Conhecimento

Brasilidade fluída

Resumo: A difícil e paradoxal definição da brasilidade enquanto identidade nacional inspirou o presente texto no sentido de entendê-la, justifica-la e até repaginá-la com base em fatos históricos, sociais, culturais e antropológicos.

Palavras-Chave: Brasilidade. Identidade Nacional. Contemporâneo. Etnia. Cultura.

A fluidez da identidade nacional brasileira seja bastante contemporânea. Até mesmo afirmar a existência da nação brasileira é complexo se atentarmos para a diversidade presente nos aspectos geográficos, étnicos, jurídicos e até sociais e culturais.

Para definir a identidade brasileira como atributo do povo que vivem dentro do quadro formal de uma nação[1]. Parece ser paradoxal e desafiador. Exige-se para haver uma identidade nacional a existência de um consenso sobre certos valores, ou pelo menos alguma coincidência entre os consensos axiológicos vigentes. Desde o fim do século XIX que se duvida da coesão brasileira, ora por causa da diversidade e, hora pela específica diferença da formação brasileira.

Também para se construir consensos torna-se hercúleo pois é um país peculiar dotado de consideráveis e históricas desigualdades econômicas, sociais, culturais e políticas. Que se divide ainda em etnias e regiões.

O início do século XVIII e a herança iluminista da Revolução Francesa traduzida pelo tripé composto de igualdade, liberdade e fraternidade, trazem uma visão fundamental para a percepção da diferença, projetando um fim para essa discussão a partir da afirmativa que iguala todos os homens. Nesse mesmo século, cruza-se as teorias a respeito do Novo Mundo que vai desde o “Bom Selvagem” de Rousseau, da natureza imatura de Conde Buffon[2] e território degenerado de Pauw[3], o continente americano é, portanto, interpretado, pela primeira vez, a partir da ideia de inferioridade.

É complexo manter significação central, se o que presenciamos é a miríade de identidades locais, e que dificulta ainda mais que a instância de Estado Nacional é vista como mera instância de coação pura e não propriamente de agregação.

Há quem exclua simplesmente a existência de uma identidade nacional brasileiro. Se é que algum dia existiu outrora, esta teria se dissipado. É inegável haver certos traços etnoculturais comuns à maioria do brasileiro, embora que tais traços sejam diversos e devidamente modulados conforme as regiões, classes sociais e os níveis de instrução dos brasileiros.

Percebe-se mais nitidamente nas distinções praticadas entre a Casa e a Rua para se definir, o que seria o conteúdo de brasilidade[4]. Apesar de conotação ideológica e simplificação, em geral, acompanham tal noção. Porém, ainda não existe consenso nacional sobre os valores básicos. O que é observável é apenas a generalização e a reprise de certos fenômenos socioculturais[5] em todo o Brasil.

Na falta sólida de brasilidade, o que pode ser apontado como diferença entre Brasil e outras nações, está mesmo fadado a ser o folclore[6] e, hibridismo cultural e educacional que funciona como um rolo compressor do cosmopolitismo.

Outros estudiosos atacam a denúncia sobre a inexistência da identidade nacional seja insuficiente[7]. É inegável que o Discurso da Nação está ainda florescendo, em particular, na imprensa e na mídia em geral.

Alguns pensadores revelam uma certa ontologização[8] da Nação para justificar a contradição aparente, como entender a nação[9] e sua identidade, seja uma moeda corrente, se essa não corresponde fielmente ao que existe na realidade.

Os aspectos da contemporaneidade brasileira se apresentam como ilusória unidade e, tenta desmistificar ou desarticular as entidades da cultura brasileira e de uma brasilidade autêntica.

A invenção da Nação ou, pelo menos, a transformação dela como espaço político previamente circunscrito e fechado pelos acasos de uma história dinástica, militar, sociológica e dá impulso inicial ao Estado, para se igualar os aspectos.

A nação tem caráter abstrato mesmo diante do entusiasmo coletivo, não é sentida por seus membros, por exemplo, como uma comunidade local ou uma propriedade como a brasilidade. E, o consenso repousa direto sobre o contexto social imediato.

Segundo se sabe, a nação comporta uma esfera pública em torno da qual são disciplinados, hierarquizados ou reestruturados os interesses das várias categorias de participantes, a fim de se chegar à definição de um interesse geral.

Aliás, outra definição movediça tão sujeita à flutuação de relações de dominação, mas que, salvo nas ocasiões de decadência ou crise, busca a transformação dessas relações em relação de hegemonia, em virtude da própria necessidade que deu azo ao invento da Nação.

A identidade nacional e da sociedade como todo, se torna tão possível e palpável e, não sendo mero artefato ideológico. Já no plano cívico-político, o Brasil destoa do tipo ideal outorgado que ele mesmo fabrica, revela que se impõe num vácuo[10]. Afinal, a grande massa não rompeu certos bloqueios históricos[11] e de ter acesso numa ação coletiva autônoma.

A intensa proliferação das identidades[12] se baseia numa comunidade latino-americana, pois o discurso nacional não atende aos seus destinatários, e resta inútil.

De modo geral, a possibilidade de reduzir a Nação e a identidade nacional à ideologia da Nação ou da identidade nacional de fazer tudo caber dentro da ideologia “De” e do discurso “Sobre” constitui uma possibilidade-limite. Onde quer que haja uma certa continuidade e generalidade do discurso nacional, as coisas nunca podem alcançar esse limite, se bem que possam se aproximar dele.

A identidade nacional é um conceito marcado pela raça no sentido em que se considera que as diferenças humanas têm por base uma variação biológica que se manifesta em aspectos físicos diferentes. De acordo com esta concepção, as pessoas que estão em posição de provar que descendem da população original de um Estado-nação continuam a ter direitos e responsabilidades em relação ao governo da sua terra ancestral. Isto é, os Estados exportadores de emigrantes definem a nacionalidade pela linha da descendência e, não pela partilha de uma língua, de uma história política, de uma cultura ou de um território.

Concluímos que a identidade nacional brasileira é plúrima. E, as suas diversas dimensões, não caminham juntas. E, nem nos remetem ao mesmo espírito, à diferença do que acreditava Gilberto Freyre[13], para quem a tolerância mútua que reina na seara sociocultural das relações humanas nem podia fundamentar-se, como no liberalismo europeu, na competição de quem ganha é o melhor ou o mais astuto, mas, na conciliação harmoniosa das diferenças. Existe uma conciliação que dista da tolerância mútua e nem diminui o embate entre o mais forte e o menos forte.

Toda identidade humana implica não apenas em uma certa permanência através do tempo (o que Paul Ricoeur[14] denominou de mesmice), mas também num autorreferencial; a identidade deve se enunciar, se reiterar, para ser (“Eu sou eu mesmo”). Toda identidade inclui um autorreconhecimento. Essa reiteração, chamada também por Ricoeur de ipseidade. Finalmente, concluímos, que cada identidade interpreta a si própria, se discute, quer se modificar, se projeta de tal ou qual maneira rumo ao futuro. Esse patamar é o da auto-reflexividade, que constitui um redobramento da auto-referencialidade. Mutante por natureza e transcendental por sobrevivência.

Tratar de Nação e da identidade brasileira requer, ipso facto, desmistificar os estereótipos e os limites jurídicos criados para refutar ou para distinguir aqueles que fazem parte do mundo local e da ordem social. Nação é muito mais do que um frio conceito jurídico. É uma experiência, é um experimentar e viver em sociedade. Logo, não se podem criar categorias que levem à exclusão ou que “absolutizem” ou radicalizem o que é relativo.

Nota-se que infelizmente nosso país em pleno século XXI é dotado de extrema dicotomia, e profundamente marcado pela desigualdade social seja pela concentração de renda, seja pela falta de aplicação dos três princípios republicados firmados no mundo desde a Revolução francesa (liberdade, igualdade e fraternidade). Sempre existiu espécie de sonho de mudança acalentado seja pela movimentação política que fora iniciada com a campanha abolicionista (quando deu liberdade, mas não igualdade) e que cresceu até a República, quando se forjou a aura e a imagem de “Brasil: país do futuro”.

P.S. O título é uma franca inspiração em Bauman, na sua obra “Modernidade Líquida” que nos remete a nova época onde as relações sociais, econômicas e de produção são frágeis, fugazes e maleáveis tal como os líquidos. A modernidade líquida é totalmente oposta à modernidade sólida e ficou evidente na década de 1960, mas a sua semente estava no início do capitalismo industrial, durante a Revolução Industrial.

Referências:

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[1] Bobbio, Matteuci e Pasquino, por sua vez, salientam que a análise histórica do termo Nação permite perceber o verdadeiro paradoxo que a palavra encerra e consideram o fato de que, apesar de a palavra apresentar conteúdo emocional forte, seu conteúdo semântico ainda é confuso e incerto no dicionário político.

[2] Georges-Louis Leclerc (1707-1788), mais conhecido como Conde de Buffon, foi um dos intelectuais franceses mais proeminentes do século XVIII, ao lado de iluministas como Voltaire e Rousseau. Buffon servia-se do nascimento dos saberes que formaram a biologia moderna para fundamentar as suas teses.

Foi um dos intelectuais franceses mais proeminentes do século XVIII, ao lado de iluministas como Voltaire e Rousseau. Esse pensador desenvolveu teses, isto é, ideias baseadas em especulações e pesquisas, sobre a inferioridade e o caráter degenerado e débil (isto é, imperfeito e mal formado) dos animais e das pessoas que se desenvolveram fora do continente europeu. Buffon servia-se do nascimento dos saberes que formaram a biologia moderna para fundamentar as suas teses. Aos estudos da vida e da formação biológica dos seres, o conde de Buffon acrescentou o ponto de vista do eurocentrismo.

[3] Cornelius Franciscus de Pauw (1739-1799) foi um filósofo, geógrafo e diplomata holandês na corte de Frederico, o Grande da Prússia. De Pauw era da opinião (compartilhada com outros cientistas europeus da época) que os nativos americanos eram inferiores aos nativos do norte e oeste da Europa, e que essa inferioridade se devia em parte ao clima e à geografia americanos.

[4] Gilberto Freyre, em “Casa Grande e Senzala” (1933), registra a atração dos senhores de engenho pelas negras escravas e defende que a miscigenação, associada ao clima tropical, dava às mulheres uma exacerbada sensualidade. Jorge Amado, que continua sendo para os estrangeiros a porta de entrada da cultura brasileira, mostra em seus romances não somente a vida difícil do povo baiano, mas também a maioria dos chamados estereótipos relacionados ao povo brasileiro.

[5] O intelectual buscou no folclore formas expressivas capazes de provocar identificações e emoções genuínas, além de buscar sua ancestralidade, sua universalidade e a sua brasilidade. O avanço da civilização e do progresso ameaçava a decadência das manifestações artísticas folclóricas, sobreviventes apenas no Norte e no Nordeste. Mário de Andrade dizia que “da maneira como as coisas vão indo, a sentença é de morte”.

[6] Em sua Antologia do Folclore Brasileiro, Luís da Câmara Cascudo descreve Mário de Andrade como “grande estudioso do folclore e observador etnográfico insuperável”). Destaca os seus feitos em favor do folclore, entre eles a fundação do Departamento de Cultura com a Revista do Arquivo Municipal na prefeitura de São Paulo em 1934; a fundação da Sociedade de Etnografia e Folclore e a realização do primeiro Congresso de Língua Nacional Cantada em 1937.

[7] Reale considera que a Nação se apresenta como uma realidade subjetiva e objetiva, e é o elemento subjetivo que caracteriza a “consciência nacional”. E, por considerá-la uma realidade, o doutrinador chega à conclusão de que a Nação já contém em si, de forma latente, a personalidade estatal, personalidade essa que só se completa, que só se realiza por meio do ordenamento jurídico.

[8] Ontologia é uma palavra que tem origem na Grécia e possui o seu significado baseado nos termos ontos “ente” e logia “ciência do ser”. Ou seja, trata daquilo que é natural e da forma de viver dos entes. Ontologia faz referência ao conhecimento, existência e a realidade do ser.

[9] O dicionário jurídico de Maria Helena Diniz, ao tratar do termo Nação, apresenta as seguintes definições: “Ciência política. 1. Conjunto de pessoas que habitam o mesmo território, ligadas por afinidades culturais, linguísticas etc., seguem os mesmos costumes e obedecem às mesmas leis. 2. Povo de um país. 3. Sociedade organizada política e juridicamente que constituiu o Estado. 4. Governo de um país. 5. Sociedade politicamente organizada que tem consciência de sua própria unidade e controla, com soberania, seu território. 6. Território habitado por um povo, que tem autonomia política; país. 7. Pátria. 8. Raça. 9. Grupo social que constitui um Estado, pois dele emana o poder. 10. Substrato espiritual ou cultural em que se forma o Estado (Pinto Ferreira). 11. Substância humana do Estado (Carré de Malberg).12. É um meio composto de tantos elementos quantos os fatores capazes de influir na gênese de um indivíduo humano (Delos).

[10] Nação, identidade nacional e memória coletiva são conceitos atrelados entre si, já que comportam processos simbólicos coletivos determinados por relações de poder. Pierre Bourdieu define o poder simbólico como um poder de construção da realidade, o qual dá um sentido imediato ao mundo social. Lembrar ou esquecer em conjunto são estratégias de poder a favor de um sentimento de socialização de uma comunidade.

[11] Durante o Primeiro Reinado e Período Regencial não ocorreram progressos na construção da identidade nacional brasileira, a não ser a formação de forças repressoras militares para garantir a ordem latifundiária e escravocrata em todo o território. Mesmo ante os conflitos separatistas provinciais, representaram obstáculo à integridade territorial e também à coesão do país recém-independente. A Proclamação da República e o federalismo instituído na administração do Estado espelharam um fortalecimento de movimentos culturais regionais, principalmente os ligados à decadente aristocracia das regiões não afetadas pelo crescimento econômico de início do século XX. Entre as décadas de 1940 e 1960, a construção da identidade nacional passou a ser realizada levando em consideração a luta contra o que era considerado uma influência colonial, do que era vindo da Europa ou dos EUA. A partir da década de 1960, com a ditadura militar e sua centralização autoritária e repressiva, aliadas à difusão da televisão pelos domicílios, um novo momento de difusão de elementos culturais foi conhecido. As telenovelas passaram também a auxiliar na exposição de práticas sociais consideradas expoentes da brasilidade.

[12] O intelectual buscou no folclore formas expressivas capazes de provocar identificações e emoções genuínas, além de buscar sua ancestralidade, sua universalidade e a sua brasilidade. O avanço da civilização e do progresso ameaçava a decadência das manifestações artísticas folclóricas, sobreviventes apenas no Norte e no Nordeste. Mário de Andrade dizia que “da maneira como as coisas vão indo, a sentença é de morte”. “O ‘Macunaíma’, pela sua força e pela figura do personagem, acabou se tornando um símbolo da índole e do destino fracassado do brasileiro”, acrescenta ela, que comenta a atualidade da obra.

[13] No século XX: a chamada “brasilidade nordestina”. Obra de um autêntico intelectual orgânico da classe senhorial nordestina, cujo objetivo era garantir uma sobrevida, no plano da economia simbólico-cultural, para as oligarquias decadentes da nossa região, alijadas do poder pela chamada Revolução de 30. A ninguém melhor do que a Gilberto Freyre devem essas oligarquias uma verdadeira epopeia civilizatória, baseada na tese da miscigenação racial brasileira e do caráter mais ou menos idílico, cordial das relações entre negros e brancos no país.

[14] Parcours de la reconnaissance (2004), traduzida ao português como “Percurso do reconhecimento” (2006), foi a última obra publicada em vida por Ricoeur. A obra pode ser interpretada como um convite ao autorreconhecimento, de forma analítica e humilde. O filósofo estabelece, ainda, o percurso de passagem do reconhecimento como (a) noção epistemológica enquanto identificação, (b) passando pelo o reconhecimento enquanto capacidade antropológica de reconhecimento de si para, finalmente, chegar ao (c) reconhecimento como noção política.

Como citar e referenciar este artigo:
LEITE, Gisele. Brasilidade fluída. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2020. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/conhecimento-artigos/brasilidade-fluida/ Acesso em: 12 nov. 2024