Robson Zanetti*
A tradição no direito pátrio revela que a violação de uma regra de forma envolvendo a vontade do contratante acarreta a nulidade do contrato solene. A tradição também prega, seja pela lei, doutrina ou jurisprudência, que o instrumento particular quando não assinado por duas testemunhas, não se constitui em título executivo extrajudicial, porém, questionamos tanto um como outro caso, para demonstrar que o direito deve evoluir em sua aplicação, pois se a sanção da violação de uma regra formal é a nulidade do contrato ou a descaracterização do instrumento particular como título executivo extrajudicial, essas sanções são ineficazes frente as regras modernas de proteção do consentimento.
Ao se pronunciar automaticamente a nulidade do contrato ou descaracterizar o instrumento particular não assinado por duas testemunhas como título executivo extrajudicial somente pela violação de uma regra de forma, sem analisar o fundo, demonstra uma má análise da regra de forma por ela mesma, fonte da ineficácia da sanção.
Em 1804, na França, somente existiam quatro contratos solenes, os quais eram realizados por instrumento público e cujas finalidades eram diversas, como a proteção dos interesses dos particulares, dos terceiros ou da sociedade em seu conjunto. Essa idéia francesa da formalidade foi importada pelo Brasil do Código Civil de Napoleão. Atualmente, as regras de forma não respondem mais aos mesmos critérios do passado porque a forma é menos rigorosa e se contenta com o instrumento particular ( assim ocorre com o contrato de compra e venda de imóveis não registrado ), salvo raras exceções. Tendo a visão da forma mudado, a sanção também deveria a ela se adaptar. Isso demonstra que é um erro sancionar automaticamente a nulidade do contrato ou descaracterizar o instrumento particular não assinado por duas testemunhas como título executivo extrajudicial. Nesse último caso, as testemunhas podem assinar o instrumento particular posteriormente a sua assinatura pelos contratantes, então porque não cortar essa formalidade e permitir que a prova se realize oralmente? A sanção nesse último caso ao não aceitar esse instrumento como título executivo extrajudicial, parece ser repleta de inutilidade e perda de tempo, revelando-se como uma idolatria intransigível ao formalismo.
As formas contemporâneas estão centralizadas unicamente numa regra de fundo que é a da proteção do consentimento livre e claro dos contratantes, pois com o formalismo espera-se que os contratantes estejam protegidos dos vícios do consentimento ( erro, dolo e coação ) e se as regras formais são respeitadas, isso quer dizer que se presume que o consentimento foi realizado de forma livre e clara. Desta forma, a forma se revela estar a serviço das regras de fundo. Mesmo se a regra de forma é uma regra que se acresce as exigências de fundo para proteção do consentimento, não se pode esquecer que elas não são da mesma natureza: a regra de forma não é uma regra autônoma, independente das regras de fundo. Quando ela é exigida, a forma serve para reforçar uma das condições de fundo de maneira a assegurar sua existência e realidade e, para adaptar a sanção a fim de torná-la eficaz, é necessário identificar a finalidade da regra de forma.
Esta dependência da regra de forma ao fundo deve se manifestar também na hipótese do respeito da regra de forma e de sua violação.
Sendo a regra de forma respeitada, parece lógico presumir que um consentimento livre e claro foi realizado na medida onde finalidade da forma é a proteção do consentimento. Mas se, apesar do respeito da forma o fundo não foi respeitado, a regra de forma se extingue para permitir o ressurgimento do fundo. Assim, é permitido que se análise o fundo no contrato de compra e venda de um imóvel feito por instrumento público quando questionado por um contratante induzido
Parece um grande erro levar somente em conta a exigência da forma independente do fundo, isso certamente conduz a ineficácia da sanção. Assim ocorre quando se sanciona o contrato pela nulidade quando ele não preenche as formalidades exigidas e se retira a exigibilidade do instrumento particular não assinado por duas testemunhas sem que a questão de fundo seja analisada, analisando-se somente a forma. É um grande erro considerar a regra de forma independente do fundo porque a finalidade da forma é precisamente o respeito do fundo. Esta independência se compreenderia se a regra de forma tivesse por finalidade a proteção de um interesse geral ou de terceiros, pois a prova do consentimento livre e claro seria inoperante porque a finalidade da regra de forma não foi atingida.
As regras de forma têm atualmente o objetivo de proteger interesses privados, a proteção do consentimento do contratante que se julga mais fraco; por conseguinte, a satisfação do objetivo perseguido, a proteção do consentimento recai sobre a violação da forma. Se é coerente presumir o não respeito do fundo quando a forma é violada, é incoerente, frente a finalidade desta regra, que esta presunção seja irrefutável. O direito atualmente faz com que a forma absorva o fundo, ou seja, tudo depende do que está escrito e não do que é desejado e a forma acaba determinando o fundo porque a vontade formalmente declarada é considerada a vontade real, pouco importando a realidade do consentimento, mesmo se o contratante conseguisse provar que quem pede a nulidade, que se prevalece da violação formal, agiu em pleno conhecimento de causa porque a sanção seria a mesma, revelando assim sua ineficácia.
É este caráter irrefutável que contribui a ineficácia da nulidade porque ele impede que a pessoa possa demonstrar a ausência de impacto da violação da regra de forma sobre o contrato ou sobre o instrumento particular assinado por duas testemunhas; a nulidade do contrato ou a ineficácia do instrumento como título executivo extrajudicial será declarada sem que o juiz tenha tido os meios de se assegurar da adaptação da sanção as conseqüências da violação sobre o consentimento e sem mesmo se assegurar da existência de suas conseqüências. A sanção poderá então ser pronunciada sem restabelecer a situação que teria sido aquela desejada pela vítima se a regra tivesse sido respeitada porque o juiz não está em condições de verificar a eficácia da sanção. A escolha do caráter irrefutável dá um papel mais importante a regra de forma a fazendo mascarar sistematicamente o fundo do direito. Ora, para uma melhor eficácia da sanção, qualquer que ela seja, é necessário poder verificar se, atrás da regra de forma violada, a regra de fundo, aqui o consentimento claro, também foi violado, a fim de adaptar a sanção a realidade dos efeitos da violação.
Não estamos contestando o sistema da presunção, mas sim o contrário. A consideração de uma presunção da alteração do consentimento não é somente coerente frente a eficácia da regra, mas ela também contribui a eficácia da sanção evitando de fazer recair a carga da prova sobre a pessoa protegida. Mas, para que essa eficácia seja real, é necessário que esta presunção, necessária, seja simples, favorecendo assim o renascimento do fundo do direito pela forma. Assim, a prova contrária deveria ser admitida e o co-contratante, sobre quem recairia o ônus da prova, sempre teria a possibilidade de mudar a presunção demonstrando que existiu um consentimento claro.
* Advogado. Doctorat Droit Privé pela Université de Paris 1 Panthéon-Sorbonne. Corso Singolo
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