Maria Emília Costa Carvalho[1]
Isabella Maria Costa Ericeira Chaves2
Marcos Vinicius Oliveira Martins3
RESUMO: Este artigo faz uma análise sobre a intervenção do Estado na propriedade, demonstrando sua crucial relevância com a função social e sua íntima relação com a propriedade, com enfoque na modalidade de desapropriação que possui como finalidade a reforma urbana.
Palavras-chave: Propriedade, Intervenção, Função Social, Estado, Reforma Urbana, Desapropriação.
ABSTRACT: This article analyzes the State’s intervention in the property, demonstrating its crucial relevance to the social function and its intimate relationship with property, with a focus on the modality of expropriation that has as its purpose urban reform.
Keywords: Property, Intervention, Social Function, State, Urban Reform, Expropriation.
1. INTRODUÇÃO
A evolução do Direito é um processo constante que está de acordo com as transformações sociais, econômicas e políticas, modificando a sociedade e em consequência seus paradigmas. A finalidade de tais mudanças busca atingir, de modo simplificado, melhorias sociais. No âmbito jurídico, o conceito de justiça está impregnado e é ele que se objetiva alcançar. Para atender tais desejos o Estado usa de seu poder e um dos meios pelo qual o faz é intervindo na propriedade individual do cidadão que não a utiliza segundo o que está disposto na lei. Apesar de algumas controversas sobre, este ato se torna um instrumento muito importante para compor a “justiça” esperada e não apenas no caráter social, mas ambiental, econômico, entre outros que serão abordados.
Com base nisso, é importante compreender como atua a função social e sua íntima relação com a propriedade, o porquê da necessidade de se obedecer essa função, em como contribui para o bem-estar social, principalmente no que diz respeito às áreas urbanas, visto que com essas transformações, se teve o surgimento das cidades, de forma desorganizada, sendo necessário a atuação do Direito Urbano, para regular a atividade urbanística e os problemas advindos. Portanto, é relevante compreender o alcance e a necessidade do Poder Público neste âmbito.
2. PROPRIEDADE PRIVADA
A noção de propriedade não é algo estático, pelo contrário, tem se modificado ao longo da história. O artigo 5° da Constituição assegura os direitos da propriedade privada, garantindo ao seu titular uma série de poderes como de usar, gozar, usufruir, dispor e reaver um bem. A propriedade é o mais amplo direito real, tendo o particular total poder sobre ela e sendo assim por muito tempo foi tida foi um direito natural. Thomas Hobbes em Leviatã diz que a primeira lei natural do homem é a autopreservação, porém defende o poder do Estado.
Como mencionado a Constituição Federal reconhece o Direito de Propriedade no art. 5°, inciso XXII, in verbis:
Art. 5° (…) XXII – É garantido o direito de propriedade.
E em seguida, a Constituição impõe uma limitação ao Direito de propriedade, no art. 5°, inciso XXIII:
Art. 5°(…) XXIII – a propriedade atenderá a sua função social.
Percebe-se que a propriedade privada foi alçada a condição de direito fundamental, só obtendo restrições depois do século XIX e perdendo seu caráter absoluto e perpétuo quando a Constituição de 1988 delimitou expressamente, a partir do artigo 182, algumas diretrizes que condicionaram a propriedade privada ao interesse coletivo. Logo, não é um direito ilimitado, pelo contrário, o Estado pode limitar, conciliando o âmbito público e privado.
2.1 A INTERVENÇÃO DO ESTADO NA PROPRIEDADE PRIVADA
A intervenção do Estado na propriedade visa à proteção dos interesses sociais, visto que se trata do bem geral da comunidade deve se dedicar a devida relevância, objetivando sempre o desenvolvimento. É importante destacar o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado neste assunto, dado o dever estatal de cumprir com sua conduta de prestar serviços e proteger a comunidade.
Deste modo, para cumprir o seu papel, o Estado pode ter que contornar alguns direitos fundamentais de caráter privativo visando o benefício público e disto surge a necessidade de sua intervenção. Portando, em caráter excepcional o Estado intervirá, restringindo o caráter absoluto, perpétuo e exclusivo da propriedade, tanto pelo pela supremacia pública, já mencionada, como também se houver a prática de ilegalidade.
Segundo Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo, a intervenção:
(…) pode ser entendida como a atividade estatal que tem por fim ajustar, conciliar o uso dessa propriedade particular com os interesses dessa propriedade particular com os interesses da coletividade. É o Estado, na defesa do interesse público, condicionando o uso da propriedade particular. (ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente, 2008, p. 701).
É um instrumento interessante e necessário, ambicionando como finalidade evitar que a propriedade seja utilizada apenas para fins egoísticos ou de forma ociosa, obrigando o proprietário a utilizá-la de maneira que atenda aos interesses da sociedade, em seu benefício.
3. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
A função social da propriedade, de maneira geral, só foi mencionada expressamente pela Constituição de 1967, no art. 157, III. No entanto, foi somente em 1988 que tratou sobre tanto quanto à propriedade rural?(art. 186), quanto ao cumprimento da função social pela propriedade urbana (art. 182, §2º).
O conceito de função social na propriedade é por vezes amplo, mas se consolidou como sendo a finalidade pela qual a propriedade é destinada, portanto, está diretamente ligado com a propriedade privada de maneira indissociável, sendo seu princípio norteador, visto que não basta ser mero titular, o particular deve se ater também à função, destino, ao fim em que seu bem pretende exercer.
Seu conceito está também ligado com o de bem-estar social, o qual segundo Hely Lopes:
O bem-estar social é o bem comum, o bem do povo em geral, expresso sob todas as formas de satisfação das necessidades comunitárias. Nele se incluem as exigências materiais e espirituais dos indivíduos coletivamente considerados; são as necessidades vitais da comunidade, dos grupos, das classes que compõem a sociedade. O bem-estar social é o escopo da justiça social a que se refere nossa Constituição (art. 170) e só pode ser alcançado através do desenvolvimento nacional. (MEIRELLES, Hely Lopes, 2009, p. 605).
Como já foi dito, sua previsão está presente na Constituição, sendo, portanto de ordem constitucional da mesma forma que a propriedade privada, positivado em 1998. Os requisitos para que a propriedade obedeça à sua função social estão dispostos:
Art.186 da CF/88 – A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:
I – Aproveitamento racional e adequado;
II – Utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
III – Observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV – Exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
O artigo 170 da Constituição Federal também dispõe sobre a função social, elencando para princípio da atividade econômica, visto que o Estado deve garantir, por exemplo, a distribuição de renda de forma mais igualitária, a economia fica associada com a função social, sendo esta um meio para aquela. Segundo este artigo:
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos uma existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
[…]
II – propriedade privada;
III– função social da propriedade;
A justiça social é alcançada com o bem-estar social já compreendido e para este objetivo que é permitido a intervenção estatal, não deixando de observar, porém, as garantias individuais. Dado o exposto, a propriedade não deve ficar em torno dos interesses particulares, mas sim o proprietário deve fazer com que ela seja econômica, útil e produtiva, atendendo o desenvolvimento da economia interna e externa e assim a própria justiça social, como cita o artigo. Caso não cumpra, usando de maneira irresponsável ou mesmo não utilizando, pode sofrer as penalidades que o Estado atribuir.
4. MODALIDADES DE INTERVENÇÃO
Segundo Carvalho Filho: são admitidas duas formas básicas de intervenção: a restritiva e a supressiva. Nas restritivas, o Estado apenas impõe limitações, devendo o particular se adequar às condições impostas sem, contudo, perder a posse da propriedade. Já na supressiva o particular perde a propriedade e seus direitos sobre, pois o Estado transfere coercitivamente o bem para si.
Estão previstas no ordenamento jurídico diversas modalidades, por meio das quais, o Estado se utilizará para intervir na propriedade objetivando que ela cumpra sua finalidade. São elas: a Desapropriação, o Confisco, Limitação Administrativa ou Poder de Polícia, a Servidão Administrativa/ Pública, Tombamento, Requisição Administrativa e a Ocupação Temporária/ Provisória.
Cada uma delas contribui para que o Poder público exerça sua função, sendo formas de intervenção com determinadas características. Este artigo, porém, dará foco para a desapropriação e dentro desta para a desapropriação para fins urbanísticos.
4.1 DESAPROPRIAÇÃO
É o procedimento administrativo onde o Poder público transfere a propriedade privada para a esfera pública, por necessidade, utilidade pública ou interesse social, através o pagamento de indenização prévia, justa e em dinheiro, segundo a Constituição. Dentre as modalidades, constitui a mais drástica. Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello:
À luz do Direito Positivo brasileiro, desapropriação se define como o procedimento através do qual o Poder Público, fundado em necessidade pública, utilidade pública ou interesse social, compulsoriamente despoja alguém de um bem certo, normalmente adquirindo-o para si, em caráter originário, mediante indenização prévia, justa e pagável em dinheiro, salvo no caso de certos imóveis urbanos ou rurais, em que, por estar em desacordo com a função social legalmente caracterizada para eles, a indenização far-se-á em títulos das dívidas públicas, resgatáveis em parcelas anuais e sucessivas, preservado seu valor real. (MELLO, 2001, p. 711-712)
Este processo possui duas fases: a declaratória e a executória. Também possui algumas divisões, podendo ser para fins de reforma agrária, desapropriação indireta, de bens públicos, confiscatória, por zona e a que será aprofundada aqui: para reforma urbana.
4.2 DESAPROPRIAÇÃO PARA FINS URBANÍSTICOS
Este assunto ganhou destaque com a Revolução Industrial, onde houve uma intensa migração das pessoas para o meio urbano, surgindo pequenas concentrações próximas às indústrias e consequentemente as cidades. Isto, porém, trouxe diversos problemas de ordem urbana, visto que não houve projeto ou planejando, acontecendo de forma aleatória e desorganizada. Aparece então a necessidade de regulamentação dessas áreas e assim o Direito surge como meio de realizar este fim.
Tais problemas sempre foram uma preocupação constante até os dias atuais, tais como: as péssimas condições de saneamento básico, falta de moradia, o desenvolvimento de favelas e palafitas, degradação do patrimônio histórico, entre outros. Apesar disso, o Direito durante todo o processo histórico, demorou para se manifestar de forma ativa sobre o assunto, só recebendo a devida atenção com a Constituição de 1988, que por sua vez, se posicionou dedicando inclusive um capítulo específico para a questão.
No que concerne ao Direito Urbano, desapropriação para este fim pode ser realizada se a propriedade se encontrar em área de planejamento urbano ou por não cumprir a função social imposta. Neste caso há a transferência do bem para o Poder público e ainda, em alguns casos, da esfera pública para outrem. De todo modo, o proprietário pode recorrer à indenização. A função social por sua vez, está atrelada com a politica delimitada pelo Plano Diretor Municipal.
A desapropriação de bens imóveis urbanos pode ser de dois tipos. O primeiro é o comum, em que consiste na desapropriação em face do interesse social e o outro é o de sanção que é aquela que penaliza o proprietário pelo não cumprimento de sua obrigação. A desapropriação para fins de reforma urbana foi prevista art. 182 da Carta Magna de 1988:
Art. 182 – A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.
§ 4º – É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento […]
Quanto à questão da competência, é de responsabilidade do Município, porém o Distrito Federal detém igual competência, visto o texto constitucional. Helly Lopes comentou sobre:
[…] competem à União o estabelecimento do?Plano Nacional de Urbanismo?e as imposições de?normas gerais de Urbanismo?que assegurem ao país a unidade de princípios essenciais à integração e ao desenvolvimento nacionais, dentro do regime federativo, mas que permitam a flexibilidade das normas de adaptação das normas de adaptação dos Estados-membros e Municípios para atendimento das peculiaridades regionais e locais, no uso de suas autonomias político-administrativas (MEIRELLES, Helly Lopes)
Esta desapropriação possui caráter sancionatório e com a edição do Estatuto da Cidade recebeu maior embasamento, assim disposto na Lei 10.257/2011, em seu art. 8º, no inciso III, § 4º, do art. 182 da Constituição Federal:
Art. 8º. Decorridos cinco anos de cobrança do IPTU progressivo sem que o proprietário tenha cumprido a obrigação de parcelamento, edificação ou utilização, o Município poderá proceder à desapropriação do imóvel, com pagamento em títulos da dívida pública.
Sabe-se que o proprietário não possui plenos poderes sobre seu bem, visto que está atrelado com a função social. Diante disto, o mesmo acontece com a área urbana, não podendo ser utilizada para mera especulação e contribuindo também com déficit habitacional. A desapropriação para este fim é, portanto, indispensável para o administrador.
Fazendo uma breve comparação do nosso ordenamento com alguns internacionais como: Espanha, Itália, França e Portugal, percebemos que esses países são bem mais avençados no tema, possuindo um regime jurídico próprio, enquanto no brasileiro ainda é algo que só recebeu alguma importância recentemente. Apesar disso, o Estatuto da Cidade já foi um grande avanço.
Depois que o bem é desapropriado, o Município tem cinco anos para adequar a propriedade à sua respectiva e real função. Caso não o faça, é tido como improbidade administrativa.
Como é caráter de sanção, para saber os casos em que elas serão utilizadas, a lei deverá fixar índices que indiquem o mínimo de aproveitamento descumprido, fixando condições e prazos para o proprietário resolver. Este deverá ser notificado pessoalmente pelo Poder público (que deve comprovar que o fez averbando a notificação no registro imobiliário). Depois o Município deve impor o IPTU progressivo e só com isso é que se procederá a “desapropriação-sanção”.
Quanto à indenização será com o ressarcimento do expropriado, sendo assim tenta se manter certo equilíbrio entre as esferas privada e pública, devendo ser justa. Helly Lopes também comenta sobre:
(…) que cobre não só o valor real e atual dos bens expropriados, à data do pagamento, como, também, os danos emergentes e os lucros cessantes do proprietário, decorrentes do despojamento do seu patrimônio. Se o bem produzia renda, essa renda há de ser computada no preço, porque não será justa a indenização que deixe qualquer desfalque na economia do expropriado. Tudo que compunha seu patrimônio e integrava sua receita há de ser reposto em pecúnia no momento da indenização; se o não for, admite pedido posterior, por ação direta, para complementar-se a justa indenização. Á qual inclui, portanto, o valor do bem, suas rendas, danos emergentes e lucros cessantes, além dos juros compensatórios (12% ao ano) e moratórios (6% ao ano), despesas judiciais, honorários advocatícios e correção monetária. (MEIRELLES, Helly Lopes, 2001, p. 585)
Porém, se tratando de desapropriação-sanção, há algumas especificidades.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este artigo pretendeu introduzir o conteúdo de intervenção estatal na propriedade, visto sua amplitude, deu enfoque para a desapropriação para fins urbanísticos. É possível aferir que a intervenção por meio da desapropriação é essencial para o bom planejamento urbano e seu desenvolvimento.
Foi visto a elementar importância do proprietário não dispor livremente do seu imóvel, estando sujeito à função social do bem que possui. Apesar de haver uma perda para o poder público, é demonstrado o porquê é preciso. Tais assuntos são basilares, sendo muito precisos em nosso saber, pois quando estudados nos ajudam a compreender o Poder público e sua atuação, bem como um pouco mais sobre a politica urbana.
O objetivo principal foi introduzir o tema e o analisar a luz da Constituição e de alguns doutrinadores, com uma breve menção de sua evolução. Foi apreendido o quanto a administração está presente em nosso cotidiano e como sua função é fundamental em todos os âmbitos, inclusive o urbano e não deve mais ser negligenciado.
REFERÊNCIAS
ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente. Direito Administrativo Descomplicado. 16ª E. – São Paulo: Editora Método, 2008, p. 701
CARVALHO FILHO, José Dos Santos – Manual de Direito Administrativo. 22. ed. – Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella – Direito Administrativo. 22. ed. – São Paulo: Atlas, 2009.
HOBBES, Thomas. Leviatã. (Tradução de João Paulo Monteiro, Maria Beatriz Nizza da Silva e Cláudia Berliner.) 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 12. ed., São Paulo: Malheiros, 2001.
Direito Administrativo Brasileiro. 35. ed., São Paulo: Malheiros, 2009.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 13ª ed. São Paulo: Malheiros, 2001.
1 Discente do curso de Direito da UEMA.
2 Discente do curso de Direito da UEMA.
3 Discente do curso de Direito da UEMA.