Direito Administrativo

Multa de trânsito. Condições para sua cobrança

Multa de trânsito. Condições para sua cobrança

 

 

Kiyoshi Harada*

 

 

Em boa hora foi promulgado o projeto de lei de autoria do nobre Vereador Farhat, que se converteu na Lei nº 13.344, de 6 de maio de 2002, a qual, impõe duas condições básicas, para cobrança, pelo Município de multas de trânsito provenientes de aparelhos eletrônicos (radares, semáforos, lombadas eletrônicas etc) sobre infrações cometidas por motoristas condutores de veículos automotores. São elas: apresentação de foto do veículo infrator, e a indicação de velocidade máxima permitida no local da infração, assim como seu enquadramento legal e os parâmetros técnicos compatíveis com o mesmo local. Nota-se, de pronto, a preocupação do legislador com o eventual abuso na cobrança de multas de trânsito.

    

Logo, vozes se levantaram contra essa lei de rara felicidade. A contrariedade, contudo, resulta mais do desconhecimento do direito como um todo, e menos, pelo mérito dessa lei, que é indiscutível.

    

É preciso acabar com os abusos e arbitrariedades; é preciso colocar um ponto final na industrialização de multas, impostas através de sofisticados instrumentos tecnológicos, importados a peso de ouro, que nem sempre funcionam com a devida precisão técnica, e muito menos são capazes de identificar situações em que o motorista comete infrações em estado de necessidade, por exemplo. É necessário não continuar investindo nas multas como um meio regular de abastecimento do Tesouro, com grave desvio de sua função repressora.

    

Essa lei, de iniciativa do nobre vereador Farhat, representa, de certa forma, uma maneira de minimizar os nefastos efeitos da ação arbitrária e descontrolada dos agentes públicos, responsáveis pela implantação de regras de trânsito na cidade. Esses agentes concentrados na empresa estatal, Companhia de Engenharia de Trânsito, vêm planejando o trânsito de uma das maiores cidades do planeta, de forma inadequada, irracional e absurdamente antieconômica, de sorte a desorientar, desnortear e irritar o motorista, que é obrigado a distanciar-se cada vez mais do local do destino pretendido, em razão das incríveis e inacreditáveis ‘quebradas’ impostas por esses agentes.

    

De fato, é comum implantação de mão única de direção, no mesmo sentido, em várias vias paralelas, somente encontrando alternativa de mão dupla ou de mão única, em sentido oposto, na quarta via pública, que às vezes, acaba em um beco sem saída. São usuais, também, a colocação de placas indicativas de velocidades, que variam de 90, 80, 70, 60, 50 e 40 Km/h, de forma intercalada, sem qualquer razão plausível para essas bruscas variações. Outrossim, semáforos existem, cujo tempo de mudança ocorre em fração de segundos; outros, com o tempo exageradamente demorado, estimulando a ação dos assaltantes. Parece inacreditável, mas, eles existem, e não são poucos!

    

Como as constantes e permanentes alterações nas vias de trânsito não são reguladas por lei, ficando à discrição dos agentes da CET, torna-se dificílimo a fiscalização e o controle dos atos praticados por esses agentes, que vêm criando transtornos aos motoristas, colhidos que são por uma espécie de malhas espalhadas em diversos pontos da cidade, não se sabe com que propósito, sendo certo que que não irão contribuir para melhorar o fluxo viário. Já é tempo de descobrir que em um trânsito emperrado, como o nosso, que deixou de investir no transporte metroviário, preferível a linha reta para abreviar distâncias. Não faz menor sentido obrigar a dar voltas quilométricas, por vias igualmente congestionadas, pois isso só poderia contribuir para aumentar o consumo de combustível, elevar o índice de poluição ambiental e causar maior perda de tempo dos trabalhadores em geral. Da mesma forma, não teria sentido algum promover, por exemplo, o alargamento de determinada via pública a alguns metros antes da entrada em um túnel estreito, pois, isso certamente iria contribuir para alargar e apressar o engarrafamento. Entretanto, o que é elementar para o cidadão comum parece passar desapercebido pelos agentes do trânsito. Só para citar, conseguirem transformar em verdadeira balbúrdia o outrora tranqüilo e ordenado bairro da Vila Clementino, onde em uma seqüência de sete vias públicas paralelas (Av. Dr. Altino Arantes, R. XI de Junho, R. Loefgreen, Rua Pedro Taques, R. Borges Lagoa, R. Doutor Diogo de Farias e Rua Estado de Israel) apenas a Rua Borges Lagoa tem o sentido Ibirapuera/Vila Mariana; todas as demais vias são de mão única, no sentido Vila Mariana/Ibirapuera. Os moradores da última quadra da Rua Diogo de Farias, por exemplo, para ter acesso à Rua Borges Lagoa, a cinqüenta metros do local, são obrigados a deslocar-se até a Rua Sena Madureira, enfrentando o terrível engarrafamento da Rua Ascendino Reis, onde existe um ponto de ônibus regular logo na esquina com a R. Dr. Diogo de Faria, seguido, mais adiante, de um outro ‘ponto’ irregular para estacionamento de ônibus turísticos, devidamente autorizado pela CET, logo na faixa estreita que dá acesso à movimentada Rua Sena Madureira. A impressão que se tem é que estão tentando ‘ilhar’ os moradores da última quadra da R. Dr. Diogo de Faria. Pergunta-se, que forças estranhas impulsionam a ação da CET? O Prefeito Jânio Quadros, na década de 80, tentou extinguir essa empresa estatal; chegou a impedir a entrada de seus servidores no prédio dessa empresa, lançando mão de força policial. Foi vencido por forças estranhas e a próspera Companhia de Engenharia de Trânsito continua dirigindo os destinos dos paulistanos em matéria de trânsito.

    

Voltando ao aspecto jurídico da questão, os críticos dessa lei municipal sustentam sua inconstitucionalidade, baseada no precedente da lei similar no âmbito estadual, a Lei nº 10.553/2000, que também exigia a foto do veículo infrator como condição para cobrança da multa e que foi suspensa por decisão liminar da Corte Suprema (Adin nº 2.328-4, Rel. Min. Maurício Correia). Entendeu aquela Alta Corte de Justiça do País que somente a União poderia legislar sobre o trânsito, o que está absolutamente correto em face do disposto no art. 22, XI da CF. O que não está correto é confundir o procedimento de cobrança da multa – não importa se de trânsito, se de natureza tributária, ou se de inobservância das posturas municipais – com definição de infrações de trânsito. Estas sim, são de competência da União e já estão definidas na Lei nº 9.503/97, Código de Trânsito Brasileiro.

    

O procedimento para cobrança administrativa da multa ou de qualquer valor pecuniário, a qualquer título, é matéria que se insere no âmbito do Direito Administrativo, onde cada ente político tem a liberdade de editar normas próprias, respeitadas as normas gerais estabelecidas pela União, as quais, em sua maioria, já estão previstas no próprio texto constitucional, como o princípio do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa. Não há, evidentemente, entre as normas gerais qualquer dispositivo vedando, direta ou indiretamente, a apresentação de foto de veículo infrator como condição para cobrança da multa de trânsito. Uma coisa é a definição de infração ou até mesmo da imposição de multa; outra coisa bem diversa é a forma de cobrança da multa imposta.

    

Se formos restringir a competência legislativa municipal só pela menção da palavra ‘trânsito’ no texto da lei, então, o Município sequer poderia por exemplo, dispor sobre o destino dos recursos financeiros provenientes da multa de trânsito. É preciso habituarmos a analisar a lei no contexto da ordem jurídica como um todo, ao invés de apegarmos cegamente ao que foi decidido neste ou naquele caso concreto, sem maiores cuidados. Enfim, é preciso acabar com o ‘copismo’ para não ficar fazendo eco ao que outros disseram, às vezes, equivocadamente. No caso do IPTU progressivo, por exemplo, a tese de que, por ser imposto de natureza real, não pode ser aplicado o princípio da capacidade contributiva vem sendo aceita com maior tranqüilidade como se fosse um dogma. Na verdade, essa tese não resiste ao rigor jurídico. Ela é equivocada por confundir objeto do imposto, que é a propriedade imobiliária, cujo valor não pode variar em função da qualidade pessoal de seu proprietário, com a obrigação tributária, que é pessoal, podendo e devendo ser graduada segundo a capacidade contributiva de seu proprietário, nos termos do mandamento constitucional, através de alíquotas progressivas em função do valor venal, objetivamente espelhado, relativamente a cada imóvel. Se o IPTU gravasse o imóvel, como estão alegando, o imóvel sem dono, deveria estar pagando imposto.

    

Concluindo, a lei municipal sob exame nada tem de inconstitucional. Só merece encômios por contribuir para livrar os motoristas das armadilhas montadas por agentes do trânsito. Pena que não tenha eficácia extraterritorial para inibir os abusos das concessionárias de estradas, que ocultam radares em vários pontos estratégicos, causando bruscas freadas com risco de provocar graves acidentes.

    

Eventual ação direta de inconstitucionalidade, se cabível for, só poderá ser aflorada perante o E. Tribunal de Justiça, que não está obrigado a encampar a equivocada decisão liminar do STF.

 

SP, 27.06.02.

 

 

* Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro. Presidente Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

 

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Como citar e referenciar este artigo:
HARADA, Kiyoshi. Multa de trânsito. Condições para sua cobrança. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-administrativo/multa-de-transito-condicoes-para-sua-cobranca/ Acesso em: 20 mai. 2025