituído pela regra de seu art. 174, em que o Estado (União, Estados membros, DF e Municípios) figura como agente normativo e regulador da atividade econômica, exercendo as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, este último, impositivo para o setor público e indicativo para o setor privado.

 

     Analisemos a questão trazida pelo editorial sob o prisma técnico-jurídico.

 

     O princípio constitucional de legalidade das despesas públicas, corolário do princípio da legalidade tributária, conquistado a duras penas, significa que nenhuma despesa pode ser feita sem prévia aprovação legislativa. Não se deve esquecer que todo o poder emana do povo (parágrafo único do art. 1º da CF). É a lei do orçamento anual que fixa as despesas do exercício, sendo vedada a concessão de créditos ilimitados. À medida das necessidades públicas deve o Executivo solicitar ao Legislativo autorização para abertura de créditos adicionais especiais ou suplementares (art. 167, II, V e VIII da CF).

 

     Fixação de despesas, outra coisa não é senão direcionamento das receitas públicas para cumprimento das diversas finalidades estatais, atribuindo verbas a cada uma das diversas dotações orçamentárias, desdobrando-se cada uma delas em vários elementos de despesas, atendendo ao princípio da transparência orçamentária e possibilitando a fiscalização e o controle eficiente dos gastos públicos pelo Legislativo, com auxílio do Tribunal de Contas.

 

     Por isso, o exame do orçamento anual permite identificar o plano de ação governamental, bem como saber se as promessas de campanhas do governante eleito estão refletidas ou não nesse programa de governo. O exame do orçamento da União de 2005, por exemplo, que estimou a receita em R$ 1.642.362.320.073,00 e fixou a despesa em igual montante, destinando, a título de despesas de investimento apenas R$ 35.959.149.021,00, ou seja, somente 2,189477% do orçamento, revela um abismo entre o discurso governamental e o que está refletido no orçamento. Com esse percentual de investimento não se pode esperar o apregoado surto de desenvolvimento econômico e conseqüente desenvolvimento social. Pelo contrário, gerações futuras enfrentarão dificuldades maiores que as da geração atual. Outro exemplo. Se verificarmos os orçamentos anuais do governo Collor constataremos que a promessa de governar ‘pelos descamisados’ não foi traduzida no seu plano de governo, que pouco destinou para a área social.

 

     O salutar princípio da legalidade das despesas vem sendo driblado pelo Executivo e pelo Legislativo, por vários mecanismos. Alguns desses mecanismos têm matriz constitucional. Refiro-me à vinculação de recursos para aprimoramento da Administração Tributária (art. 37, XXII da CF); à vinculação de receitas para desenvolvimento das Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste (art. 159, I, c da CF); à vinculação de recursos para saúde (art. 198, § 2º da CF); e à vinculação de recursos para o desenvolvimento do ensino fundamental da ordem de 18% da receita de impostos para a União, e de 25% para os Estados e Municípios (art. 212 da CF).

 

     Com exceção dos arts. 159, I, c e 212 os demais dispositivos foram enxertados pelas Emendas casuísticas contrariando abertamente o princípio constitucional que veda a vinculação de receitas de impostos a órgãos e fundos ou despesas (art. 167, IV da CF). Essa vedação traduz o princípio de que cabe ao governante, consagrado nas urnas, a responsabilidade de elaborar o seu plano de ação governamental promovendo o direcionamento de despesas públicas para setores reputados prioritários e dentro da plataforma de campanha, sob pena de faltar legitimidade para governar. Mas, isso é tarefa para estadistas, que parece não mais existir. Na falta destes, a tendência é ir vinculando receitas públicas às mais diversas necessidade públicas a serem satisfeitas, de tal forma que a governança poderia até ser entregue a um computador.

 

     Como nenhum governante, estadista ou curioso, uma vez eleito, não quer se submeter a esse engessamento orçamentário, que lhe tolhe a liberdade de gastar bem ou mal, não importa, surgem as desvinculações de natureza constitucional e infraconstitucional. Assim, surgiu a desvinculação de 20% do produto de arrecadação tributária de União, inicialmente, com o nome de Fundo Social de Emergência, alterado posteriormente para Fundo de Estabilização Fiscal e, hoje, conhecido simplesmente como Desvinculação da Receita da União – DRU – a vigorar até o ano de 2007. Em termos atuais essa DRU significa 93,234 bilhões de reais de cheque em branco para o Sr. Presidente da República gastar à sua discrição e não segundo a destinação legal. Temos, ainda o fundo de Combate e Erradicação da Pobreza a vigorar até o ano de 2010, criado pela EC nº 31/2000. Passados 5 anos, a pobreza não deu sinais de desaparecimento, pelo contrário, aumentou o contingente de pobres em decorrência do aumento da carga tributária, para suprir tantos fundos, donde o dinheiro desaparece como se colocado em um saco sem fundo.

 

     No nível infraconstitucional existem dezenas de fundos criados ao arrepio do disposto no art. 165, § 9º, II da CF, que exige prévia disciplinação, por lei complementar, das hipóteses de instituição e funcionamento de fundos. O último deles foi instituído pela Lei nº 11.079/04, conhecida como Lei das PPPs, composto de 6 bilhões de reais para garantir um futuro e eventual credor da parceria público-privada. Para driblar a proibição constitucional, a esse fundo foi conferido a natureza jurídica privada, o que foi suficiente para inúmeros juristas proclamarem a sua constitucionalidade.

 

     Quando a mídia critica o chamado ‘dirigismo orçamentário’ há de ser levado em conta dois aspectos fundamentais.

 

     Primeiramente, o engessamento constitucional de despesas, decorrente, na visão do legislador constituinte, do despreparo dos governantes em eleger as prioridades, está sendo anulado pelo mecanismo da desvinculação de receitas tributárias , desde 1994. Vinte por cento dessas receitas ficam livres para que o Chefe do Executivo dê o destino que quiser, praticamente, inviabilizando o mecanismo de fiscalização e controle das despesas públicas, por absoluta ausência de elementos de despesas.

 

     Em segundo lugar, o “engessamento” que decorre das dotações orçamentárias fixadas na lei orçamentária anual ( não os de natureza constitucional), jamais poderia merecer contestação ou reclamação do governante, à medida em que aquelas dotações espelham ou deveriam espelhar o plano de governo por ele elaborado. O fato de o governante contestar o orçamento anual é como se ele próprio contestasse sua política governamental. Nesse particular, é curioso notar que, inconscientemente, todos os governantes vêm atirando pedras para cima.

 

     De fato, a iniciativa do projeto de lei orçamentária é do Executivo. A possibilidade de modificações no Legislativo, por via de emendas, é remota, em virtude das restrições do § 3º do art. 166 da CF.

 

     Conclusão . Uma forma de deixar de criticar o chamado ‘engessamento orçamentário’ é o governante elaborar o projeto de lei orçamentária anual a partir do programa de governo que pretende executar. Pode dar muito trabalho e exigir exercício de inteligência, de sabedoria e muito conhecimento da realidade brasileira, mas valerá a pena. Não precisará o governante ficar contestando, a todo momento, o seu programa de governo.

 

SP, 16.05.05.

 

 

* Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças.  Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

kiyoshi@haradaadvogados.com.br

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Como citar e referenciar este artigo:
HARADA, Kiyoshi. Orçamento anual. Contradições.. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-administrativo/orcamento-anual-contradicoes/ Acesso em: 18 jan. 2025