Fiscalização Municipal. Terceirização do serviço público
Kiyoshi Harada*
Estranho decreto municipal, o de nº 42.422 foi publicado no dia 20/9/2002, cujo art. 1º instituiu a fiscalização na modalidade eletrônica e informatizada para as diversas posturas, no âmbito da Administração Municipal, facultando a terceirização desse serviço, mediante certame licitatório.
O artigo 3º desse decreto dispensa a presença física de agente vistor ou outro técnico de fiscalização da Administração Municipal, quando a fiscalização for instrumentalizada por terceiros. E completa o art. 7º desse esdrúxulo decreto:
Art. 7º – Na fiscalização instrumentalizada por terceiros, a codificação necessária e específica a ser inserida nos autos de notificação, infração e multa será definida, de forma conjunta, pela Secretaria Municipal interessada e pela Companhia de Processamento de Dados do Município de São Paulo – PRODAM.
O Município de São Paulo, o maior da Federação Brasileira, não se sabe porquê razão, tem o hábito de tentar perpetrar violências contra o direito público. O interesse público municipal está sob tutela das normas de direito público. E esse interesse público não pode ser confundido com interesses de empresários do setor de prestação de serviços, ávidos para abocanhar fatia cada vez maior do serviço público. A prestação do serviço público, em sentido jurídico, não visa e nem pode objetivar arrecadação de receita pública. O ente político presta determinado serviço, porque é de sua atribuição prestar aquele serviço, na forma da Constituição Federal. A importância pecuniária, paga pelo destinatário do serviço público, surge como conseqüência da atuação específica e divisível do poder público. O móvel da atuação estatal é a prestação do serviço, e não o recebimento da taxa de serviço.
A atuação do poder público deve sempre ser timbrada pelos rígidos princípios constitucionais que regem a Administração Pública.
Prescreve o art. 37 da Constituição Federal:
Art. 37 – A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
O mais importante desses princípios é o da moralidade administrativa, sendo que os demais, inclusive, os da razoabilidade e da transparência, que estão implícitos, são meros desdobramentos daquele princípio basilar.
No passado, a Municipalidade paulistana tentou, sem sucesso, transferir o serviço público de cobrança da dívida ativa para o setor privado, alijando a competência institucional da Procuradoria-Geral do Município. Ao depois, tentou ceder a particulares, o crédito tributário, precedido de estranha licitação(1). Era a mesma tese da terceirização com outra roupagem. Por isso não prosperou.
Agora, pretende transferir, por via de decreto, sem nenhum respaldo legal, muito menos, jurídico-constitucional, o serviço público inerente à Administração Municipal. Essa terceirização desobedece, em bloco, todos os princípios insertos no art. 37 da CF, onde se avulta o princípio da moralidade, que não permite desvio de conduta do administrador público, nem mesmo para, eventualmente, beneficiar a Administração Pública, sob pena de praticar ato de improbidade administrativa, reprimível na forma da Lei nº 8.429/92.
A força cogente da norma legal repousa exatamente na atividade fiscalizatória do ente político, que editou a norma. Não há como aplicar a sanção legal sem prévia fiscalização, que é ato privativo da pessoa política.
Por isso, os ocupantes de cargos de vistor, de agente fiscal, de inspetor fiscal etc. exercem funções típicas de Estado, a exemplo dos exercentes de cargos de juiz, de promotor público, de procurador com poderes de representação judicial do poder público, de legislador etc.
Esses serviços, por serem essenciais, inerentes ao Estado, só podem ser desenvolvidos diretamente pelo Estado, por meio de seus agentes públicos.
Nem se argumente com o disposto no art. 175 da CF que prescreve:
Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob o regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.
A alternatividade, que decorre do texto constitucional em questão, nem sempre confere a liberdade de escolha ao Administrador. Além de a licitação depender de lei expressa que, no caso não existe, só podem ser licitados a execução de serviços públicos secundários do Estado, isto é, aqueles passíveis de prestação sob regime de direito privado, o que afasta os serviços públicos essenciais, regidos pelo direito público, como os serviços de segurança pública, de distribuição de justiça, de defesa do Estado etc. Não é por acaso que nunca se ouviu falar, por exemplo, em concessionário de negócios da justiça.
O decreto sob comento é, pois, flagrantemente inconstitucional na parte que faculta a terceirização do serviço de fiscalização no âmbito da Administração Municipal.
(1) A licitação só poderia ser para escolha do interessado que ofertar menor deságio, pois, não seria crível que alguém fosse comprar, por preço superior ao valor nominal, um crédito tributário, que a Prefeitura não estaria conseguindo cobrar.
SP, 24.09.02.
* Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro. Presidente Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.
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