“O homem de gelo”
Francisco César Pinheiro Rodrigues*
Quem se interessa pelo mundo real não pode deixar de ler esse livro, Editora Landscape, escrito por um autor que desconhecia, Philip Carlo. Uma prova de que pesquisas bem feitas, incansáveis, podem destravar as emperradas portas do anonimato literário.
Dizia Pontes de Miranda, salvo engano — se não foi ele foi um outro jurista famoso —, que o advogado, juiz ou promotor que só lê obras de Direito, e por mais que as leia, não chegará sequer a ser um bom jurista. Faltar-lhe-á a visão de conjunto, a percepção da conexão entre a sua ciência e o universo cultural e científico que o cerca. O direito, com seu amor às abstrações, freqüentemente passa a girar nas nuvens, por demais apegado às belas palavras textuais do legislador. Dá a elas um sentido absoluto, conforme a filosofia ou religião do intérprete. Esquecido este que, por vezes, o legislador, se ainda vivo, defrontando qual o problema concreto pendente, talvez preferisse trocar por outra aquela palavra ou expressão que lhe veio à cabeça quando redigia e acabou tendo um peso exagerado, além de sua intenção.
Essa hermenêutica excessivamente literal ocorre, por exemplo, na interpretação da Constituição Federal, no que se refere aos conceitos de “vida” e “liberdade”. A “vida” de um embrião humano, sem cérebro e sem nervos, composto de dez, quinze, células, impediria a autorização das pesquisas genéticas que, embora sacrificando umas poucas células vivas poderiam talvez salvar trilhões de trilhões de células de adultas formando milhares ou milhões de pessoas? Essa é uma discussão atual que desperta a atenção e emoção do mundo jurídico, quando deveria atrair o interesse apenas do mundo da razão. Mas o tema “hermenêutica”, aqui, fica abandonado porque outro é o enfoque este artigo.
No FBI americano, destinado objetivamente a combater crimes federais, existe um departamento de “estudo do comportamento humano”. Um reconhecimento explícito, governamental, de que não basta a força para reprimir o crime. Para esse fim é extremamente útil compreender a mente criminosa. É através dela, por vezes, que se pode chegar à primeira pista que, encadeada com outras, mais concretas, pode levar ao criminoso. Em cidades populosas, as pessoas não se conhecendo, matadores seriais fazem a festa porque sabem que as autoridades precisam de uma pista qualquer para o início de uma investigação. Se não há testemunhas — e isso o serial killer tem como providenciar — nem motivação para o homicídio — “a quem interessa?” —, como chegar ao criminoso?
O “modus faciendi”, a maneira de matar pode, pela repetição, indicar que se trata de um único criminoso, porque todo homem tem suas manias, tende a repetir-se. Mas se ele varia na forma de execução e mata com tal habilidade que a autópsia não revela a existência de um homicídio, como combater esse tipo de criminoso? É uma luta desigual entre o criminoso extremamente cauteloso, frio, versátil, e a polícia que nem sabe, por exemplo, que certos “ataques cardíacos” na verdade disfarçam formas de matar mais sofisticadas, como os venenos que não deixam vestígios. Ao tempo dos Bórgias os envenenados morriam em convulsões, babando, revelando claramente a ingestão do veneno. Já o biografado do livro, Richard Kuklinski — que matou, “por encomenda”, dezenas de pessoas e faleceu em março de 2006 na Penitenciária Estadual de Trenton, New Jersey — desenvolveu de tal forma suas técnicas que a autópsia não revelava que o coração da vítima havia parado por causa do cianeto, ingerido ou simplesmente borrifado com spray no rosto.
Um simples “Hei!”, seguido de um borrifo — “pssst” — no rosto quando o “alvo” olhava e seus dias estavam contados. “Parada cardíaca”, dizia a necropsia. Realmente o coração parara, mas por obediência química a Richard Kuklinski, o biografado. Ele era um matador profissional, por contrato. “Trabalhava” como “freelancer” para a Máfia americana, mas a ela não pertencia por não ter origem italiana, como diz seu sobrenome polonês. Na maioria das vezes o chefão mafioso contratava Kuklinski para matar outro mafioso (menos mal…). Era o melhor profissional no setor, pela coragem, discrição, eficácia, método e habilidade em não deixar pista quanto à autoria. A referência ao “gelo” não era devida apenas ao seu sangue-frio. É que ele por vezes congelava os cadáveres porque se fossem, eventualmente descobertos, o frio, a ausência ou retardamento da putrefação, impedia a necropsia de saber quando a vítima fora assassinada. A técnica policial pode saber quando a vítima morreu pelo grau de decomposição dos tecidos. Mas se quase não houve decomposição?
Não se pense, porém, que Richard usava veneno por ser covarde, por temer a reação do “alvo”. Mulheres, têm preferência pelo veneno justamente porque são fisicamente fracas, sem condições de enfrentar a vítimas — geralmente maridos agressores ou fascinados demais por novas saias. Kuklinski passou a usar o veneno depois de, pessoalmente, matar gente perigosa com tiros, facadas, pancadas ou com as próprias mãos. Era um homem corpulento, com cerca de metro e noventa e dotado de imensa força física — natural, sem halterofilismo. Quando finalmente foi preso e quiseram algemá-lo por trás, as algemas não serviam porque seus punhos eram grossos demais. Foi preciso usar as algemas de pés para imobilizá-lo nas mãos, e assim mesmo isso foi difícil porque um policial tratou rudemente sua esposa e isso Richard não permitia, fossem quais fossem as armas apontadas contra ele.
O cianeto foi, para ele, apenas um “aperfeiçoamento” técnico, com a grande vantagem de não deixar pista. Era mais inteligente por exemplo, matar um policial usando veneno, imperceptível à necrópsia, quando na dose certa — nem de mais nem de menos, porque aí a vítima sobreviveria —, porque dessa forma evitada mexer em uma casa de marimbondos, os colegas do policial ávidos por vingança.
Segundo as confissões de Kuklinski — já não tinha nada mais a perder, revelando sua vida na penitenciária, pois condenado a várias penas de prisão perpétua — o mafioso que solicitava seus serviços apenas mostrava nome e foto do “alvo”, o preço oferecido e a especificação sobre se queria morte “com ou sem sofrimento’. Se “com”, Richard Kuklinski fazia o seguinte: dominava o “alvo” com um revólver, amarrava seus punhos, passava uma fita adesiva grossa na sua boca, impedindo-o de gritar e jogava-o no porta-mala. Levava-o a um local bem afastado, no campo — onde sabia existir uma caverna cheia de ratazanas enormes; tão grandes que pareciam coelhos. Lá ele deitava a vítima no chão, armava a filmadora num tripé e instalava um holofote ligado a um detector de movimento. Depois ia embora, ciente de que as ratazanas, esfomeadas, apareceriam para o banquete “delivered”. Com a aproximação das ratazanas a lâmpada acendia e a filmagem começava. Poucos dias depois, segundo ele, só restava o esqueleto. Como o infeliz era devorado ainda vivo, o item “sofrimento” fora atendido. A fita era levada ao mafioso, que se deliciava com a tortura do “traidor”, ou coisa semelhante. E havia outras coisas que é melhor ler no livro.
Não tem sentido prosseguir, aqui, reproduzindo as confissões do “homem de gelo”, prejudicando autor e editora na vendagem, tirando o “prazer” ( que prazer?…) do leitor. O livro, em linguagem clara e não vulgar — embora realista quando reproduz diálogos do baixo mundo — é bem uma enciclopédia do crime e da cautela e sangue-frio de um matador que só foi preso graças à quase fanática determinação de um jovem policial idealista. Não é possível omitir, porém, a excepcional coragem de um outro policial que, bom “ator” — até no linguajar sujo — conseguiu se introduzir no fechado mundo da Máfia, fingindo-se um marginal. Bastaria uma leve suspeita de sua condição de agente infiltrado para resultar em sua morte, certamente com muitos padecimentos. As ratazanas ficariam gratas.
Richard Kuklinski era, assim, um “monstro total”? Não! Marido absolutamente fiel, adorava a esposa — embora por vezes perdesse a paciência e a espancasse quando contrariado e provocado. Em matéria de sexo era puritano. Quando na prisão, recebia cartas de mulheres excitadas — estranho afrodisíaco… — querendo autorização para visitá-lo, desconsiderava. Fazendo uma careta de nojo, comentou ao escritor: “Uma delas, na foto, estava com as pernas tão abertas que dava para ver até as amídalas”. Apesar de muito lacônico, tinha senso de humor.
Amava as filhas mas nutria uma certa desconfiança com relação ao filho. Afinal, tratava-se de “um macho”. E tinha também seu lado virtuoso: não tolerava que uma criança fosse maltratada na sua presença. Simplesmente matava o atormentador. Matar mulheres também não estava em sua agenda. Sua mulher dizia que havia casado com dois homens: o Richar bom e o Richard mau. Ela não fazia perguntas sobre onde ele ganhava seu dinheiro porque tais perguntas o deixavam aborrecido. Mas não sabia que era um matador de aluguel.
Por que Kuklinski tornou-se o que revelam suas confissões? Tudo indica que as tremendas e injustas surras que levou quando criança tiveram decisivo papel na conformação mental e moral de um matador de aluguel. Sua mãe também não revelava, segundo ele, qualquer sentimento afetuoso, normal, de mãe. Até o fim de sua vida lamentou o fato de não haver assassinado o pai. No seu dizer, um homem que gostava — principalmente quando alcoolizado —, de espancar os dois filhos, um deles morto de tanto levar socos na cabeça. Crime que ficou impune — uma “queda”, segundo informações fornecidas à polícia — porque a mãe de Richard tinha tanto medo do marido que não relatou a surra impiedosa.
Sob esse ângulo o livro é também informativo, a nos alertar que abusivos espancamentos de crianças pelos pais e, principalmente, a total ausência de amor ou respeito pelos filhos podem resultar em deformações morais que, cedo ou tarde, vão nutrir as ratazanas. As metafóricas ou as propriamente ditas. É um livro que vivamente recomendo, até mesmo como fonte de informação.
( 6-6-2007)
* Advogado, desembargador aposentado e escritor. É membro do IASP Instituto dos Advogados de São Paulo. Website do autor: http://www.franciscopinheirorodrigues.com.br
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