Sumário: 1 Introdução. 2 O “Quadro de Referência” Crítico. 3 As drogas na mídia. 4 A criação do Pânico Moral. 5 Exemplos da influência do Pânico Moral na Política de Drogas. 5.1 A maconha como “porta de entrada” para outras drogas. 5.2 A fenilciclidina e o “criminoso perigoso”. 5.3 O mito dos “bebês do crack”. 5.4 “Drogas de Design” como “Drogas de Estupro”. 5.5 A “explosão” da metanfetamina. 5.6 O caso do álcool. 6. Consequências do Pânico Moral na “Guerra às Drogas” nos Estados Unidos da América. 7 Conclusão.
Resumo: Este artigo trata da influência da mídia na formação da política de drogas, utilizando como parâmetro para avaliação os Estados Unidos da América. Nessa linha, problematiza-se o tema com as seguintes indagações: a mídia possui algum tipo de influência no modo como a política de drogas será cunhada pelo legislativo? Caso positivo, de que modo tal influência é exercida? Após análise dos quadros de referência pelos quais o estudo das drogas pode ser feito e do modo como as drogas são representadas na mídia estadunidense, demonstrar-se-á que a criação de um pânico moral com relação às drogas pela imprensa foi importante catalisador e alimentador da “Guerra às Drogas” vivida até hoje naquele país.
Palavras-chave: Mídia. Drogas. Pânico Moral.
1 Introdução.
A mídia é um amplo grupo de empresas que inclui televisão, revistas, livros, cinema, jornais, dados governamentais, a internet e etc.
Atualmente, ninguém pode colocar em dúvidas a importância democrática das informações obtidas através da mídia; tanto assim o é que a liberdade de imprensa, no Brasil, possui raiz constitucional (art. 220 da Constituição de 1988).
Contudo, não é menos verdadeiro que, devido à maciça exposição dos consumidores, a mídia também acaba, muitas vezes, atuando como “formadores de opinião”, já que ela influencia sobremaneira o modo como as pessoas observam e avaliam os fatos sociais, dos quais muitas vezes somente tem conhecimento justamente por meio da notícia que consomem.
O presente texto, assim, objetiva a analisar a representação das drogas e de seus usuários nas mídias de notícia historicamente mais representativas – televisão e jornais – e o modo como essa representação influenciou a formulação da política de drogas nos Estados Unidos da América, país escolhido como parâmetro em razão da grande variedade de estudos e pesquisas disponíveis sobre o tema.
Ao final, cumpre dizer que o presente artigo faz uma revisão de literatura com base no método de abordagem dedutivo, utiliza como técnica de coleta de dados a pesquisa bibliográfica a partir de documentos como livros, manuais, códigos e periódicos, que, proporcionando um novo enfoque sobre o tema, serviram de base para as conclusões do autor.
2 O “Quadro de Referência” Crítico.
“Quadros de Referência” são formas de se olhar para os fenômenos que orientam nossas percepções acerca de determinados fatos sociais, como as drogas (ZILNEY, 2011, p. 3). Assim como a aparência de uma pintura pode mudar, a depender de como é enquadrada, isto também é verdade no que se refere a maneira pela qual se vê o fenômeno das drogas. Tomados em conjunto, os diferentes quadros de referência oferecem um quadro amplo de entendimento acerca desse complexo fenômeno. Três quadros de referência são tidos como dominantes ao se estudar as drogas, sendo eles: objetivo, subjetivo e crítico (ZILNEY, 2011, p. 3)[1].
O quadro de referência objetivo encara as drogas do ponto de vista de suas características materiais, ou seja, defina drogas como objetos com propriedades, ações e efeitos definidos. Trata-se de uma abordagem pragmática, que procura distinguir as drogas pelas suas propriedades físicas ou químicas e/ou ações, por meio de esquemas classificatórios que organizam as drogas em razão de suas características comuns. Os seus esquemas classificatórios mais largamente reconhecidos são: farmacológico, psicoativo e legal.
De acordo com o esquema classificatório farmacológico, drogas são “articles intended for use in the diagnosis, cure, mitigation, treatment, or prevention of diseases in man or other animals; and articles (other than food) intended to affect the structure or any function of the body of man or other animals” (Federal Food, Drug, and Cosmetic Act, 21 U.S.C. 321(g)(1)(B)(C))[2]. Tal esquema classifica as drogas pelo seu propósito geral e pelos nomes químico, genérico e de comercial, p. ex.: antibiótico (categoria), penicilina (nome químico), amoxicilina (nome genérico) e Amoxil, Larotid, Trimox e Wymox (nomes comerciais). A mais popular fonte de informação farmacológica de drogas, nos EUA, é a The United States Pharmacopoeia (USP).
Já o esquema classificatório psicoativo diz respeito às drogas que atingem o sistema nervoso ou o eixo cérebro-espinhal para afetar a mente, humor e/ou comportamento. A classificação mais aceita divide tais drogas entre depressores/sedativos (como o álcool e tranquilizantes), estimulantes (como a cafeína, nicotina e cocaína), narcóticos (como o ópio, morfina e heroína), alucinógenos/psicodélicos (como o LSD, PCP e inalantes), canabióides (como a maconha e o haxixe) e antidepressivos (como o Prozac, Zoloft e Paxil).
Por sua vez, o esquema classificatório legal se preocupa com a licitude da produção, manufatura, exportação, importação, distribuição, venda, uso e posse da droga.
O quadro de referência subjetivo nos convida a questionar a natureza impositiva do quadro objetivo e sugere que a definição de drogas não pode ser apartada da interpretação e sentidos pessoais. Levanta questões como: as definições de droga refletem a sua verdadeira natureza ou simplesmente diferentes pontos de vista sobre elas? Se elas refletem pontos de vista, o ponto de vista de quem é refletido? Como esses sistemas influenciam o modo como as pessoas pensam sobre as drogas?
As respostas a tais questões passam pela importância de experiências pessoais, culturais e sociais. Como lembram Marshall Clinard e Robert Meier, “No combination of chemical properties distinguishes drugs from non-drugs; drugs basically share one characteristic: they have all been labeled as drugs.” (1998, p. 225).
Esse quadro de referência também afirma que as ações químicas das substâncias definidas como drogas e seus efeitos não podem ser tidos como universais, já que muitas pessoas experimentam os efeitos da droga subjetivamente (experimentam os efeitos que eles esperam ou acreditam que ocorrerão, o chamado “efeito placebo”).
Além disso, o quadro de referência subjetivo também sugere que o critério usado para definir e categorizar as drogas é afetado por atitudes, impressões e crenças. O álcool, p. ex., é categorizado como depressor no esquema classificatório psicoativo, mas legalmente é tratado de forma diferente que a maioria dos outros psicoativos (muitas pessoas sequer o consideram como uma droga). É necessário, pois, examinar a lógica utilizada para se formar as atitudes, impressões e crenças ao se definir e classificar certas substâncias como drogas, mas não outras.
Considere-se a maconha em comparação ao álcool, utilizando-se o esquema classificatório legal. A maconha apresenta um risco potencial para abuso ou dependência, menor valor terapêutico ou dano à sociedade que o álcool? A resposta é negativa, como se verá infra. Ainda assim, é maconha é proibida, a nível federal, nos EUA (21 U.S.C. 812 (b)(1)), enquanto o álcool não é classificado como substância controlada e, mesmo munidas de informações a respeito, é muito difícil para as pessoas se despirem de seus próprios (pre)juízos acerca de como classificar ambas as substâncias.
Por isso, o quadro de referência subjetivo afirma que a socialização – o processo pelo qual uma pessoa adquire suas atitudes, impressões e crenças acerca do mundo – desempenha um papel decisivo na forma como as pessoas pensam acerca de determinado fenômeno.
…through interaction, people internalize shared standards about what is appropriate and what is not, and in time these standards guide their thoughts and behavior almost intuitively. These standards become a lens through which people view or interpret the world, in this particular case the world of drugs, and it becomes difficult to separate internal and external realities. The subjective framework does not suggest that people toss or disregard their standards, but instead that they take account of their significance in defining, classifying, and labeling drugs.(ZILNEY, 2011, p. 10)
Todavia, o quadro referencial subjetivo deixa em aberto uma questão: a extensão na qual as pessoas realmente participam na definição social da droga. Melhor dizendo: quais os padrões que moldam a percepção social?
O quadro de referência crítico nos pede que pensemos analiticamente e em um contexto mais amplo que os quadros objetivo e subjetivo. Ele toma uma abordagem dialética ao observar o modo como as interações entre os quadros objetivo e subjetivo de definição, classificação e rotulação das drogas se transmuda em significados que se tornam compartilhados, tradicionais e institucionalizados em determinada sociedade.
Especificamente, observa o processo de como interpretações subjetivas acerca de drogas passam a ser entendidas como realidades objetivas pelos membros da sociedade. Desta feita, aponta para as condições estruturais e para as instituições históricas, sociais, culturais e econômicas que trabalham na modelagem de percepção das drogas. Erich Goode bem resume esse quadro de referência ao dizer que “a drug is something that has been defined by certain segments of the population as a drug.” (1999, p. 58).
Assim, vê-se que as assunções que subjazem o modo como as drogas são definidas, classificadas e rotuladas não são, necessariamente, criações individuais, mas sim de forças mais poderosas e dominantes, como motivos econômicos, morais e a políticos.
Hoje, a maior parte da população americana vê as drogas terapêuticas como “pílulas mágicas” e sua percepção dessas drogas é guiada pelos interesses econômicos da indústria farmacêutica, extraordinariamente poderosa naquele país[3]. Apenas como exemplo, os americanos, anualmente, gastam mais de trezentos milhões de dólares apenas com laxantes de venda livre (LISKA, 2004, p. 1-19).
A moral também exerce importante papel ao se determinar percepções e políticas normativas acerca das drogas psicoativas. Sobre o ponto, é magistral a observação de Howard Becker:
Wherever rules are created and applied, we should be alive to the possible presence of an enterprising individual or group. Their activities can properly be called “moral enterprise”, for what they are enterprising about is the creation of a new fragment of the moral constitution of society, its code of right and wrong.(1963, p. 145)
Exemplo claro disso é a 18ª Emenda à Constituição dos EUA, em 1919, que tornou ilícita a venda de álcool, até que ela foi revogada pela 21ª Emenda, em 1933. A época da “Proibição” (como ficou conhecida) foi o ápice de um movimento que se iniciou décadas antes e se espalhou por vasto setor da sociedade, originando uma onda de encontros, publicações e lobby político por grupos como a American Temperance Society, Women’s Christian Temperance Union e várias organizações religiosas. Na base de todas essas manifestações estava a campanha expondo as ameaças morais e os danos causados pelo álcool.
Ainda que a proibição do álcool não tenha durado muito tempo, vários movimentos subsequentes, capitaneado por grupos sociais similares ou “empresários morais” (para usar a linguagem de Becker), que se opuseram à legalidade de outras drogas com base nas mesmas preocupações morais, obtiveram mais sucesso, incluindo aqueles que rogaram a proibição da maconha (que, ironicamente, tinha seu consumo permitido durante a Proibição).
Por fim, é de se ver que existem também motivos políticos que permeiam a definição, classificação e rotulação das drogas, os quais frequentemente beneficiam alguns grupos em detrimento de outros. No início da Proibição, o fluxo de recém-chegados imigrantes irlandeses católicos apresentou diferentes práticas religiosas e culturais, especialmente aquelas relacionadas ao uso do álcool, que não foram bem-vistas pela já estabelecida comunidade protestante. Tais imigrantes também representavam uma ameaça para a ordem econômica, eis que se tratavam de grupo familiar empobrecido, frequentemente disposto a trabalhar por salários menores e que possuíam forte comprometimento com a pauta da Igreja Católica. Assim, muitos autores veem o movimento pela Proibição também como um movimento contra os imigrantes irlandeses (GUSFIELD, 1963, passim; LENDER; MARTIN, 1987, passim). O mesmo padrão pode ser encontrado com relação a outras drogas e outros grupos políticos, como os opiáceos, que foram banidos dos EUA “not because of health concerns as such, but because it was believed that the drugs stimulated coolies into working harder than non-smoking whites” (LATIMER; GOLDBERG, 1981, p. 208).
Através desse quadro de referência crítico é que o fenômeno das drogas será encarado neste artigo.
3 As drogas na mídia.
Como já se disse, atitudes acerca de quais drogas são aceitáveis e quais devem ser proibidas é uma construção social que mudou – e ainda muda – consideravelmente no decorrer dos tempos. Não obstante muitos países hoje terem leis que regulam o consumo do tabaco em público, antes de 1970 o tabaco era largamente usado e amplamente carente de regulamentação. Por que a sociedade abraça certas drogas (e.g., cafeína, nicotina, álcool, certas drogas prescritas) e se engaja em uma “guerra” contra outras (maconha, peiote, entre outros)?
One therapy drug such as Prozac becomes a vast commercial success, while another, nicknamed Ecstasy, is laden with sanctions just as severe as those surrounding heroin, though there is little evidence that Ecstasy is any more or less harmful than Prozac […] One is proscribed, while its near chemical relation is prescribed, and quite lavishly. (JENKINS, 1999, p. 3)
A mídia desempenha um decisivo papel no desenvolvimento das atitudes públicas em relação às drogas e seus usuários[4], especialmente ao borrar e modificar as fronteiras arbitrárias entre as drogas que consideramos medicinal e aquelas que consideramos recreativas (ZILNEY, 2011, p. 22)[5]. É atento a motivos deste jaez que Eugenio Raúl Zaffaroni elenca as agências de comunicação social em seu rol de agências do sistema penal (2002, p. 19).
A histeria circunjacente às drogas é uma característica que tem seguido a sociedade estadunidense por mais de duzentos anos, começando com o medo do álcool, no fim do século XVIII, e presente ainda nos dias atuais, com o temor acerca das drogas sintéticas (REINARMAN, 2008, p. 54-62). Ainda que com altos e baixos, desde 1960 a mídia tem consistentemente promovido o medo às drogas e seus usuários, o que é um tópico político bastante seguro e cômodo para elas, já que não há nenhum “empresário moral” ou grupo político suficientemente organizado e poderoso com uma agenda “pró-drogas” para contra-argumentar esta mensagem de pavor[6].
Contudo, do ponto de vista sociológico e político-criminal, deve-se indagar e pesquisar se não é essa postura sensacionalista da mídia, de criação de pânico, que tem guiado as políticas públicas em relação às drogas, em detrimento da racionalidade com o que o fenômeno deveria ser pensado. “Misinformed about who uses drugs, which drugs people abuse, and with what results, we waste enormous sums of money. […] Federal drug enforcement, a $6 million expense in the 1960s, passed the $1 billion mark in the mid-1980s during Ronald Reagan’s presidency and more than $17 billion during Bill Clinton’s” (GLASSNER, 1999, p. 131).
Tudo isso resultou em uma abordagem conservadora, baseada na política de law and order, ao problema das drogas: por décadas, a esmagadora maioria das pessoas tem aceitado a lei penal como a única solução apropriada a esse problema, ao mesmo tempo em que as informações repassadas pela mídia escondem problemas estruturais de pobreza, desemprego, ausência de saúde pública e educação, racismo e vários outros (ZILNEY, 2011, p. 22-23).
O compromisso da imprensa – cujos órgãos informativos se inscrevem, de regra, em grupos econômicos que exploram os bons negócios das telecomunicações – com o empreendimento neoliberal é a chave da compreensão dessa especial vinculação mídia – sistema penal, incondicionalmente legitimante […] Agora, na forma de uma deusa alada onipresente vemos uma criminalização que resolve problemas, que influencia a alma dos seres humanos para que eles pratiquem certas ações e se abstenham de outras […] A criminalização, assim entendida, é mais do que um ato de governo do príncipe no Estado mínimo: é muitas vezes o único ato de governo do qual dispõe ele para administrar, da maneira mais drástica, os próprios conflitos que criou. Prover mediante criminalização é quase a única medida de que o governante neoliberal dispõe […] Alguém se recorda da última vez […] em que a promulgação de uma lei criminalizante foi objeto de crítica pela imprensa? Também aqui pouco importa que a criminalização provedora seja uma falácia, uma inócua resposta simbólica, com efeitos reais, atirada a um problema real, com efeitos simbólicos: acreditar em bruxas costuma ser a primeira condição de eficiência da justiça criminal, como os inquisidores Kraemer e Sprenger sabiam muito bem. (BATISTA, 2002, 273-274)
Além disso, como nos lembra Radford: “News events don’t just come to be show on television on their own; there are many steps involving judgment, selection, and interpretation between the actual, objective event and the version of it that the audience views or reads.” (2003, p. 66). Nem tudo aquilo que é reportado na mídia é importante e nem ela reporta tudo aquilo que de fato o é. O público, entretanto, geralmente acredita que as histórias significativas são reportadas e, no que se refere a assuntos ligados ao crime – especialmente na relação entre droga e crime –, a maior parte das pessoas que se informa pela grande mídia crê que esta fornece informações suficientes para que elas entendam a complexa dinâmica que lhes é apresentada (ZILNEY, 2011, p. 23). Não é necessário lembrar que isso é absolutamente impossível.
A mídia agrupa em pequenas notícias questões que são extremamente complexas, às quais os cientistas (sociólogos, psicólogos, juristas, criminologistas, médicos, etc.) se debruçam durante anos a fio[7].
What the public is often left with is a misunderstanding of the complexities of drugs, yet a firm belief that we are entirely informed. Ask anyone you know their opinion about drugs and crime, and each and every one of them will have an opinion about the nature of the drugs-crime connection […], and likely an even stronger view about how to effectively “solve” this problem! (ZILNEY, 2011, p. 23)
Contudo, no que tais opiniões são baseadas, considerando que elas claramente não podem se basear nas escassíssimas informações com profundidade e contexto repassadas pela grande mídia?
A escassez de informações dotadas de um plano de fundo mais completo revela a inclinação que a mídia possui ao sensacionalismo. E isto não é mero acaso, mas sim parte da uma estratégia muito clara: ao alimentar o público com notícias sensacionalistas envolvendo celebridades, mortes grotescas, violência resultante de drogas, estupros contra crianças e outras tantas notícias que todos vemos cotidianamente, a população tende a se entreter e esquecer o que precisa ser feito a fim de se conseguir uma sociedade mais justa e solidária. Em outras palavras, a mídia serve à função de manter o controle social, ao prevenir as massas de demandarem por mudanças sociais significativas[8].
O uso pela mídia desse sensacionalismo e de vários prejuízos é imenso no que se refere às drogas: o número de casos é exagerado; o dano potencial e atual causado pela droga, seja no indivíduo ou na sociedade, é aumentado; o foco é, sempre, na hipótese da “porta de entrada” – ou seja, de que aqueles que utilizam drogas “leves”, ainda que de maneira infrequente, irão fatalmente utilizar, no futuro, drogas mais “pesadas”, como a cocaína; a sugestão de que o vício é quase imediato, assim que o indivíduo começa a se utilizar da substância ilícita, e a dificuldade de se superar o vício é superestimada; a ideia de que uma droga popular em certa localidade irá inevitavelmente se tornar popular por todo o território do país, apesar da total falta de evidências científicas nesse sentido; as soluções jurídico-penais, em especial a dura criminalização e repressão, são – erroneamente – apontadas como as únicas soluções efetivas para a solução dessa “epidemia” (ZILNEY, 2011, p. 23). Essas “previsões”, como era de se esperar, jamais são acompanhadas de dados empíricos que a confirmem, salvo a opinião de determinados “especialistas” previamente selecionados, com opiniões sempre concordes ao discurso criminológico da mídia (BATISTA, 2002, p. 277-278).
Tais ideias sensacionalistas e preconceituosas tem se espalhado na mentalidade da população por décadas a fio, criando “pânico moral” – em larga escala – injustificado no seio da sociedade.
4 A criação do Pânico Moral.
Devido principalmente à intensa cobertura de substâncias ilícitas devidamente selecionadas[9], o público estadunidense – e também o brasileiro – passou a acreditar, ao longo dos anos, que tem havido “epidemias” de uso de drogas. Os cidadãos norte-americanos passaram a temer negros sob o efeito de cocaína, usuários de fenilciclidina (mais conhecida como “pó de anjo” ou “poeira de lua”, e comumente abreviada como PCP) cometendo crimes bárbaros, mulheres usuárias de crack causando danos irreversíveis a seus bebês, uma proliferação de “drogas de estupro” e a “explosão” descontrolada no uso de metanfetamina.
Essa sensação orientada pelas notícias midiáticas têm sido, desde sempre, o combustível para uma abordagem conservadora, irracional e punitivista de se pensar a questão drogas, em razão do pânico moral que cria nos telespectadores-consumidores. O conceito de pânico moral foi cunhado pelo grande sociólogo Stanley Cohen como:
A condition, episode, a person or group of persons emerges to become defined as a threat to societal values and interests; its nature is presented in a stylized and stereotypical fashion by the mass media; the moral barricades are manned by editors, bishops, politicians and other right-thinking people; socially accredited experts pronounce their diagnoses and solutions; ways of coping are evolved or (more often) resorted to; the condition then disappears, submerges or deteriorates and becomes more visible. Sometimes the object of the panic is quite novel and at other times it is something which has been in existence long enough, but suddenly appears in the limelight. Sometimes the panic passes over and is forgotten, except in folklore and collective memory; at other times it has more serious and long-lasting repercussions and might produce such changes as those in legal and social policy or even in the way the society conceives itself.(2002, p. 1)
O conceito de Cohen deixa claro que existem alguns passos bem definidos na criação do pânico moral. Ele começa quando um conjunto de valores, comportamentos ou circunstâncias pessoais ou de um grupo determinado são percebidos como uma ameaça à ordem social. O próximo passo é a procura por manter tal percepção de ameaça por meio de “cruzadas morais”, frequentemente apoiadas pelo sensacionalismo midiático e impostas às políticas e práticas estatais. Então, depois de atingido seu objetivo, o pânico moral diminui ou acaba, deixando para trás, na maior parte das vezes, mudanças políticas e sociais consideráveis (KRINSKY, 2013, p. 4).
Joel Best descreve esquema similar a esse ao descrever a “história natural do processo de problemas sociais”, o qual consiste em seis etapas (2008, p. 18): a criação de alegações (claimsmaking), cobertura pela mídia (media coverage), reação pública (public reaction), formulação de políticas (policy-making), trabalho dos problemas sociais (social-problems work) e resultados políticos (policy outcomes).
O processo de criação do pânico moral é, de fato, bem claro. Primeiramente, certo grupo (ativistas, políticos, empresários, etc.) reconhece uma condição como problemática e sugere que algo deve ser feito para remediar esse problema, trabalhando para convencer outros grupos de que essa mudança por eles requerida é necessária (claimsmaking).
Assim que um grupo entende que um problema social merece atenção e mudança, a sua escolha natural é procurar a mídia, a fim de chegar à larga audiência e aumentar o número de adeptos à causa. É nesse estágio (media coverage) que a criação do pânico moral realmente começa, pois a mídia tem o poder de criar e remodelar o problema e de influenciar como a população perceberá os problemas sociais atuais (ZILNEY, 2011, p. 24).
O terceiro passo é a reação pública (public reaction), intimamente ligada e resultado da cobertura midiática (o segundo passo), já que a maior parte do público nada sabe acerca do problema das drogas, a não por aquilo que ouvem e veem na mídia. Isso confirma o que dito acima: a mídia pode ter – e geralmente tem – profundos e dramáticos efeitos na visão que o povo tem da realidade.
Uma forma bastante clara de se perceber isso é através de estudo realizado por David Fan, o qual examinou a relação entre a cobertura pela mídia impressa e a opinião pública sobre a “crise das drogas”, entre os anos de 1985 a 1994. Em certo período da pesquisa, apenas 1 a cada 20 americanos via as drogas como o mais importante problema social nos EUA; em outro período, 2 em cada 3 via as drogas como o mais importante problema social nos EUA. A variação nas opiniões foi explicada puramente pela cobertura que a mídia deu ao problema no decorrer dos anos (FAN, 1996, passim).
O próximo estágio é a formulação de políticas (policy-making). Se é verdade que são os políticos que criam e aprovam as leis, não é menos verdadeiro que são os eleitores que decidem o que é – e o que não é – importante para eles e, portanto, merecedor de atenção. “Policymakers respond to claimsmakers, media coverage, and public opinion.” (BEST, 2008, p. 21-22). A criação do pânico moral, neste estágio, atinge seu auge e todos os passos anteriores a esse se conectam: a maior parte da população norte-americana obtém suas informações exclusivamente com base nos noticiários e revistas (ou seja, na grande mídia), especialmente no que se refere a questões ligadas ao crime. A informação repassada pela mídia em relação a crimes e drogas – e à ligação entre ambos – é quase sempre marcada por uma abordagem de endurecimento da política, em detrimento a medidas de reabilitação ou tratamento. Portanto, se a mídia é sua principal fonte de informação acerca do problema das drogas e a abordagem dela é por uma política mais dura, a maior parte da população é sempre tendente a concordar com tal abordagem e eleger candidatos que suportem também essa visão (BEST, 2008, p. 22 e ss.).
A relação entre pânico moral, mídia e política resta bem clara no conceito de Charles Krisnky: “A moral panic may be defined as an episode, often triggered by alarming media stories and reinforced by reactive laws and public policy, of exaggerated or misdirected public concern, anxiety, fear, or anger over a perceived threat to social order.” (2013, p. 1).
Em tempos de pânico moral, relações entre drogas e crimes graves (como homicídios e estupros) são percebidas como “típicas” e indivíduos que se utilizam de substâncias ilícitas (ainda que “leves”, como a maconha) são vistos como se estivessem inevitavelmente em uma escalada para o uso severo de drogas e potencial violência. Tudo isso leva a uma percepção pública de que a proporção de crimes envolvendo drogas está em constante e vertiginoso crescimento. Adicionalmente, a mídia local tende a reportar eventos envolvendo uso de drogas na região (não importa o quão pequeno) e inseri-los num contexto de uso de drogas nacional, o que novamente leva à noção de aumento nesses crimes não se dá só localmente, como também em todo o país – o que, a seu turno, alimenta ainda mais o pânico moral. Ou então a mídia se foca em assuntos locais, mas os retrata como se fossem um problema nacional[10].
Como resultado, o público é levado a crer no aumento vertiginoso e incessante do uso de drogas e de crimes disso resultante, sensação essa que resulta, em verdade, mais do aumento da cobertura midiática que do real aumento da taxa do uso de drogas e/ou dos crimes a ele relacionado (ZILNEY, 2011, p. 25).
Throughout the twentieth century the media helped foment a series of drug scares, each magnifying drug menaces well beyond their objective dimensions. From the turn of the century into the 1920s, the yellow journalism of the Hearst newspaper, for example, offered a steady stream of ruin and redemption melodramas. These depicted one or another chemical villain, typically in the hands of a “dangerous class” or racial minority, as responsible for the end of Western civilization. (REINARMAN; DUSKIN, 1998, p. 325)
Não é difícil perceber, pois, que o pânico moral quanto a certas drogas específicas têm sido usado, no decorrer dos séculos, também para marginalizar certos grupos de indivíduos.
Uma característica indesejada do pânico moral, entretanto, é que ele tende a aumentar a criminalidade que visa a combater. Isso restou muito claro desde a análise de Jock Young, o primeiro sociólogo a se debruçar amplamente sobre o tema, ao revelar o problema da “amplificação desviante” (deviance amplification), que ocorre sempre que a cobertura sensacionalista da mídia inintencionalmente aumenta comportamentos similares (1971b, passim).
Stanley Cohen chegou a mesma conclusão de Young:
Much of this study will be devoted to understanding the role of the mass media in creating moral panics and folk devils. A potentially useful link between these two notions – and one that places central stress on the mass media – is the process of deviation amplification as described by [criminologista Leslie T.] Wilkins. The key variable in this attempt to understand how the societal reaction may in fact increase rather than decrease or keep in check the amount of deviance, is the nature of the information about deviance. (2002, p. 8).
A forma como isso se dá foi bem resumida por Philip Jenkins:
However unwittingly, the media ensure that a new drug gains a popularity it might never have acquired if it had simply been ignored. Instead, the substance is described in the most exaggerated terms, stressing its extremely powerful, pleasurable and enduring effects in a way that in other contexts would be seen as unabashed advertising. The act of defining a new drug of choice, an ultimate high, a hot drug, may lead potential users to ask themselves why they are not sufficiently fashionable to have experienced it. […] In each synthetic panic of the 1990s, the media have served as brilliantly successful public-relations workers, bringing local products to the national consciousness in a way that would excite huge professional envy if they were promoting soft drinks or fast food instead. (JENKINS, 1999, p. 18).
De toda forma, utilizar o conceito de pânico moral para se discutir o fenômeno das drogas chama a atenção para a natureza exagerada e mal dirigida não só do medo social por ele criado, como também das políticas públicas que se tem guiado por dele. Os cidadãos respondem não pelo dano real da substância ilícita, mas sim pelo dano simbólico pintado pela mídia (ZILNEY, 2011, p. 24).
5 Exemplos da influência do Pânico Moral na Política de Drogas.
Estabelecidas as premissas teóricas de estudo do fenômeno da relação drogas vs. crime, por meio de um quadro crítico de referência, sustentou-se que a mídia exerce grande influência na política pública de controle das drogas, por meio da criação de pânico moral na população (e de seu indesejado efeito de amplificação das condutas desviantes).
Resta agora, então, indagar se a prática e a história confirmam as premissas teóricas que propusemos acima. Este tópico se debruçará sobre esta questão, buscando exemplos de como a mídia estadunidense tem conseguido, por meio do pânico moral, influenciar – negativamente – a “guerra às drogas” daquele país.
5.1 A maconha como “porta de entrada” para outras drogas.
Os americanos ficaram cientes da maconha e de seu uso no início de 1900, apesar de o fato dela existir há aproximadamente sete mil anos. O uso da substância logo foi associado a imigrantes mexicanos e africanos, bem como às populações latinas, de forma que o governo americano não tardou a ver a maconha como hábito negativo e perigoso (ZILNEY, 2011, p. 26).
Em resposta a isso, o Federal Bureau of Narcotics (FBN) iniciou seus trabalhos com as legislaturas locais a fim de criar leis criminalizando o uso da cannabis. Isso aconteceu, em parte, devido à invenção de estatísticas pelo FBN, as quais foram devidamente repassadas à mídia a fim de sensasionalizar as alegações de danos associados ao uso da droga. Por volta de 1930, os estados criavam legislações contra a maconha, em resposta aos clamores gerados pelas reportagens divulgadas na mídia e, em 1937, todos os 48 estados já possuíam tais leis. “As the 1930s rolled on, fear of marijuana users and of marijuana itself increased, as did state marijuana control laws. In the mid-1930s, the Narcotics Bureau acted to support federal legislation, and in the spring of 1937 congressional hearings were held.” (KSIR, HART; RAY, 2009, p. 371).
Em 14 de abril de 1937, o Representative Robert L. Doughton (North Caroline) propôs o House Bill 6385, por meio do qual buscava criar um selo para o uso recreativo de maconha, fazendo incidir sobre tal selo uma taxa tão alta que faria o uso da droga se tornar financeiramente proibitivo. Apenas duas audiências foram realizadas pelo Congresso para discutir a proposta de Doughton. Uma delas foi realizada com veterinários que atestaram o fato de cachorros serem particularmente suscetíveis aos efeitos da maconha. A outra se realizou com Harry Anslinger, o então U.S. Comissioner of Narcotis, o qual afirmou que: “traffic in marihuana is increasing to such an extent that it has come to be the cause for the greatest nation concern” (apud FOX; ARMENTANO; TVERT, 2013, p. 51). Não é necessário dizer que tal alegação não foi acompanhada de qualquer evidência científica, e sim baseada nos mitos que ligam a violência ao uso de maconha (ZILNEY, 2011, p. 26). Essa foi a extensão do debate “científico” apresentado ao Congresso americano.
A campanha da mídia pela divulgação de histórias ligando a maconha à violência, a fim de dar suporte a sua proibição, foi intensa. Veja-se trecho de uma matéria publicada na revista American Maganize de 1937:
In Los Angeles, Calif., a youth was walking along a downtown street after inhaling a marijuana cigarette. For many addicts, merely a portion of a “reefer” is enough to induce intoxication. Suddenly, for no reason, he decided that someone had threatened to kill him and that his life at that very moment is in danger. Wildly he looked about him. The only person in sight was an aged boot-black. Drug-crazed nerve centers conjured the innocent old shoe-shiner into a destroying monster. Mad with fright, the addict hurried to his room and got a gun. He killed the old man, and then, later, babbled his grief over what had been wanton, uncontrolled murder. “I thought someone was after me”, he said. “That’s the only reason I did it. I had never seen the old fellow before. Something just told me to kill him!”. That’s marijuana! (apud KSIR; HART; RAY, 2009, p. 370)
Em verdade, durante esse período histórico, jornais de alta reputação publicavam diariamente reportagens de indivíduos “levados à loucura” pelo do consumo de maconha.
No decorrer das décadas, histórias sobre a “maconha da loucura” (weed of madness) declinaram e, em 1976, pesquisas indicavam que aproximadamente 52,8% de alunos de ensino médio eram usuárias de maconha. Esse número decaiu bastante nas últimas décadas e, em 1994, atingiu a marca de 38,2% (MORGAN; ZIMMER, 1996, p. 129). Em 2011, aproximadamente 14,5 milhões de pessoas nos EUA eram usuárias de maconha, o que fazia dela a terceira droga mais consumida do país, atrás do álcool e tabaco. Estudos recentes demonstram também que a média de usuários jovens tem caído na última década e que o número de usuários que fizeram uso da droga nos últimos 30 dias declinou 21% desde 2001 (ZILNEY, 2011, p. 123-124).
Não obstante a queda constante do número de usuários, agências do governo e seus veículos institucionais continuam a divulgar a mensagem de que a maconha é uma “porta de entrada” para outras drogas (gateway drug), mensagem essa iniciada em 1950.
Ainda hoje essa visão da maconha como porta de entrada para drogas mais “pesadas” é sustentada tanto pela mídia quanto pela sociedade. Um recente estudo de Lynskey, Heath, Bucholz, Slutske, Madden, Nelson, Statham e Martin, acompanhou 311 pares de gêmeos, onde um deles se utilizou de maconha e o outro não. Tal estudo apontou que jovens que utilizam maconha são de duas a cinco vezes mais propensos a avançar ao uso de drogas mais pesadas (2003, p. 427-433).
Contudo, a significativa maioria dos estudos realizados sobre o tema contraria tal hipótese. A University of Pittsburgh Medical Center realizou um estudo pelo período de 12 anos com 214 homens, que começaram o estudo em idade entre 10 e 12 anos. Quando os rapazes completaram 22 anos de idade, os pesquisadores dividiram os indivíduos em três grupos: aqueles que utilizaram somente álcool e tabaco, aqueles que iniciaram com álcool e tabaco e depois partiram para o uso de maconha (gateway sequence) e aqueles que utilizavam maconha antes do álcool e tabaco (reverse sequence). O estudo descobriu que quase um quarto da população estudada (28 garotos) que se utilizaram de drogas legais e ilegais exibiram o padrão reverso de usar maconha antes do álcool e tabaco, e que esses indivíduos não eram mais propensos a desenvolver desordem no uso de substâncias que os indivíduos que seguiram a sucessão tradicional de álcool e tabaco antes da maconha. A notícia publicada no site da Universidade, na internet, assim resume o resultado da pesquisa: “Marijuana is not a ‘gateway’ drug that predicts or eventually leads to substance abuse […]. Moreover, the study’s findings call into question the long-held belief that has shaped prevention efforts and governmental policy for six decades and caused many a parent to panic upon discovering a bag of pot in their child’s bedroom.”[11].
Reforçando a conclusão de tal estudo, o Office of National Drug Control Policy afirmou que “many if not most users of hard drugs did use marijuana at some point in their life, however, these individuals also smoked cigarettes, and used alcohol as well as caffeine”, o que também coloca em dúvida a hipótese de “porta de entrada” (ABADINSKY, 2008, p. 179).
Outras agências respeitáveis, como a Drug Policy Alliance Network, sustentam a tese de que a percepção da maconha como “porta de entrada” para outras drogas é um mito. Em seu site, a instituição afirma que “Most marijuana users never use any other illicit drug”. Sugerem, ainda, que essa percepção de droga de entrada é uma visão enganada pela popularidade da maconha: como a cannabis é a droga mais popular dos EUA, é muito provável que usuários de drogas mais pesadas tenham, no passado, sido usuários de maconha, pois eles já devem ter procurado as drogas mais facilmente acessíveis[12].
Essa foi a mesma conclusão a que chegou pesquisa conduzida pelo Institute of Medicine:
Patterns in progression of drug use from adolescence to adulthood are strikingly regular. Because it is the most widely used illicit drug, marijuana is predictably the first illicit drug most people encounter. Not surprisingly, most users of other illicit drugs have used marijuana first. In fact, most drug users begin with alcohol and nicotine before marijuana–usually before they are of legal age. In the sense that marijuana use typically precedes rather than follows initiation of other illicit drug use, it is indeed a “gateway” drug. But because underage smoking and alcohol use typically precede marijuana use, marijuana is not the most common, and is rarely the first, “gateway” to illicit drug use. There is no conclusive evidence that the drug effects of marijuana are causally linked to the subsequent abuse of other illicit drugs. (JOY; WATSON; BENSON JR., 1999, p. 6).
Percebe-se, pois, que a maioria dos usuários de drogas pesadas realmente foi usuário de maconha, mas isso se explica pelo fato de que a maconha é a droga mais fácil de ser encontrada nos EUA. Tanto é que a maior parte dos usuários de maconha nunca utilizaram outras drogas (MORGAN; ZIMMER, 1996, p. 141).
As marijuana use increased in the 1960s and 1970s, heroin use declined. And, when marijuana use declined in the 1980s, heroin use remained fairly stable. For the past 20 years, as marijuana use-rates fluctuated, the use of LSD hardly changed at all. Cocaine use increased in the early 1980s as marijuana use was declining. During the late 1980s, both marijuana and cocaine declined. During the last few years, cocaine use has continued to decline as marijuana use has increased slightly. (MORGAN; ZIMMER, 1996, p. 141)
Em 1994, menos de 16% dos alunos de ensino médio que usaram maconha tinham tentado usar cocaína. De fato, a proporção dos usuários de maconha que posteriormente fazem uso de cocaína tem continuadamente decrescido: de 33%, a taxa mais alta já registrada, obtida em 1986, atingiu seu nível mais baixo em 1994, 16% (MORGAN; ZIMMER, 1996, p. 141).
A negação desse mito também pode ser vista na Holanda, país onde pessoas com mais de 18 anos podem legalmente comprar e consumir maconha. Desde 1970, oficiais holandeses têm trabalhado para prevenir qualquer tipo de “porta de entrada” em razão do uso de maconha. Em verdade, eles consideram tal política um sucesso, eis que o aumento no uso de cannabis não foi acompanhado no aumento do uso de outras drogas. Na Holanda, a média de uso de maconha é de aproximadamente 13,6%; para efeito de comparação, a taxa nos EUA é de 38% (MORGAN; ZIMMER, 1997, passim). Além disso, enquanto aproximadamente 16% dos usuários de maconha nos EUA já haviam usado também cocaína, em 1994, na Holanda esse índice era de 1,8%. “Indeed, Holland’s policy of allowing marijuana to be purchased openly in government-regulated ‘coffee shops’ was designed specifically to separate young marijuana users from illegal markets where heroin and cocaine are sold.” (MORGAN; ZIMMER, 1996, p. 141).
Percebe-se, pois, que a despeito de todas as evidências científicas negando a hipótese da maconha funcionar como “porta de entrada” para drogas mais pesadas (papel que, em verdade, é desempenhado pelo álcool, como se verá infra), a mídia reiteradamente tem sustentado esse mito e o vendido ao público como se fosse verdade incontestável, de forma a alimentar o pânico moral em torno da droga e impedir mudanças políticas significativas. Nas palavras de Ksir, Hart e Ray, “There was very poor documentation of the relationship between marijuana and crime, which […] was stated as if it had been proved.” (2009, p. 370).
5.2 A fenilciclidina e o “criminoso perigoso”.
A fenilciclidina (PCP) foi a droga mais popular e mais largamente usada nos EUA entre 1970 e 1980. Essa substância chamou atenção dos jovens, tanto das classes sociais alta como baixa, e era associada a relatos sensacionalistas de conquistas e ligações sexuais.
O PCP não tardou a ganhar a atenção da mídia, particularmente em Washington, DC, onde o uso da droga era tido como a causa subjacente ao aumento de internações psiquiátricas em 1973 (ZILNEY, 2011, p. 28). Em 1978, o PCP passou a ser discutido em audiências no Congresso como o novo “problema nacional”. Em uma dessas audiências, o PCP foi descrito como “… a deadly, mind-crippling, mind-altering drug, with the ability to induce psychotic and schizophrenic behavior […] the King Cobra of all hallucinogens […] [it] should be better know as hellfire” (apud JENKINS, 1999, p. 63). Por volta de 1980, a mídia criou a associação entre o uso de PCP e a comunidade negra, tal qual ela já havia feito com o crack. Adicionalmente, gangues começavam a ganhar a atenção do país a medida em que se expandiam nas cidades americanas, o que também ajudou a inflamar a ligação entre PCP e violência.
Philip Jenkins enumera uma série de manchetes publicadas naquele período que bem ilustram o frenesi midiático em torno do PCP: “Schizoprenia Epidemic Here Linked to Youths”, publicada no Washington Post; “Angel Dust: The Devil Drug That Treatens Youth”, publicada na revista Woman’s Days; “Angel Death”, publicada no New York Times; “PCP: A Terror of a Drug”, publicada na revista Time (1999, p. 64).
Tais manchetes tentam demonstrar a natureza ameaçadora da droga e incutir medo na sociedade quanto a seu uso. Elas, entretanto, representam apenas uma pequena parte da extraordinária campanha da mídia que rodeou o PCP naqueles tempos. Certas notícias davam conta de que o PCP “libertava” as pessoas de suas restrições sexuais, o que as levava a cometer estupros; outras sugeriam que o PCP podia induzir a pessoas a cometer crimes violentos contra outros ou mesmo horripilantes automutilações; havia certas matérias que inclusive afirmavam que os usuários PCP possuíam força sobre-humana[13].
De fato, toda a literatura sociológica da época indica que a mídia foi a principal força dirigente por trás das representações equivocadas e exageradas que o público estadunidense formou no que se refere ao PCP. Análise da substância e frequência dos artigos midiáticos envolvendo a fenilciclidina revelou que:
… [t]he most repeated tale was that of self-removal of eyes which was cited 17 times during a three-year period. Different versions gave specific origins and identification. The victim was said to be a Baltimore college student, the son of a Massachusetts Congressman, a man in a mid-western city or a man from San Jose. (MORGAN; KAGAN, 1980, p. 197)
Em 1979, o PCP se tornou um tema popular e recorrente em obras ficcionais de televisão. Uma notável “contribuição” foi dada pelo popular programa 60 Minutes transmitido em 23 de outubro de 1977, no qual o jornalista Mike Wallace entrevistou Barry Braeske, que admitiu haver matado seus pais e avô. A polícia posteriormente confirmou que Barry estava sob influência do PCP quando cometeu o crime. Esse fato, na mídia, foi mostrado à exaustão como o motivo predominante para o cometimento do crime. Deixou-se de lado fatos importantes que negariam a predominância do PCP, como o fato de que Barry cometeu o crime visando a herança que receberia (JENKINS, 1999, p. 66). Esse exemplo demonstra com clareza a maneira enganosa com que a mídia plantou o mito da violência induzida pelo PCP, à época.
A mídia persistiu com esta relação PCP-violência durante os anos 1970 até o início dos anos 80, rapidamente reportando qualquer crime ou violência possivelmente ligado ao uso do PCP. “Whether the link was a myth or a fact was irrelevant. This linkage has since been etched in society’s mind and PCP users are forever associated with the commission of violence.” (ZILNEY, 2011, p. 29).
5.3 O mito dos “bebês do crack”.
O mito da epidemia de “bebês do crack” (crack-baby) se iniciou no meio dos anos de 1980. Rumores cercando bebês com problemas médicos devido ao uso de cocaína por suas mães deram origem ao mito, que rapidamente evoluiu até a versão de que os problemas médicos dos bebês se originaram do uso de crack por suas genitoras durante a gravidez.
Estudos preliminares foram conduzidos, comparando-se entre bebês nascidos de mães que eram sabidamente usuárias de crack e mães que não utilizaram drogas. A mídia cobriu extensamente tais estudos e rapidamente publicou seus resultados. Eis um exemplo:
Babies whose mothers were exposed to crack and powdered cocaine were, compared with those whose mother were not exposed to drugs during pregnancy, more likely to be premature, have a significantly lower weight, have smaller heads, suffer seizures, have genital and urinary tract abnormalities, suffer poor motor ability, have brain lesions, and exhibit behavioral aberrations, such as impulsivity, moodiness, and lower responsiveness […] The bright room is filled with baby misery; babies born too soon; babies weighing little more than a hardcover book; babies that look like wizened old men in the last stages of a terminal illness, wrinkled skin clinging bones; babies who do not cry because their mouths are full of tube. The reason is crack. (apud GOODE; BEN-YEHUDA, 1994, p. 216-217).
Além disso, as emissoras de televisão transmitiam filmagens de crianças gritando, alegadamente por abstinência de crack. Descobriu-se, posteriormente, que as emissoras utilizaram filmagens de bebês que estavam com abstinência de heroína e as transmitiram ao público norte-americano como “a epidemia de bebês do crack”. Médicos confirmaram que crianças não gritam quando em abstinência de crack ou cocaína, e sim dormem (ZILNEY, 2011, p. 29). Isso, sem embargo, não chocaria o público ou obteria sua atenção.
Resta fácil deduzir que tais reportagens ultrajaram a população – e o apelo emocional de bebês apenas aumentou a raiva por mães que se utilizavam de drogas durante a gravidez. Com toda a cobertura que a mídia trouxe a essa “epidemia”, formou-se a impressão de que bebês do crack eram uma enorme preocupação de saúde pública, mesmo que existente erros grosseiros nos estudos anteriormente realizados: houve total ausência de controle para outros fatores altamente influentes em recém-nascidos, como dieta pobre e uso de álcool e nicotina pelas mães; os testes não eram “cegos”, ou seja, os pesquisadores sabiam, de antemão, quais os bebês que eram filhos de mães usuárias de drogas; não foi realizado nenhum tipo de análise de acompanhamento no crescimento e saúde dos bebês, a significar que tais pesquisas não podiam fornecer nenhum prognóstico de longo prazo acerca da saúde dos infantes (LYMAN; POTTER, 2007, p. 76-78).
Adicionalmente, mídias como o New York Times e o Washington Post, consideradas críveis e verdadeiras pela esmagadora maioria do público, reportava preocupantes afirmações no fim dos anos 80, como a de que um em cada dez nascimentos resultava no nascimento de um bebê do crack (apud GOODE; BEN-YEHUDA, 1994, p. 217), obviamente, sem qualquer comprovação empírica nesse sentido.
Como resultado da campanha midiática vieram severas implicações: médicos passaram a ser legalmente obrigados a informar às autoridades pacientes usuárias de drogas; bebês foram retirados de suas mães e levados a abrigos estatais; o uso de droga durante a gestação se tornou crime, em alguns estados com pena máxima de 10 anos pelo uso de crack ou cocaína durante a gravidez. Tais políticas, além de extremamente agressivas, tiveram o efeito hoje notório de atingir mulheres negras e pobres viciadas em crack ou cocaína e que improvavelmente seriam aptas a realizar adequado acompanhamento pré-natal, devido a sua condição econômica que não lhes permitia ter plano de saúde (ZILNEY, 2011, p. 30). Além disso, a maior parte das usuárias de drogas simplesmente passou a não mais buscar acompanhamentos médicos durante a gravidez, pelo medo de serem delatadas pelo médico às autoridades.
Similarmente como fez com a maconha, a mídia rotineiramente associava o crack às minorias, e o público foi levado a acreditar na relação minoria-crack, o que é uma deturpação grosseira. “The crack demonized minorities. Half of all television news stories about drugs features blacks as users or sellers, while only 32 percent of the stories feature whites. This is out of all proportion to the know patterns of drug use.” (KAPPELER; POTTER, 2005, p. 197). Essa deturpação pela mídia foi decisiva nas estratégias de execução da lei, que mirou em caçar os usuários de crack e cocaína. Isso é evidente simplesmente ao se olhar as estatísticas de ocupantes da prisão: ainda hoje, a maioria condenada por crimes envolvendo drogas é afro-americana, apesar do fato de brancos e negros usarem drogas em taxa praticamente idêntica, como se verá infra.
A reforçar a insanidade da epidemia de bebês do crack, deve ser dito que, ao tempo em que a mídia e o governo iniciaram sua cruzada quixotesca, o uso do crack e da cocaína já havia estagnado nos EUA. O National Institute of Drug Abuse reportou que o uso de cocaína declinava há aproximadamente quatro anos antes do frenesi midiático (ZILNEY, 2011, p. 30). Não obstante isso, a mídia implantou sua campanha com força total: a NBC produziu por volta de 400 programas envolvendo o crack apenas nos últimos seis meses de 1986 e a “epidemia do crack” foi cinco vezes capa da Times e outras cinco da Newsweek (UNITED STATES SENTENCING COMMISSION, 1995, p. 122), p. ex.
A mídia e o governo gastaram considerável energia no mito do bebê do crack, não obstante o fato de que pesquisas não foram capazes de revelar nenhuma relação de causalidade entre o uso de cocaína pela mãe e o subdesenvolvimento fetal. Além disso, nenhum aumento em defeitos de nascimento em bebês de mães usuárias de cocaína foi detectado (ZILNEY, 2011, p. 30).
Ao que as pesquisas indicaram, o que levou os bebês do crack a nasceram com defeitos de nascimento foram fatorescomo a falta de acompanhamento pré-natal, uso de álcool e tabaco (drogas legalizadas), dieta pobre, hereditariedade e fatores ambientais, como a poluição. Ou seja, fatores que são independentes do uso de drogas, uso esse que pode ter contribuído para a formação dos defeitos, mas não sua causa exclusiva ou dominante, como a mídia fez a população acreditar.
5.5 “Drogas de Design” como “Drogas de Estupro”.
As chamadas “drogas de design”, como o fentanil, o MPTP, o GHB, o flunitrazepam (conhecido comercialmente como rohypnol) e o ecstasy ganharam popularidade pela primeira vez na metade da década de 1980. São drogas produzidas sinteticamente e com impacto poderoso sobre o organismo. Elas ficaram conhecidas como “drogas de design”, segundo Philip Jenkis, em razão de que se tornaram populares ao mesmo tempo em que as calças jeans de design também se tornaram populares (1999, p. 7, 78 e 240).
“It soon became apparent that there were many variants of designer drugs available and very little knowledge as to which were lethal […] this escalated hysteria concerning these substances which became labeled the ‘problem of the future‘” (JENKINS, 1999, p. 172). A histeria em torno das drogas de design atingiu ponto preocupante em 1985, devido, em grande parte, a cobertura midiática. Histórias envolvendo drogas de design foram transmitidas, p. ex., nos programas Nightly News (o principal telejornal diário e o líder de audiência nos EUA) e A Current Affair (uma espécie de telejornal em formato de tabloide) em horários nobres da NBC, sempre com foco em fatos extremos, resultantes do consumo de tais drogas (ZILNEY, 2011, p. 31).
Quase cinco anos depois, químicos desenvolveram uma droga chamada Ácido Gama-Hidroxibutírico (abreviado GHB, em razão de seu nome em inglês, Gamma-Hydroxybutyric Acid), a qual passou a ser chamada na mídia de “droga do estupro” (rape drug).
O interesse na droga surgiu após a morte da celebridade River Phoenix, em 31 de outubro de 1993:
Phoenix’s autopsy was inconclusive, and coroner s office is still awaiting toxicology report. Meanwhile, the media have pounced on the panicky call that River s brother Leaf made to 911: “I m thinking he had Valium or something.”. Newspaper resorts have suggested that the “or something” may be GHB, a synthetic steroid substitute that dissolves in water, speeds up the body s metabolism, produces feelings of euphoria -and occasionally triggers seizures. GHB is known to (apparently dyslexic) clubgoers as Grievous Bodily Harm. Phoenix’s hair had been cut short and dyed dark, which rendered him anonymous on the night of his death. Pedestrians reportedly walked past the actor as he convulsed on the pavement and a small circle of his family and friends attempted mouth to mouth resuscitation. Drugs are commonplace at Hollywood s nightclubs -particularly where the patrons are well heeled- and GHB was allegedly making the rounds at the Viper that evening. (GILES; FLEMING, 1993, p. 53)
Esta notícia fez crescer exponencialmente a procura pela droga (O’CONNEL; KAYE; PLOSAY III, 2000, p. 2.478-2.482) e, apesar de posteriormente ter-se demonstrado que Phoenix morreu devido à overdose de cocaína e morfina (MYDANS, 1993, p. 8), isso não afastou o GHB dos holofotes, como pode ser visto em reportagem publicada no ano de 1996:
Raves are to the ’90s what disco was to the ’70s — midnight-until-dawn dance-a-thons where the beat is techno. Apparently, it’s not enough excitement for some revelers. GHB, or liquid ecstasy, is sweeping the club and bar scene. It’s fairly easy to get and relatively cheap. But experts warn: It’s also very dangerous. […] GHB was sold in health food stores until federal officials pulled it from the shelves in 1990. Some users compare the drug to drinking alcohol. But it can be dangerous when mixed with alcohol — especially beer. […] At least two people have reportedly died after consuming GHB, and emergency rooms around the country have reported a rise in cases linked to the drug. “As one goes to higher doses, it’s very easy to get into trouble with it — coma, seizures. There are a couple of reports of respiratory arrest,” pharmacist Gant Galloway said. “People have almost died, and would have without prompt medical attention.” […] GHB is so new, experts say, that few are aware of its danger. And at the raves, it’s becoming the rage. (REED, 1996).
Várias reportagens da época indicavam que o mercado no qual essas drogas sintéticas apresentavam as mais altas demandas era entre jovens caucasianos. Enquanto o GHB e o rophynol se tornaram bastante populares no início da década de 1990, não havia notícias de que eles tenham sido usadas para cometimento de estupros; foi apenas em 1996 que as histórias de uso de tais drogas para esse fim começaram a surgir, e sua escalada se tornou vertiginosa após a revista Newsweek publicar reportagem intitulada “Roofies: The date-rape drug”, a qual terminava com o aviso: “… the roofie wave probably hasn’t even crested yet. So, experts say, quiz your kids. And don’t take your eyes off your drink.” (SELIGMAN; KING, 1996, p. 54). Vários jornais da grande mídia seguiram tal exemplo e publicaram manchetes amedrontadoras, como a do San Francisco Chronicle’s, “Drug Zaps Memory of Rape Victims / Sedative suspected in assault of girl, 15” (WILSON, 1996). A imensa cobertura da mídia ajudou a espalhar o pânico em relação ao rophynol e GHB, no que foi também ajudada por um novo fator do mundo moderno: as inúmeras correntes de e-mail trocadas pela internet.
Quando o público ficou ciente das drogas de design, elas ainda não eram classificadas pela legislação americana como ilegais. Apesar da legislação as considerando proibidas não tardar, assim como as políticas executivas para seu combate, as drogas continuaram a aparecer como populares na mídia. Enquanto números esmagadores de incidentes ocorrendo a droga tenham ocorrido apenas no estado da Florida, a mídia enganosamente exagerou suas coberturas para levar ao público a percepção de que tais eventos também acontecia próximo às suas casas, em todo o país (ZILNEY, 2011, p. 32).
Contudo, as drogas passaram a ser verdadeiramente consideradas um problema social nacional após “discutidas” no Oprah Winfrey Show, transmitido pela CBS em 6 de janeiro de 1996. O programa afirmou que “milhares de estupros” haviam ocorrido em razão de homens misturarem GHB em bebidas que mulheres viriam a ingerir. Como o leitor já deve supor, nenhuma documentação ou prova empírica dando suporte a esta afirmação foi apresentada. Isso, por óbvio, não impediu que o GHB e o rophynol ficassem marcados como “drogas de estupro” e que as pessoas que usavam ou produziam tais drogas fossem considerados criminosos sexuais (JENKINS, 1999, p. 180-181).
As drogas de design, após isso, continuaram a aparecer em diversos programas de televisão, como Beverly Hills 90210 (no episódio Cupid’s Arrow, transmitido nos EUA em 11 de fevereiro de 1998) e South Park (no episódio City on the Edge of Forever, transmitido nos EUA em 17 de junho de 1998), sempre atreladas a esse deslustre. “This stigma was exploited by the media even when there was no evidence of support.” (ZILNEY, 2011, p. 32).
Obviamente, lado a lado com tais notícias alarmantes sempre caminhavam os avisos e orientações direcionados às mulheres, especialmente adolescentes. Embora tais recomendações possam ser úteis, não se pode ignorar o pânico moral que causavam em toda a audiências, sobretudo a feminina. Essas táticas impositivas de medo foram seguidas pelas agências executivas, em especial pela Santa Monica Rape Treatment Center, que criou uma série de “regras” para as mulheres seguirem, a fim de não serem estupradas. (JENKINS, 1999, p. 180). Infelizmente, tais regras apenas ajudaram a criar uma percepção irreal nas mulheres, que passaram a se ver como vivendo em um estado de assédio sexual de homens predadores que podiam estar em qualquer tempo ou lugar, apenas esperando para misturar drogas em suas bebidas, estimulando ainda mais a paranoia já plantada.
5.6 A “explosão” da metanfetamina.
A metanfetamina (também conhecida por MA, meth, cristal, ice, Tina, etc.) foi produzida pela primeira vez por idos de 1960, por companhias farmacêuticas com o propósito médico de curar a obesidade, distúrbios de déficit atenção e narcolepsia. A droga logo ganhou popularidade e foi considerada proibida em 1971.
Por volta do fim da década de 1980, ela ressurgiu e, de acordo com o Drug Enforcement Administration (DEA[14]) o uso de MA superou o de heroína e cocaína em certas partes do território norte-americano, razão pela qual ganhou da mídia a alcunha de “crack dos anos noventa” (crack of the nineties), devido a seu baixo preço e fácil disponibilidade (JENKINS, 1999, p. 135). Ligar o uso de MA ao uso de crack desempenhou significativo papel em espalhar a histeria em torno da MA, induzindo o público a acreditar que a droga já era uma epidemia nacional, quando na verdade o uso pesado da MA era extremamente localizado e estava em crescimento apenas no Arizona, California, Hawaii, Oklahoma e algumas áreas do sudoeste (ZILNEY, 2011, p. 32).
Pela década de 1990, o uso de MA se espalhou pelo centro-oeste e foi transmitido pela imprensa como uma epidemia por volta de 1995, quando jornais e canais de televisão da grande mídia passaram a reportar histórias de abuso da droga que resultaram em destruições de famílias. Algumas matérias incluíam histórias em que mulheres abandonavam suas responsabilidades familiares após se tornarem viciadas em MA, enquanto outras mostravam famílias inteiras produzindo a droga em sua própria casa, inclusive com ajuda de crianças. A cobertura que a mídia deu à metanfetamina incluiu casos sérios de violência que eram mostrados como relacionados ao uso da droga, levando o público a acreditar que aqueles sob influência de MA era mais tendentes a violência. Reportagens usavam frases de efeito e dramatizações para assustar o público, tais como: “The answer [acerca do aumento na quantidade de crimes] is in the demonizing effects if the methamphetamine on the ‘normal’ residents of the heartland.” (JENKINS, 1999, p. 139).
O “problema da MA” também ganhou atenção após a exibição, pela rede CBS, de um programa do show 48 Hours onde foi mostrada filmagem de uma equipe policial invadindo um laboratório de MA, enquanto eram discutidos os potenciais riscos envolvendo um encontro com indivíduos sob o efeito da droga (JENKINS, 1999, p. 140). Os criminosos mostrados nas reportagens eram quase sempre homens brancos habitantes de zonas rurais, o que reforçava a imagem dos usuários de MA como “pobres lixos brancos” (poor withe trash): a imagem estereotipada era repetida, à exaustão, por uma multidão de fontes. Ironicamente, após vários anos de matérias sensacionalistas, as estatísticas mostraram que o problema da MA na metade da década de 1990 não era maior do que tinha sido nos dez anos anteriores. Ele era – e continuou sendo – um problema regional, primariamente das regiões oeste e sudoeste dos EUA (ZILNEY, 2011, p. 33).
Em razão do baixo custo de produção da droga (que, segundo o DEA, em apenas um dia podia chegar a 50 mil dólares, frente a investimento de apenas 2 mil) e ao fácil acesso aos ingredientes para sua fabricação, a mídia e o governo não tardaram a dizer ao público que se tratava de uma droga altamente viciante que, aliada a sua disponibilidade e baixo custo já apontados acima, certamente traria a próxima “explosão de drogas” dos anos noventa (JENKINS, 1999, p. 135).
O ápice da histeria em torno da MA se deu durante os debates no Congresso sobre a droga, quando a mídia investiu pesadamente em reportagens sobre os danos e riscos no uso a curto e longo prazo. Chegou-se a dizer que a droga iria “definir a década” (ZILNEY, 2011, p. 33).
Entretanto, a medida em que a mídia voltou sua atenção à invasão estadunidense ao Kuwait, a “epidemia de MA” foi rapidamente esquecida. Em verdade, estudo realizado em 2006 revelou que tal “epidemia” sequer existiu: apenas 2% da população americana era usuária da droga (KING, 2006).
Ironicamente, a histeria em volta da MA na década de 1990 acabou por ser bastante menos intensa que aquela a atingir o crack nos anos oitenta.
5.7 O caso do álcool.
Uma das grandes questões que se colocam em um quadro de referência crítico é a questão de porque certas drogas são consideradas ilegítimas, apesar da pouca periculosidade que apresentam e até mesmo de efeitos positivos já confirmados pela literatura médica, e outras são abraçadas pela sociedade de forma ampla, a despeito dos terríveis efeitos que provocam ao indivíduo e à sociedade.
What has to be explained is why certain groups or individuals select particular drugs, outlining the significance of drugtaking not only to them but in the context of work and leisure in modern industrial societies. This done, we must go further and explain why certain drugs are labelled legal and others are totally prohibited; we must concern ourselves as much with the reasons for the social reaction against particular forms of drugtaking as with the causes of drugtaking itself. (YOUNG, 1971a, p. 10).
O caso do álcool é, talvez, o melhor representante dessa questão, razão pela qual ele será comparado a uma droga proibida tanto nos EUA quanto no Brasil: a maconha.
Já se narrou, supra, as origens de consumo da cannabis nos EUA e que ela é a terceira droga mais consumida naquele país, atrás do álcool e nicotina. Resta, então, analisar os efeitos e consequências da maconha.
Primeiro, é de se dizer que a maconha não causa dependência física, embora seu uso prolongado possa resultar em pequena tolerância a seus efeitos cognitivos (KSIR; HART; RAY, 2009, p. 381). Algumas pesquisas sugerem que ela pode causar certa “dependência psicológica”: “the perceived need for the drug is believed to be responsible for compulsive use and dependence” (GOLDBERG, 2006, p. 246).
Segundo, é importante notar que a maconha também não produz efeito em caso de abstinência (KSIR; HART; RAY, 2009, p. 381).
Terceiro, nenhuma morte de ser humano jamais foi registrada por overdose de maconha (KSIR; HART; RAY, 2009, p. 382), de forma que sua dose letal até hoje foi estabelecida.
Veja-se, agora, o álcool. O álcool é um depressor do sistema nervoso central que é absorvido pelas membranas lipídicas. Ele perturba as reações químicas normais de tais membranas entrando em suas estruturas e alterando suas configurações, o que resulta em impulsos neurais ineficazes (ZILNEY, 2011, p. 86).
O seu consumo remonta a milhares de anos. As primeiras cervejas se originaram no Egito, entre 6000 a.C. e 5000 a.C. O Código de Hamurabi, criado aproximadamente em 1772 a.C., em seu art. 110, punia com a fogueira a mulher religiosa que ingerisse bebida alcoólica.
O álcool destilado foi criado na China por volta de 1000 a.C. e eventualmente chegaram à Europa por volta de 800 a.C., onde foi chamado por alguns de “água da vida”.
Ele era parte importante na cultura da América colonial, até que chegou ao ponto do consumo excessivo. Por volta de 1830, um adulto americano comum consumia cerca de 26 litros de álcool puro por ano (ZILNEY, 2011, p. 87). Em razão disso, o estado do Maine, em 1851, foi o primeiro a criar leis proibindo a venda do álcool. Esse movimento começou a ganhar força em 1874, com a formação do National Proihition Party e ganhou ainda mais popularidade com a criação da Anti-Saloon League em 1985, a qual apoiava apenas candidatos políticos que advogavam pela proibição da venda de bebidas alcoólicas.
Os esforços de tais organizações não foram em vão: em 1913, metade dos cidadãos americanos residiam em estados “secos” (dry states), ou seja, estados que proibiam a venda de álcool. Durante esse “Movimento de Temperança” (Temperance Movement, como ficou conhecida a cruzada contra o álcool), todos os problemas sociais foram considerados como culpa do álcool, levando a sua proibição nacional em 1920. Muitos empresários (Henry Ford, Andrew Carnegie, John D. Rockfeller, e.g.) apoiavam e patrocinavam o movimento, já que empregados sóbrios seriam mais produtivos para eles.
A proibição do álcool, contudo, resultou em seu contrabando e a formação de máfias que lucravam com o tráfico de bebidas (Al Capone seria o exemplo mais famoso). Assim, com o declínio da aceitação social, a Proibição foi revogada em 1933, quando os estados passaram a poder regular a venda do álcool e seu consumo. O Estado do Mississippi foi o último a repelir a proibição, somente o fazendo em 1966.
É chegada a hora de se analisar os efeitos e consequências do álcool.
Efeitos em curto prazo do álcool incluem aumento da urinação, calor e vermelhidão na pele, aumento do apetite, náusea, vômito, perda de memória recente total ou parcial, perda de visão, diminuição da sensibilidade a dor, do tempo de reação, perda de equilíbrio e severa perda de coordenação motora (ZILNEY, 2011, p. 89).
Efeitos de longo prazo são ainda mais preocupantes: dano cerebral, problemas no fígado, coração e sistema imunológico, desenvolvimento de câncer (boca, língua, faringe, laringe, esôfago, estômago, fígado, pulmão, pâncreas, cólon e reto) e, se consumido durante a gravidez, pode levar à síndrome alcoólica fetal (KSIR; HART; RAY, 2009, p. 216-222).
Recente pesquisa realizada na Inglaterra analisou 20 drogas com base em 16 critérios (9 relacionados aos danos que a droga causa ao indivíduo e 7 relacionados aos danos que causam em terceiros) e descobriu ser o álcool a droga mais perigosa para terceiros e mais perigosa na avaliação geral, atingindo 72 pontos, enquanto heroína e crack ocuparam o segundo e terceiro lugares, com 55 e 54 pontos, respectivamente (NUTT; KING; PHILIPS, 2010, p. 1.558-1.565).
Em se tratando de consequências do uso do álcool, é de se lembrar, primeiramente, indivíduos que abusam do álcool podem se tornar fisicamente dependentes: usuários habituais do álcool desenvolvem tolerância, o que significa que precisam aumentar a quantidade de álcool consumida para obter os efeitos desejados (ZILNEY, 2011, p. 88).
Segundo, o álcool causa abstinência se interrompido. Pesquisas médicas têm demonstrado que:
The physical dependence associated with prolonged heavy use of alcohol is revealed when alcohol intake is stopped. The abstinence syndrome that develops is medically more severe and more likely to cause death than withdrawal from opioid drugs. In untreated advanced cases, mortality can be as high as one in seven. (KSIR; HART; RAY, 2009, p. 222)
Terceiro, o consumo excessivo de álcool pode, per se, levar à morte. O consumo em excesso de álcool foi responsável pelo atendimento de 1,2 milhão de emergências e 2,7 milhões de visitas médicas nos EUA (BOUCHERY et. al., 2011, p. 516-524).
Mas esses números se referem apenas ao consumo excessivo de álcool per se. Se as consequências indiretas de tal consumo forem levadas em conta, o quadro é ainda mais assustador.
Os efeitos do álcool nos EUA são de longe piores que aqueles causados por todas as drogas ilícitas juntas. O uso de álcool causa 200.000 mortes por ano naquele país, enquanto todas as drogas ilícitas juntas causam em torno de 8.000 mortes. Adicionalmente, em torno de 36 milhões de americanos são afetados por alcoolismo familiar, e, consequentemente, vulneráveis aos efeitos psicossociais danosos dessa droga (ZILNEY, 2011, p. 88).
O uso de álcool também representa a causa de 40% de todas as admissões hospitalares na área psiquiátrica por ano nos EUA. Alcoólatras também apresentam taxa de suicídio de 6 a 15 vezes maior que a população geral, e a depressão alcoólica é a causa número um de suicídios na população norte-americana (LISKA, 2004, p. 221). Acredita-se que o álcool esteja relacionado a um terço de todos os suicídios cometidos (KSIR; HART; RAY, 2009, p. 216). Por fim, deve-se lembrar que o uso de álcool também é causa de 11.000 de lesões acidentais a cada ano (LISKA, 2004, p. 221).
Estatísticas mostram que 8,3 milhões de crianças (11,9% da população americana) vivam com pais que eram dependentes de drogas. Dessas, 7,3 milhões (10,3%) viviam com pais dependentes de álcool (ZILNEY, 2011, p. 197). A probabilidade de tais crianças serem vítimas de abusos físicos ou sexuais é três vezes maior e de serem negligenciadas pelos pais é quatro vezes maior, se comparadas àquelas cujos pais não são dependentes.
Crianças que cresceram com pais alcoólatras (conhecidas na psicologia como COA, sigla da palavra em inglês, children of alcoholics) normalmente acabam desenvolvendo vários problemas psicológicos quando adultos, em razão das reações que desenvolvem aos vícios dos pais. Tais crianças, ao crescerem, se transformam em Crianças de Alcoólatras Adultas (ACOA, sigla de Adult Children of Alcoholics), que são estatisticamente mais propensas a desenvolverem alcoolismo (ZILNEY, 2011, p. 203). Como se vê, o pai que abusa do álcool normalmente é filho de um pai que também o era, causando uma cadeia difícil de ser rompida (CALIFANO JR., 1999, p. 10).
Embora a idade legal para beber nos EUA seja 21 anos, mais de 4.300 mortes anuais de pessoas abaixo desta faixa etária em razão do consumo de álcool foram registradas entre 2006 e 2010 (CENTERS FOR DISEASE CONTROL AND PREVENTION, 2013). Pessoas entre 11 e 20 anos bebem 11% de todo o álcool consumido nos EUA (OFFICE OF JUVENILE JUSTICE AND DELINQUENCY PREVENTION, 2005, p. 3). Em 2010, houve em volta de 189.000 atendimentos emergenciais a pessoas menores de21 anos ligados ao álcool (SUBSTANCE ABUSE AND MENTAL HEALTH SERVICES ADMINISTRATION, 2012, p. 2).
Estudos também demonstram que abuso de álcool é a causa mais frequente de divórcios por motivos de uso de drogas (ZILNEY, 2011, p. 202).
Por fim, é de se ressaltar que existe vasta gama de pesquisas relacionando de modo consistente o álcool ao crime.
Kirby e Barry conduziram pesquisa entre alunos da 12ª série e revelaram que é o álcool – não a maconha – a “porta de entrada” para as drogas, levando ao uso de tabaco, maconha e outras drogas ilícitas. Estudantes que consumiam álcool exibiram probabilidade significativamente maior para usar outras drogas, sejam elas lícitas ou ilícitas (2012, p. 371-379).
Não é só.
The correlation between alcohol use and homicides is well known to police and judicial systems around the world. Based on several studies of police and court records, the proportion of murderers who had been drinking before the crime ranged from 36 percent in Baltimore to 70 percent in Sweden. Across all these studies, about 50 percent of the murder victims had been drinking. (KSIR; HART; RAY, 2009, p. 215)
Estudos sobre lesões corporais, violência doméstica, e abuso infantil também revelam a proximidade entre violência e álcool: “Heavier drinkers are more likely to engage in such behaviors, and self-reports by offenders indicate a high likelihood that they had been consuming alcohol before the violent act.” (KSIR; HART; RAY, 2009, p. 215-216).
Como se vê, trata-se de droga imensamente mais danosa, seja para o indivíduo, seja para a sociedade, que a maconha. Ela destrói a saúde do usuário, provoca dependência física, pode causar a sua morte se consumida em excesso, é responsável por aproximadamente 25 vezes mais mortes que todas as outras drogas ilícitas somadas e possui uma série de nefastos efeitos indiretos, principalmente a violência e a entrada para outras drogas. Por que, então, o álcool é considerado uma droga lícita (e muitos nem “droga” o consideram) e a maconha não o é?
A resposta é óbvia (mas o óbvio necessita ser dito): sua aceitação social.
… even in heaviest usage marijuana does not lead to heroin or any other drug. Many junkies smoked marijuana before they tried opiates, but few marijuana users take narcotics. Many junkies also drank alcohol heavily before they discovered heroin, sometimes at very young ages, yet no one argues that alcohol leads to heroin. The reason, of course, is that alcohol enjoys general social approval, while marijuana is a “bad” drug and so invites false attributes of causality. (WEIL; ROSEN, 1998, p. 120)
O fato é que o álcool é encarado pela sociedade como uma coisa normal e, até certo ponto, cultural. Muitas religiões se valem de bebidas alcoólicas em seus rituais e nos dias atuais é impossível se imaginar alguma reunião ou evento social em que o álcool não se faça presente.
Desde o início do século XX, com a queda da Temperança, não há histeria ou pânico moral fomentado pela mídia em desfavor do álcool. Mesmo quando notícias chocantes envolvendo o álcool são transmitidas (principalmente no contexto do acidente de trânsito), não há ligação ou imputação do resultado ao álcool, em si. A culpa é do indivíduo, não da droga: ele foi irresponsável ao beber e dirigir, mas não há quem se levante para, em razão do número alarmante de mortes decorrentes do abuso de álcool, proibir o consumo da droga. Isso resta muito claro na campanha intitulada “Não foi Acidente”, hoje atuante no Brasil, a qual requer a transformação em crime doloso qualquer homicídio ou lesão corporal praticada por motorista embriagado. Requer-se a punição do indivíduo, mas a proibição da droga que o afetava no momento do crime não é defendida em nenhum momento. As recentes emendas ao art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro seguiram o mesmo diapasão.
Veja-se que em todos os casos acima narrados, o noticiado aumento – exagerado, diga-se – do número de crimes foi motivo para a proibição do uso da droga. A culpa jamais é da irresponsabilidade do indivíduo que usou a droga: a droga em si é que deve ser ilícita.
A culpa dos defeitos de nascimento nos “bebês do crack” não é da mãe, que foi leviana ao usar a droga enquanto grávida; a culpa é do crack. Matérias mostram, à exaustão, deploráveis cenas de recém-nascidos em sofrimento insuportável e a droga é um perigo para a sociedade. Já a culpa nos casos de síndrome fetal alcoólica não é do álcool, e sim da mãe. O álcool, per se, não passa de um obter dictum.
Se o indivíduo mistura GHB e estupra uma mulher, o GHB é a “droga do estupro” e inúmeras reportagens são feitas clamando os perigos que ele representa para as mulheres. Se ele induz a mulher a ingerir grandes quantidades de álcool, certamente será alvo de reprovação geral e punido por isso, mas nenhuma voz sugerirá para dizer que o álcool deva ter seu consumo proibido porque foi usado para estuprar alguém.
Os usuários de PCPse envolvem em crimes violentos, então a mídia explora exageradamente relatos fantasiosos de homens com força sobre-humana, automutilações e assassinatos na família causados pelo PCP. Pesquisas que relacionam o álcool a crimes violentos não são sequer divulgadas ou, se o são, não atingem qualquer efeito: não há nenhuma notícia de política pública de proibição do álcool como forma de redução de crimes violentos.
Não se quer, com os dados e considerações acima apresentadas, pregar a proibição do álcool. O que se pretende demonstrar é apenas a ausência de racionalidade no trato jurídico e político-criminal das drogas, arbitrariamente permitidas e proibidas e seletivamente escolhidas pela mídia para reportagens exageradas e enganosas sobre seus efeitos e consequências.
Não é importante o fato de o álcool ser imensamente mais perigoso que a maconha. O que conta é que há muito não se vê qualquer tipo de pânico moral dirigido contra ele. Ao contrário, anúncios de bebidas alcoólicas são amplamente divulgados em revistas, televisões, internet, etc.; muitas delas inclusive patrocinam eventos sociais e culturais. Sua aceitação é ampla, pois não há interesse midiático e político em sua proibição. O pânico moral em torno do álcool jaz desde 1933. E, como esse texto pretendeu demonstrar, sem o pânico moral causado pela mídia, de forma a criar histeria social quanto a uma droga, não há mudança política alguma.
6. Consequências do Pânico Moral na “Guerra às Drogas” nos Estados Unidos da América.
Tudo que se disse acima, acerca do pânico moral criado pela mídia em relação a certas drogas específicas, seria mero deleite acadêmico se a histeria pública não se refletisse na política governamental de combate às drogas. É preciso, então, ver de que forma as notícias midiáticas contribuíram para a “guerra às drogas” lançada pelo governo americano.
A primeira guerra às drogas foi declarada em 1971, pelo presidente Richard Nixon (presidente dos EUA de 1969 a 1974), e foi seguida, dois anos depois, por uma das leis mais duras já criadas nos EUA em relação às drogas, cuja criação e aprovação foi encabeçada pelo governador do estado de New York, Nelson Rockefeller. A Rockefeller Drug Law criou sentenças mínimas obrigatórias, dirigidas a atingir grandes criminosos do mundo das drogas e baseadas unicamente na quantidade de drogas vendida ou em posse do infrator, sem quaisquer considerações acerca das circunstâncias pessoais do acusado ou de seu papel na “indústria das drogas”. O resultado de tal lei foi abjeto, como será explorado infra, bastando agora saber-se que vários acusados foram condenados mais severamente que assassinos ou estupradores. Nixon seguiu o exemplo da Lei de Rockefeller, com a criação de leis federais similares. Tais iniciativas iniciariam décadas de punições extremamente severas a usuários de drogas. Além disso, em 1983, 49 estados possuíam leis similares, com sentenças mínimas mandatórias. A Lei de Rockefeller foi o início de uma nova era de combate às drogas nos EUA: a punição passou a ser a fonte primária de combate.
O governo de Gerald Ford foi repleto de assuntos nacionais e internacionais de grande relevo (tais como desemprego, inflação, crise energética, etc.), de forma que as drogas não foram objeto de grande preocupação. Digno de nota foram os fatos de que os orçamentos federais vagarosamente passaram a privilegiar estratégias de persecução ao tratamento, na questão das drogas. Sem embargo, em 1975, o Domestic Council Task Force on Drug Abuse lançou cartilha intitulada White Paper on Drugs Abuse, onde se publicou achados interessantes: nem todas as drogas eram igualmente perigosas e nem todos os usuários eram igualmente destrutivos. Apesar de tais resultados, a mudança do foco de tratamento para persecução continuou.
No governo de Jimmy Carter (1977-1981), a National Commission on Marijuana and Drug Abuse, criada por Nixon, recomendou a descriminalização de pequenas quantidades de maconha para consumo próprio. Em 1978, onze estados assim o fizeram. Essa posição foi defendida pelo próprio presidente Carter, o qual acreditava que:
Penalties against possession of a drug should not be more damaging to an individual than the use of the drug itself; and where they are, they should be changed. Nowhere is this more clear than in the laws against possession of marijuana in private for personal use. We can, and should, continue to discourage the use of marijuana, but this can be done without defining the smoker as a criminal. States which have already removed criminal penalties for marijuana use, like Oregon and California, have not noted any significant increase in marijuana smoking. The National Commission on Marijuana and Drug Abuse concluded five years ago that marijuana use should be decriminalized, and I believe it is time to implement those basic recommendations. (1978, p. 1.404)
Contudo, com o fim dos anos setenta e início da década de 1980, as reações públicas ao uso de droga, especialmente por jovens, mudou, em grande parte em razão de matérias jornalísticas sobre elas, como as demonstradas supra. Grupos de pais cresceram em número e força, focando sua atenção nos efeitos das drogas nos adolescentes e na família como um todo. A maior parte desses grupos não acreditava na noção de que “algumas drogas” e “alguns usuários” eram aceitáveis, mas frisavam que todas as drogas e usuários eram prejudiciais, tanto aos usuários em si quanto aos não usuários. Tais grupos de pais foram uma importante força na eleição do próximo presidente americano: Ronald Reagan.
O governo Reagan (1981-1989) voltou a endurecer o controle de drogas ilegais, inicialmente com a passagem do Department of Defense Authorization Act (50 U.S.C. 521), o qual permitiu o envolvimento de forças militares na interdição de drogas. Em 1982, Reagan oficialmente decretou nova “guerra às drogas”, o que iniciou um período de encarceramento maciço e a alocação de bilhões de dólares para construção de novos presídios. Do orçamento dirigido ao combate de drogas, a esmagadora maioria se destinava a impedir a entrada da droga no território americano, o que levou ao aumento de ajuda financeira a outros países (Bolívia, Peru, Equador, Colômbia e México, p. ex.), a fim de incentivá-los a reduzir a produção da droga. Quando os países não o faziam a contento, a intervenção militar era o próximo passo, como nos casos de Nicarágua e Afeganistão. A guerra às drogas de Reagan logo virou um conflito internacional.
Em 1982, foi dada ao Federal Bureau of Investigation (FBI) jurisdição concorrente ao DEA para persecução de drogas. Já em 1984, o Comprehensive Crime Control Act (98 Stat. 1976, já revogado) permitiu ao DEA ditar uma substância como ilegal por um período de 12 meses sem a necessidade de revisão pelo governo, além de aumentar fianças, sentenças e a competência federal para confiscar propriedade de indivíduos condenados por crimes relacionados às drogas. No mesmo ano, o Comprehensive Forfeiture Act (21 U.S.C. 881), que permitia a apreensão de bens relacionados à indústria da droga, foi aprovado.
Em 1986, foi aprovado o Anti-Drug Abuse Act (100 Stat. 3207) e ele logo teve impacto significativo no encarceramento em massa de grupos minoritários pela posse de drogas. Ele alocou 1,7 bilhão de dólares para a luta no problema das drogas; 97 milhões foram utilizados para construção de novos presídios, 200 milhões para campanhas de educação e 241 milhões para tratamento de usuários, enquanto o restante foi usado em atividades de persecução, o que bem demonstra a tônica da política adotada.
A parte do Anti-Drug Abuse Act que mais deixou consequências para o sistema de justiça criminal americano foi a imposição de sentenças mínimas obrigatórias de 5 a 40 anos pela posse de cocaína. A fim de que essa sentença mandatória fosse imposta, a pessoa devia estar em pose de 500 g de cocaína em pó ou 5 g de crack. Apesar de o crack ser a substância ilícita menos usada nos EUA, a lei mirou especificamente na posse e venda de crack por indivíduos de classe social baixa e grupos minoritários. Em razão de grupos minoritários serem super-representados entre os pobres, os casos judiciais envolvendo crack, em relação aqueles envolvendo cocaína em pó, é ilustrativo das intersecções entre discriminação legal de classe social e raça (ZILNEY, 2011, p. 157). Voltar-se-á a tal questão mais abaixo.
O abuso de drogas foi um dos assuntos principais na campanha presidencial de 1988, e, logo após, uma gama de novas leis foram incluídas em uma expansão do Anti-Drug Abuse Act, que tornaram ainda mais grave o problema das prisões em massa, que será abordado mais abaixo.
Tal lei determinou a criação do Office of National Drug Control Policy (ONDCP), o qual tem por meta estabelecer políticas, prioridades e objetivos do Programa de Controle Nacional de Drogas. Para atingir tais objetivos, o Diretor do ONDCP é encarregado de produzir a National Drug Control Strategy (NDCS), a qual controla o programa, orçamento e linhas mestras para a cooperação entre órgãos federais, estaduais e locais.
Durante o governo de George Bush (1989-1993), a NDCS recomendou um aumento de 2 bilhões no fundo de controle às drogas, chegando a um total de 7,9 bilhões. O presidente Bush estava comprometido com a abordagem mais dura no combate às drogas, a qual ganhou popularidade com a administração de Reagan. O impacto de tal postura também será abordado posteriormente.
O primeiro governo de Bill Clinton (1993-1997) foi leniente com o problema das drogas, adotando uma postura de laissez-faire, como evidenciado pela diminuição de 83% do pessoal do ONDCP. Entretanto, durante a sua difícil reeleição, ele foi obrigado a mudar radicalmente sua postura em relação ao problema, passando a repetir a abordagem mais dura de seus antecessores. Ele aumentou dramaticamente os gastos federais em controle de drogas (de 1,5 bilhão em 1989 para 18,5 bilhões em 2000), continuou as táticas de intervenção pesada em países da América Central e do Sul, visando a evitar a entrada de drogas no território dos EUA, bem como manteve o legado de mínimo foco em estratégias de tratamento e redução de danos com relação às drogas. Durante seu governo, quase todas as políticas e persecução se focaram na maconha (ZILNEY, 2011, p. 163).
O governo de Clinton aprovou uma série de leis que vieram a restringir ainda mais a situação dos criminosos envolvidos com drogas. O Federal Welfare Reform Act (Pub. L. 104-193) excluiu os condenados a crime de posse, uso ou tráfico de drogas de benefícios sociais, perpetuamente. Esta provisão obviamente atingiu de forma desproporcional os pobres e, especialmente, as minorias (super-representadas entre os pobres) e, interessantemente, não se aplicava a outras ofensas sérias, como roubo, estupro e homicídio. Diversas leis similares foram aprovadas no âmbito dos estados. Em 1988, o High Education Act (Pub. L. 105-244) obrigou aqueles que buscavam financiamento público para sua educação que respondessem a um questionário sobre o uso de droga; aqueles que não o respondessem ou fossem condenados pelo uso, posse ou tráfico poderiam ter seu pedido negado, enquanto um homicida seria considerado apto.
George Bush Jr. governou os EUA de 2001 a 2009 e teve difíceis questões a enfrentar: nos governos anteriores, as prisões por drogas haviam aumentado 1.200%; as punições por drogas eram quase sempre maiores que as por homicídios; a população prisional havia aumentado assustadoramente, devido às sentenças mínimas obrigatórias, sendo que a maioria delas se deu apenas por posse de drogas. Mesmo assim, as taxas de indivíduos que usavam drogas nos EUA continuava a mesma há décadas.
Após os eventos de 11 de setembro, a guerra ao terrorismo retirou a guerra às drogas dos holofotes. Mas, para alguns políticos, havia uma sobreposição entre elas: em 2002, concedeu-se 650 milhões de dólares para que ela combatesse o terrorismo e as drogas em seu território. Domesticamente, Bush Jr. tinha um plano de ajudar os viciados em drogas: em 2003, ele anunciou uma iniciativa de 3 anos, no valor de 600 milhões de verba federal para tratamento a viciados (ZILNEY, 2011, p. 166).
Diversas organizações civis, como a American Civil Liberties Union e a U.S. Sentencing Commision continuavam a se opor às duras e racialmente discrepantes sentenças obrigatórias em casos de crimes envolvendo drogas. Muitos estados começavam a remover tais sentenças de suas leis. Em 2009, a Lei Rockefeller foi revogada. Essa foi, de fato, uma mudança inicial na abordagem de law and order adotada durante várias décadas naquele país. Lições colhidas de outros países mostraram que as “cortes de drogas”[15] e tratamento a usuários eram medidas mais apropriadas a reduzir a possibilidade de reincidência e procura às drogas (ZILNEY, 2011, p. 167).
Feito esse esboço histórico, resta saber o impacto que a política de guerra às drogas, impulsionada pelo pânico moral criado pela mídia, teve junto à população.
The American war on drugs is based on an ever-changing reaction to a substance, rather than to an actual threat of individual or social harm. Public perception of drugs are socially constructed and change based on may factors […] One of the main factors motivating the war on drugs is the intensity of media campaigns detailing community devastation at the hand of drug addicts and drug dealers and resulting pressure on politicians to once and for all win this war, The drug war involves an expanding prison industrial complex; a series of “get tough” measures written into the law; an inundation of drug war rhetoric; and discriminatory treatment based on class, race, and gender. The costs of this war have been high and have frequently resulted in violence, corruption, devastation of social bonds, the destruction of inner-city communities, and the exponential growth in the number of minorities and women incarcerated. (ZILNEY, 2011, p. 214)
Viu-se, acima, que o foco de combate às drogas mudou, com Nixon, do tratamento para punição. O orçamento para prevenção da droga por meio de mecanismos policiais saltou de 150,2 milhões, em 1971, para 654,8 milhões em 1973. Ronald Reagan, com a segunda declaração de guerra às drogas, em 1980, praticamente extinguiu os poucos programas de tratamento e reabilitação que ainda restavam.
O suporte midiático dado a tais medidas, através de notícias exageradas e enganosas acerca dos efeitos, consequências e quantidade do consumo de diversas drogas mostradas como perigosas e epidêmicas – como já mostrado acima, no tópico anterior – garantiu o apoio popular às políticas públicas antidrogas, de forma que elas foram seguidas por todas as legislaturas seguintes, com aumento da autoridade federal em casos de drogas, a criação de sentenças mínimas obrigatórias e sequestro de bens.
Todas essas medidas serviram para aumentar dramaticamente a população carcerária e o complexo industrial de prisões. O ONDCP, em 2006, indicou um orçamento federal de 12,7 bilhões para redução de drogas, um aumento de 80,6 milhões em relação a 2006. Com a adição de aproximadamente 28 bilhões dos orçamentos estaduais, o custo da guerra às drogas pode ser estimado por volta de 40 bilhões de dólares por ano (ZILNEY, 2011, p. 215).
De acordo com o FBI, o número de prisões por crimes relacionados a drogas (posse, uso e tráfico) mais que triplicou: de 580.900 em 1980, passou a 1.846.400 em 2005. Estudos governamentais revelam que metade desse número se refere a prisões de traficantes e transportadores de baixo escalão (street-level); por volta de um terço se referem a traficantes de médio nível e apenas 11% se refere a traficantes de grande porte. No período de 1990 a 2002, houve um aumento de 450.000 prisões por drogas; dessas prisões, 82% foram por maconha, sendo que 79% delas se referiam apenas a posse. Esses números representam um aumento de 113% nas prisões por maconha entre 1990 e 2002, enquanto o número geral de prisões decresceu 3% e as prisões por outras drogas aumentou apenas 10%. Ou seja, quase metade de todas as prisões por droga, a cada ano, é em razão de posse, uso ou tráfico de maconha (ZILNEY, 2011, p. 215).
As minorias e as pessoas de classe social mais baixa foram os que mais sofreram com a “guerra às drogas”. “Drug policy has from the beginning been driven, in party, by a deep-seated nativist fear about the moral, political, social, and economic implications of an even larger, polyglot, urban mass of people whose skin color or ethnic heritage differs from that of the dominant group” (RYAN, 1998, p. 288).
A questão racial está intimamente ligada às consequências da guerra às drogas. O caso da Rockefeller Law é bastante indicativo disso. Como se disse, tais leis criaram sentenças mínimas obrigatórias para pessoas punidas por posse, uso ou tráfico de drogas, o que resultou em muitas pessoas punidas com penas mais severas que estupradores, homicidas ou assaltantes.
Essa lei teve impacto brutal nas minorias raciais. Veja-se que a população de New York era 23,2% negra ou latina; não obstante, esses grupos representavam 93% de todos os encarcerados por crimes relativos a drogas. Na cidade de New York, entre 1990 e 2002, houve um aumento de 882% nas prisões por maconha, incluindo um aumento de 2.461% de prisões por porte de maconha. Embora os negros representem apenas 14% dos usuários de maconha, eles representam 30% de todas as prisões por crimes a ela relacionados. (KING; MAUER, 2005, p. 2).
O padrão de discriminação racial acima relatado se repetia em todos os estados norte-americanos, apesar de todos os estudos feitos em relação ao tema apontarem que minorias raciais não participavam do uso de drogas em frequência maior que os caucasianos. Ainda assim, negros e latinos são mais propensos a serem detidos, condenados e a receber pena de prisão que brancos (GOLUB; JOHNSON; DUNLAP, 2007, p. 131-164). Por exemplo, em Maryland, entre 1996 e 2001, de todos os negros condenados judicialmente, 64% o foram por crimes relacionados a drogas e impressionantes 81% de todos os condenados por uso, posse ou tráfico de drogas eram negros (KING; MAUER, 2002, p. 11).
Como se vê, a coexistência de raça e classe social baixa deixa muitas minorias mais visíveis às agências executivas penais, levando à percepção equivocada de maiores níveis de envolvimento com drogas por indivíduos de minorias raciais ou étnicas. E isso, por sua vez, leva a desproporção de prisões e persecução. De todos os presos por drogas em prisões estatais até 2002, 56% eram negros e 23% eram hispânicos, bem acima de suas respectivas taxas (13% e 9%)de uso geral de drogas (KING; MAUER, 2002, p. 2)
A guerra às drogas iniciou uma desenfreada busca por drogas pelas autoridades, e não é surpresa que ela foi encontrada em larga escala onde as agências executivas exerceram seus primeiros esforços de procura: “… in low-income, minority neighborhoods were use and dealing are the most visible due to lack of privacy, thu sale of drugs occurs in public settings.” (ZILNEY, 2011, p. 217).
Apesar de o crack ser a droga ilícita menos utilizada nos EUA, como já se disse, a guerra às drogas focou grande parte de seus esforços nos crimes de posse e venda de crack por pessoas de baixa classe social e minorias. Já que as minorias são super-representadas entre os pobres, os casos judiciais envolvendo crack e cocaína em pó oferecem desgostosas interseções entre discriminação por raça e classe.
Discrepâncias gigantes existiram em sentenças obrigatórias a nível federal por anos, com consequências danosas especialmente para os negros, que representavam 81% de todos os presos por ofensas relacionadas ao crack (U.S. SENTENCING COMMISSION, 2007, p. 15). Pela lei original, uma pessoa encontrada com apenas 5 g de crack seria condenada a mesma pena mínima obrigatória de cinco anos de alguém encontrado com 500 g de cocaína em pó; aproximadamente 70% dos réus condenados por uso, posse ou tráfico de crack eram sentenciados dentro dos parâmetros mínimos obrigatórios.
“The wide discrepancy in federally mandated sentences for crack cocaine versus powder cocaine illustrates a class and racial bias in the criminal justice system. Minorities are primarily prosecuted for crack offenses, whereas whites are primarily prosecuted for powder cocaine offenses.” (ZILNEY, 2011, p. 157).
Essa disparidade de 100 para 1 (100:1), em termos de quantidade de droga encontrada, criou desproporção significativa no confinamento de negros, já que, historicamente, dois terços de todos aqueles acusados de ofensas relacionadas à cocaína em pó eram brancos, que não eram condenados a sentenças mínimas obrigatórias em razão de portarem quantidade menor que a exigida pela lei. Essa disparidade é ainda mais chocante quando se percebe que menos de 1% de jovens negros usavam crack nesse período, enquanto 4,5% dos jovens brancos o usavam; ou seja, ainda que usassem quatro vezes menos a droga, os negros representavam 81% de todos os presos por causa dela (BARAK; LEIGHTON; FLAVIN, 2007, p. 133-135).
Ficou aparente, pois, que o aumento de controle social desse grupo de indivíduos foi alcançado por meio do uso de leis relacionadas a drogas, que eram executadas com vigor em vizinhanças de minorias de baixa renda. Enquanto tais leis podiam ser, se superficialmente analisadas, igualitárias e não discriminatórias, as consequências do endurecimento legislativo na guerra contra as drogas foram encarceramentos sem precedentes de pobres e minorias raciais e étnicas.
Em 1995, o órgão encarregado pelas diretrizes federais de condenação, a U.S. Sentencing Commission, recomendou a revisão das sentenças mínimas obrigatórias relacionadas a crimes de drogas. A comissão emitiu relatório reconhecendo as disparidades étnicas e raciais nas condenações por crack e cocaína em pó e sugeriu a redução de tais disparidades. Pela primeira vez na história, o Congresso e o presidente Clinton decidiram suplantar a recomendação da comissão. Em um relatório enviado ao Congresso em 1997, a comissão explicou:
While there is no evidence of racial bias behind the promulgation of this federal sentencing law, nearly 90 percent of the offenders convicted in federal court for crack cocaine distribution are African-American while the majority of crack cocaine users are white. Thus, sentences appear to be harsher and more severe for racial minorities than others as a result of this law. The current penalty structure results in a perception of unfairness and inconsistency. (U.S. SENTENCING COMMISSION, 1997, p. 8)
No ano de 2007, a comissão novamente enviou relatório ao Congresso pedindo pela redução dessa desigualdade entre condenações por crack e cocaína em pó e, mais uma vez, não foi atendida.
Foi apenas em 10 de dezembro de 2007, quando a Suprema Corte dos EUA julgou o caso Kimbrough v. U.S., 552 U.S. 85 (2007), permitindo a juízes federais que aplicassem as penas, nos casos envolvendo condenações por drogas,de forma discricionária, que o abismo foi reduzido. Após tal decisão, a U.S. Sentencing Commission aprovou que ela tivesse efeito retroativo a 03 de março de 2008, o que permitiu que aproximadamente 19.500 presos tivessem sua pena reduzida para 2 anos. O Congresso também iniciou uma série de reformas na lei, sendo digno de nota o Drug Sentencing Reform and Kingpin Trafficking Act de 2007, de autoria do então senador (e hoje vice-presidente) Joseph Biden, que visava a equalizar as penas em casos de crack e cocaína em pó. Tal ato, entretanto, não foi aprovado, sendo apenas em 2010 aprovado o Fair Sentencing Act (Pub. L. 111-220), que diminuiu de 100:1 para 18:1 a relação entre crack e cocaína em pó encontradas, e eliminou a pena mínima obrigatória de cinco anos.
A discriminação de gênero também é resultado adverso da guerra às drogas. A epidemia dos “bebês do crack” criada pela mídia levou a um estereótipo de mulheres de raças ou etnias minoritárias, que eram reportadas como a esmagadora maioria de “mães do crack”. A impressão falsa de que isso era uma epidemia resultou na criação de leis que criminalizam de forma mais severa o uso de drogas durante a gravidez.
A primeira pessoa a ser condenada por dar à luz a uma criança viciada foi Jennifer Johnson, em 1989, no caso Johnson v. State, 578 So.2d 419. Johnson, uma jovem pobre e negra do estado da Florida, recebeu sentença de 15 anos, incluindo 14 anos de probation (um período de liberdade vigiada) pelo impacto do crack no bebê. Casos como esse se tornaram lugar-comum no fim da década de 80 e começo de 90, com 24 estados aplicando sentenças similares. Essa política, entretanto, dissuadiu várias mulheres a procurarem cuidados e tratamentos pré-natais (ZILNEY, 2011, p. 219).
Outras táticas contra o uso de drogas por gestantes incluam “encarceramento preventivo” (preventive incarceration), pelo qual uma gestante usuária de drogas era presa ou confinada para proteção do feto. Muitos hospitais possuíam a política de testar mulheres grávidas suspeitas de abuso de drogas e então comunicar o resultado à polícia ou ao Child Protective Services (CPS).
Apesar de pesquisas feitas pelo National Institute of Drug Abuse haverem demonstrado que os efeitos de longo prazo nos bebês nascidos com vício em crack foram superestimados (ZILNEY, 2011, p. 160), o estereótipo criado pela mídia já havia se incorporado ao imaginário popular.
Em razão disso, as leis de abuso de drogas por gestantes eram aplicadas principalmente a mulheres de grupos minoritários: negras e latinas representavam aproximadamente 80% de todas as acusadas, apesar da ausência de diferenças significativas nas taxas de uso de crack entre as mulheres das diversas etnias (KING; MAUER, 2002, p. 14).
As consequências da guerra às drogas criada pela pressão popular junto aos políticos por uma legislação cada vez mais dura de combate ao problema – pressão popular que, por sua vez, se origina no pânico moral alimentado pela mídia por meio de enxurradas de reportagens exageradas e tendenciosas acerca da quantidade e perigos do consumo de drogas seletivamente escolhidas –, foram bem resumidas por Lisa Anne Zilney:
In an analysis of discrimination in the war of drugs, it is evident that race, class, and gender are inextricably intertwined as racial minorities are disproportionately represented among the poor. Drug-related laws, enforced with vigor in low-income, minority neighborhoods are used to accomplish increased social control of racial minorities. Though drug laws may be superficially equal and not discriminatory in intent, the consequences of applying such legislation in fighting the war on drugs has been unprecedented incarceration of the poor and minorities as well as a significant increase in the number of women under control of the criminal justice system. Assumptions based on races, class and gender stereotypes have created and perpetuated moral panics that fuel support for the drug war. (2011, p. 220)
Enquanto a mídia continuar a alimentar o pânico moral junto aos consumidores de suas notícias, não parece haver esperanças de uma política pública racional de combate às drogas. A história, como acima se tentou explanar, faz questão de demonstrar essa triste realidade.
7 Conclusão.
A mídia tem sido uma arma poderosa na guerra dos EUA contra as drogas, por meio da criação de pânico moral junto à população. Assim que certa droga seletivamente escolhida é mostrada como uma ameaça à ordem social, procura-se manter tal percepção de ameaça por meio de “cruzadas morais”, onde a quantidade de droga consumida é aumentada e seus efeitos são apresentados de forma intencionalmente equivocada e exagerada ao público, a fim de amplificar a histeria em relação à droga. Comum a todos os pânicos morais criados pela mídia são a falta de suporte científico e empírico aptos a confirmar suas alegações.
O pânico moral criado pela mídia, por meio de reportagens repletas de prejuízos e representações grosseiras da realidade, levou o público a exigir, cada vez mais, o endurecimento das leis de drogas, e o sistema político normalmente tem compensado candidatos que sigam essa linha de atitudes, aumentando a irracionalidade do sistema, embora todos os estudos apontem a ineficácia de tal medida, eis que as taxas de uso de droga nos EUA tem se mantido estável há vários anos.
A guerra às drogas, abastecida pela histeria coletiva criada por informações distorcidas repassadas pela grande mídia, tem gerado consequências nefastas para as minorias raciais e étnicas, bem como para as mulheres. Embora pesquisas reiteradamente tenham demonstrado que negros e latinos não consomem, portam ou vendem mais drogas que brancos (e, em alguns casos, consomem inclusive bem menos), justamente esses grupos que representam a esmagadora maioria de presos por crimes de droga no sistema de justiça americano.
Assunções baseadas em estereótipos de raça, classe e gênero tem perpetuado o pânico moral que serve de combustível à guerra contra as drogas. A guerra às drogas é lutada de forma veemente, embora as decisões políticas normalmente reflitam prejuízos, em vez de realidades, e muito frequentemente sejam desacompanhadas de fundamentos empíricos.
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[1] Embora apontados três quadros de referências, é importante alertar que nenhuma deles pode ser visto de maneira isolada ou como mais correto que os demais; cada um deles traz um novo nível de entendimento acerca das drogas, como alertado por ZILNEY, Lisa Anne. Drugs: Policy, Social Costs, Crime, and Justice. Upper Saddle River: Prentice Hall, 2011, p. 3.
[2] Um esclarecimento aqui se faz necessário em relação ao processo de codificação existente nos EUA, que em muito difere do brasileiro, a fim de que aqueles não iniciados no direito norte-americano possam melhor compreender as indicações legais que serão feitas no decorrer do texto. Após aprovação pelo Congresso e sua sanção pelo Presidente, a lei (Act of Congress) entra em vigor e, em se tratando de leis com aplicação geral, se transforma em Public Law (abreviado como Pub. L.). Uma Public Law é designada pelo número do Congresso e pelo número da lei para aquele Congresso (v.g., Pub. L. 111-314 é a 314º lei geral do 111º Congresso). Ao fim de cada sessão do Congresso, as leis e resoluções conjuntas por ele criadas são reunidas e publicadas, em ordem cronológica de aprovação, no United States Statutes at Large (abreviado como Stat.). A citação dos Statutes at Large inclui o volume e a página em que cada lei pode ser encontrada. Assim, e.g., 115 Stat. 1425 significa a página 1425 do 115º volume dos Statutes at Large. Contudo, o Statutes at Large não é uma ferramenta prática para a pesquisa legal, já que segue mera ordem cronológica, de forma que leis intimamente relacionadas podem estar separadas por dezenas de volumes. Visando a superar essa dificuldade, se criou o Code of Laws of the United States of America (abreviado como U.S.C.), a compilação oficial e a codificação de todas as leis federais gerais e permanentes do país, as quais são organizadas por assunto e com a remoção das seções expiradas e emendadas. Sua edição principal é publicada a cada seis anos pela Office of the Law Revision Counsel da House of Representatives, e seus suplementos são publicados anualmente. Atualmente o código contém 51 títulos e mais duzentas mil páginas. Sua citação se dá pela indicação do número do título e seção. Assim, a citação no texto se refere à seção 321, letra “g”, número 1, “B” e “C”, do título 21 do U.S.C.
[3] Cf., acerca do poder da indústria farmacêutica nos EUA, ZILNEY, Drugs, op. cit., 2011, p. 100-104.
[4] Cf., acerca do papel legitimador do sistema penal exercido pela mídia, o imprescindível trabalho de BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio. Discursos Sediciosos: crime, direito e sociedade, Rio de Janeiro, ano 7, n. 12, p. 271-288, 2002, passim.
[5] Veja-se, p. ex., que maconha e cocaína possuem valor medicinal já devidamente comprovado pela literatura médica (aquela para tratamento de glaucoma, alívio de dores e náuseas para pacientes em tratamento contra câncer, aumento de apetite em pacientes com AIDS, dentre outras aplicações; esta foi amplamente utilizada como anestésico local no passado – em verdade o primeiro anestésico local utilizado em cirurgias –, por reduzir tanto a dor quanto o sangramento, e ainda é hoje utilizada em raras ocasiões, para cirurgias faciais), mas, ainda assim, são largamente proibidas ao redor do mundo, mesmo para fins terapêuticos.
[6] Como afirma Nilo Batista, as agências de comunicação social do sistema penal “…precisam que seu discurso se imponha aos concorrentes. Neste sentido, toda e qualquer reflexão que deslegitime aquele credo criminológico da mídia deve ser ignorada ou escondida: nenhuma teoria e nenhuma pesquisa questionadora do dogma penal, da criminalização provedora ou do próprio sistema penal são veiculados em igualdade de condições com suas congêneres legitimantes […] A questão criminal se politiza igualmente como descredenciamento de administrações locais ou forças partidárias que se oponham ao credo criminológico midiático, à expansão da intervenção penal.” (Mídia, op. cit., 2002, p. 275 e 282, grifos do autor).
[7] Mas, como lembra Nilo Batista, os enunciados do discurso criminológico da mídia, além de jamais alcançar constatação empírica, eis que são indemonstráveis, não representam o produto de um esforço na direção do saber, e sim uma articulação retórico-demonstrativa de um “credo” que tem seu núcleo irradiador na própria ideia de pena (Mídia, op. cit., 2002, p. 277).
[8] Na feliz síntese de Nilo Batista: “Decisões do Congresso Nacional capazes de afetar milhões de brasileiros obtêm divulgação ínfima se comparada com as atividades inquisitoriais de alguma CPI, ou com investigações sobre a própria conduta de parlamentares.” (Mídia, op. cit., 2002, p. 282).
[9] “… o importante não é o conteúdo da investigação jornalística, sabido e ressabido: o importante é a direta mobilização do sistema penal, o cumprimento de uma tarefa própria das agências executivas do sistema penal. Sob tais circunstâncias, nas quais a mídia está não apenas pautando as agências executivas do sistema penal, como também selecionando entre candidatos à criminalização secundária […], cabe falar de uma ‘executivização’ das agências de comunicação social do sistema penal […] Apesar do álibi de cariz liberal, fica evidente que o “trabalho jornalístico” não apenas pautou agências do sistema penal e outras agências públicas, como também que ‘abriu os olhos do Estado’ na escolhida direção […] tendo em suas mãos portanto a seletividade própria do sistema penal.” (BATISTA, Mídia, op. cit., 2002, p. 281).
[10] “A notorious example appeared in 1986 in the CBS television documentary 48 Hours on Crack Street. This program presented the (then) essentially New York City problem of crack cocaine as if it were already a national epidemic, with vials littering the streets and parks of virtually every community across the country. Though largely spurious, this account had enormous influence in generating fears of national crack epidemic.” (JENKINS, Philip. The ice age: The social construction of a drug panic. In: POTTER, G. W.; KAPPELER, V. E. (Eds.). Constructing crime: Perspectives on making news and social problems. Prospect Heights: Waveland Press, 1998, p. 155, grifos do autor).
[11] Cf. UNIVERSITY OF PITTSBURGH SCHOOLS OF THE HEALTH SCIENCES. No “Smoking” Gun: Research Indicates Teen Marijuana Use Does Not Predict Drug or Alcohol Abuse. Disponível em: < http://www.upmc.com/media/NewsReleases/2006/Pages/no-smoking-gun.aspx>. Acesso em: 22 de mai. 2014.
[12] Cf. DRUG POLICY ALLIANCE NETWORK. 10 Facts About Marijuana. Disponível em: < http://www.drugpolicy.org/drug-facts/10-facts-about-marijuana>. Acesso em: 22 de mai. 2014. A instituição apresenta, ainda, vasta lista de estudos científicos a comprovar a derrocada do mito da maconha como “porta de entrada” para outras drogas.
[13] Um apanhado mais amplo pode ser encontrado em JENKINS, Philip. Synthetic panics: The symbolic politics of designer drugs. New York: New York University Press, 1999, passim.
[14] Agência que faz parte do Departamento de Justiça dos EUA e que é encarregada de combater o uso e o tráfico de drogas dentro de seu território.
[15] Parte do judiciário dedicada somente a julgamentos de casos de drogas, com abordagem diferenciada e mais voltada ao tratamento do caso como de saúde pública.
* Felipe Vianna