O inquérito administrativo no âmbito da administração pública indireta
Miguel Teixeira Filho *
1. INTRODUÇÃO
O presente artigo faz uma breve análise dos requisitos para instauração e processamento do procedimento administrativo disciplinar no âmbito da Administração Pública Indireta.
2. DEFINIÇÕES
O “inquérito administrativo”, na verdade, é um procedimento que se inclui no processo administrativo disciplinar, com ele se confundindo.
Na conceituação do administrativista e professor Hely Lopes Meirelles, processo administrativo disciplinar é “o meio de apuração e punição de faltas graves dos servidores públicos e demais pessoas sujeitas ao regime funcional de determinados estabelecimentos da Administração”. (Curso de Direito Administrativo, Editora RT, 1998, p. 559).
Cumpre esclarecer que o processo administrativo disciplinar não se confunde com sindicância, que é apenas um meio sumário de elucidação de irregularidades no serviço para subseqüente instauração de processo e punição ao infrator.
É possível ainda dizer que, numa primeira espécie, a sindicância caracteriza-se como peça preliminar e informativa do processo administrativo disciplinar, ou seja, é meio de apuração prévia.
A sindicância dispensa maiores formalidades, de tão sumária que deve ser. Em princípio, não serve de base para aplicação de penalidades. É, por tal razão, até mesmo desnecessária a participação do acusado no procedimento, posto que não visa, em princípio, a aplicação de qualquer medida, a não ser a eventual instauração do processo administrativo disciplinar, ocasião em que, aí sim, se fará necessária a observância de formalidades, como adiante se verá.
O vocábulo “processo” induz a existência de uma série de procedimentos, encadeados e ordenados, que resultam numa conclusão.
No caso do processo administrativo disciplinar, que diz respeito a uma relação funcional ou empregatícia, a conclusão que se busca atingir é a verificação da existência ou não de conduta passível de punição disciplinar.
No caso dos servidores da Administração Pública Direta Federal o processo administrativo disciplinar está regulamentado no Estatuto dos Servidores Federais, baixado pela Lei Federal 8.112, de 11/12/1990, em seus artigos 143 a 182.
Encontramos semelhantes disposições no âmbito da Administração Municipal Direta dos Estados e dos Municípios.
No entanto, é de ser observar que as disposições dos Estatutos de Servidores da Administração Direta, em geral, não se aplicam para as empresas públicas e sociedades de economia mista das respectivas esferas federativas, o que ocorre, frequentemente, por disposição destes próprios diplomas.
Tal exclusão se explica porque os empregados públicos das empresas públicas e das sociedades de economia mista não mantêm relação funcional com a Administração, mas estão ligados a tais entidades por liame de natureza trabalhista, regido que são pelas normas da Legislação Trabalhista Privada (CLT), consoante expressamente dispõe o art. 173, art. 173, § 1º, II, da Constituição Federal:
§ 1º A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre:
(…)
II – a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários; (grifou-se)
Deste modo, os empregados públicos das empresas públicas e das sociedades de economia mista, diferentemente dos servidores da Administração Pública Direta, não dispõem de um estatuto disciplinar, tal qual o contido nos Estatutos de Servidores.
Assim sendo, as empresas públicas e das sociedades de economia mista devem produzir suas normas internas, para disciplinar a apuração de irregularidades de cunho disciplinar.
Saliente-se, no entanto, que para efeitos de aplicação de medidas disciplinares, no âmbito das empresas públicas e sociedades de economia mista, e dado o regime jurídico privatístico que informa a relação laboral, seria despicienda a instauração de processo administrativo disciplinar, para aplicação de qualquer medida, inclusive desligamento, conforme Súmula 390 do Tribunal Superior do Trabalho:
ESTABILIDADE. ART. 41 DA CF/1988. CELETISTA. ADMINISTRA-ÇÃO DIRETA,AUTÁRQUICA OU
FUNDACIONAL. APLICABILIDA-DE. EMPREGADO DE EMPRESA PÚBLICA E SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA.
INAPLICÁVEL (conversão das Orientações Jurisprudenciais nºs 229 e 265 da SBDI-1 e da Orientação
Jurisprudencial nº 22 da SBDI-2) - Res. 129/2005, DJ 20, 22 e 25.04.2005
I - O servidor público celetista da administração direta, autárquica ou fundacional é beneficiário da estabilidade
prevista no art. 41 da CF/1988. (ex-OJs nºs 265 da SBDI-1 - inserida em 27.09.2002 - e 22 da SBDI-2 -
inserida em 20.09.00)
II - Ao empregado de empresa pública ou de sociedade de economia mista, ainda que admitido mediante
aprovação em concurso público, não é garantida a estabilidade prevista no art. 41 da CF/1988.
(Súmula 390 TST - ex-OJ nº 229 da SBDI-1 - inserida em 20.06.2001)
De qualquer modo, independentemente da desnecessidade de tais procedimentos, e no caso de não haver disciplina interna a respeito, o mais recomendável é que qualquer aplicação de medida disciplinar, ao menos a que importe em desligamento do quadro funcional, seja precedida de prévio procedimento administrativo disciplinar.
E esta recomendação cabe para que não haja risco que o empregado público, mesmo sabendo-se não detentor da estabilidade empregatícia, típica do funcionário estatutário, venha ficar ao sabor de desligamento do quadro laboral em decorrência de eventuais perseguições pessoais, vinganças ou quaisquer decisões movidas por mero subjetivismo e, muito menos, por sectarismo político ou partidário, como bem adverte CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO (Curso de Direito Administrativo (Malheiros, 19a edição, 2005, p. 205).
Ou seja, bem fará o administrador que, por meio dos mecanismos estatutários próprios, promova o estabelecimento, no âmbito da empresa pública e da sociedade de economia mista, das referidas regras, que disciplinariam as hipóteses e os casos em que caberia a instauração do processo administrativo disciplinar, bem como seu procedimento.
E, uma vez adotado este caminho, para que a opção tenha razão de ser, impõe-se que sejam observados determinados princípios.
3. DOS PRINCÍPIOS A SEREM OBSERVADOS NO PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR
Como é óbvio, na elaboração das normas procedimentais para o processo administrativo disciplinar devem ser observados os mandamentos do ordenamento jurídico vigente, especialmente os princípios constitucionais.
Em outras palavras:
Quem elaborar tais normas não pode ignorar que as empresas públicas e as sociedades de economia mista, apesar de submetidas ao regime jurídico das empresas privadas, no campo trabalhista, por força das disposições constitucionais sofrem influxos do direito público, dada a sua natureza mista.
Assim é necessário que os princípios constitucionais, que regem a ação da administração pública em geral e especialmente aqueles voltados para a atividade sancionadora, sejam rigorosamente observados.
Dentre estes princípios, destacam-se:
3.1 Princípio da ampla defesa e contraditório,
O princípio da ampla defesa e contraditório consta como garantia pétrea no art. 5°, inciso LV, da Constituição Federal.
Segundo este princípio, deve ser assegurado, no processo, a ampla produção de prova e contraposição a todas as acusações lançadas contra o acusado.
Vale dizer, exemplificativamente, o processado tem o direito de saber que tipo de acusação pesa contra si; tem o direito de se defender, de acompanhar toda a apuração, inclusive dos depoimentos; direito de apresentar suas provas e de conhecer as provas que estão sendo produzidas contra si;
3.2 princípio da acessibilidade aos elementos do processo.
O interessado deve ter acesso a toda a documentação, dela podendo requerer cópia parcial ou completa; (art. 5°, XXIV, b, da Constituição Federal);
3.3 princípio da gratuidade.
Por tal princípio, em nada o procedimento administrativo disciplinar pode implicar ônus para o administrativo. Por exemplo, nada pode lhe ser cobrado para interpor recursos, obter cópia de documentos etc; (art. 5°, XXIV, b, da Constituição Federal);
3.4 direito a ser assessorado e representado.
O administrado tem o direito de ser assessorado e representado por advogado, em todas as fases do procedimento, comprovando-se mediante procuração (art. 5°, Lei 8.906/94 – Estatuto da OAB);
3.5 princípio da equivalência ou superioridade funcional:
O processo disciplinar deve ser conduzido por comissão composta de servidores ou empregados públicos estáveis designados pela autoridade competente, que indicará, dentre eles, o seu presidente.
Os membros da Comissão devem ser ocupantes de cargo superior ou de mesmo nível ao do processado, para não ocorrer ofensa ao princípio da equivalência de cargos e ao da competência de autoridade processante.
É o que deflui do art. 5°, LIII, Constituição Federal.
3.6 princípio da vedação ao juízo de exceção (garantia do juízo natural)
O art. 5°, XXXVII, da Constituição Federal diz que “não haverá juízo ou tribunal de exceção”.
Juízo ou tribunal de exceção são aqueles constituídos ex post facto ou ad personam, ou seja, depois de constituído o fato ou exclusivamente para processar determinada pessoa.
Salvo hipóteses constitucionalmente previstas, ninguém pode ser processado e julgado por juízo ou tribunal constituído depois de ocorrido o fato ou constituído exclusivamente para sua pessoa.
Este princípio se aplica tanto ao processo judicial quanto ao processo administrativo disciplinar (NELSON NERY JUNIOR, Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. Editora RT, 2a edição, 1995, p. 64)).
Assim sendo, é proibido que se instaurem Comissões de Inquérito ou Comissões de Processos Disciplinares depois de ocorrido o fato e para processar apenas determinado fato.
Vale dizer, a Administração deve instituir Comissões de Inquérito ou Comissões de Processos Disciplinar de forma permanente, observando-se o prazo de mandato de seus membros, que não poderão ser substituídos casuisticamente.
Segundo ensina o professor MARCUS VINICIUS CORRÊA BITTENCOURT “a determinação prévia dos servidores que poderão compor a Comissão de inquérito administrativo garante a imparcialidade do processamento do feito, bem como a independência do juízo em relação às partes envolvidas, para se alcançar um julgamento objetivo e sem qualquer prejulgamento” (Considerações sobre o processo administrativo disciplinar. Artigo, in http://www.escritorioonline.com)
No mesmo sentido é o entendimento de ROMEU BACELLAR FILHO para quem, “a comissão deve ser permanente, para evitar que o administrador, ao seu talante, selecione os membros integrantes com o intuito preconcebido de absolver ou punir” (BACELLAR FILHO, Romeu. Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005, p.88.)
Esta orientação tem sido adotada pelo Judiciário, conforme se vê da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:
PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. JUÍZO DESIGNADO. DISTRIBUIÇÃO. PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL.
I – Segundo o Princípio do Juiz Natural, não pode um tribunal ou um juízo ser criado ou designado para o julgamento de um caso concreto (art. 5º, incisos XXXVII e LIII da Lex Fundamentalis).
II – A inobservância do critério normativo de distribuição aleatória ofende o princípio do juiz natural, tornando nulo todos os atos praticados após a designação do juízo.
Habeas Corpus concedido, para anular o processo ab initio, incluindo a denúncia.
(HC 12403/SE, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 07.08.2001, DJ 10.09.2001 p. 402)
Em resumo, no caso das empresas públicas e sociedades de economia mista, quando existentes, as Comissões de Inquérito ou Comissões de Processo Administrativo Disciplinar deverão ser nomeada de forma permanente, por meio de Portaria assinada pela Direção, devidamente publicada na imprensa oficial (para se atender ao princípio da publicidade), com mandado pré-fixado, sendo que seus membros somente serão substituídos em caso de desligamento da empresa ou motivo de força maior, devidamente justificado.
Deverá se atentar ainda ao princípio da equivalência ou superioridade funcional, como acima explicitado.
4. FASES DO PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR
O Processo Administrativo Disciplinar deve ser dividido três fases, a instauração, o inquérito administrativo dividido em instrução, defesa e relatório, e o julgamento.
Se a Autoridade Administrativa não tiver elementos suficientes para instaurar o Processo Administrativo Disciplinar, quer por dúvidas quanto a autoria do fato ou por quanto a irregularidade ou não no serviço público procederá à sindicância, que de toda forma estará inclusa nos autos do processo administrativo disciplinar.
Para melhor compreensão, explicitamos uma a uma as fases:
4.1 Instauração
Ocorre com a publicação do ato que constitui a comissão que vai julgar o indigitado servidor. É de suma importância que a peça de início determine de forma clara e precisa o objeto da lide de forma a possibilitar a justificação plena do apontado;
4.2 Inquérito Administrativo
É dividido em três sub-fases: Instrução, Defesa e Relatório.
4.2.1 Instrução
Na instrução são apurados de forma precisa os fatos que deram origem ao Processo Administrativo Disciplinar. A Autoridade Administrativa tem nesta sub-fase do processo a oportunidade de produzir as provas de acusação;
4.2.2 Defesa
Garantida de forma expressa na nossa Constituição como princípio que deve reger todos os processos, quer em área federal, quer em área administrativa (CF/88, art. 5º, LV), como já foi ressaltado, o devido processo legal também deve ser seguido, sob pena de anulação do ato;
4.2.3.Relatório
É a apreciação célere e sucinta do que ocorreu no processo, não carrega efeito vinculativo para a Administração Pública, que pode não seguir as conclusões da comissão processante, desde que informe os motivos que levaram a tomar decisão divergente;
4.4 Julgamento
Com a decisão da Autoridade Administrativa acerca do objeto da lide em questão. Sobredita fase é vinculativa devendo se basear em elementos probatórios existentes, necessariamente, no processo administrativo disciplinar (acusação ou defesa e provas).
Independentemente do resultado, em se tratando de empresa pública ou sociedade de economia mista, cópia do processo administrativo deverá ser encaminhado ao Tribunal de Contas respectivo. E se o ilícito hipoteticamente praticado pelo servidor configurar crime será enviada cópia dos autos ao representante do Ministério Público.
5. CONCLUSÃO
Por último deve se lembrar, como bem aponta MARCUS VINICIUS CORRÊA BITTENCOURT (obra já citada) que o fim do procedimento administrativo disciplinar não é a punição, e sim permitir a apresentação de resposta pelo acusado a qualquer denúncia efetuada dentro da Administração Pública, esclarecimentos de fatos e, eventualmente, a aplicação de penalidade, uma vez verificada a responsabilidade administrativa de algum agente.
* Advogado em Joinville/SC, sócio da Teixeira Filho Advogados Associados, graduado pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, SP, em 1987. Atuação voltada para o Direito Empresarial, com ênfase em Direito Tributário e Penal-Tributário. Conselheiro Titular da Seccional de Santa Catarina da OAB (2007/2009). site: www.teixeirafilho.com.br
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