Direito Internacional Público

Subsídios para a Elaboração de Instruções à Delegação do Brasil a Conferência de Viena sobre Direito dos Tratados entre Estados e Organizações Internacionais ou entre Organizações Internacionais de 1986

I. Introdução: Delimitação do Objeto do Parecer

 

 

                   Em 1969, a Assembléia Geral da ONU recomendou à Comissão de Direito Internacional a elaboração de um estudo sobre pactos celebrados por organizações internacionais, visto que a Convenção de Viena do mesmo ano referia-se às cartas interestatais. Após 12 anos, a referida comissão aprovou o projeto de artigos sobre tratados entre Estados e Organizações Internacionais ou entre Organizações Internacionais. No entendimento do comitê, se o projeto viesse a ser adotado como convenção, deveria este ser considerado independentemente da Convenção de Viena de 1969.

 

                   Com a data de realização da nova Carta de Viena (1986), o Brasil decidiu pela participação nessa conferência. Para início da preparação da delegação brasileira, foi solicitado a Antonio Augusto Cançado Trindade que preparasse subsídios destinados à elaboração de instruções para os membros da comissão.

 

                   Para tanto, foram-se analisadas as questões básicas do projeto, bem como as posições do Brasil externadas sobre a matéria durante a Convenção de Viena de 1969. Ademais, identificaram-se os artigos que poderiam requerer mais atenção em relação à matéria.

 

 

 

II – Tratados Celebrados por Organizações Internacionais: Questões Básicas

 

                   Durante a preparação do Protocolo de Viena sobre Direito dos Tratados de 1969, argüiu-se sobre a possibilidade desse pacto tratar tanto dos tratados interestatais, quanto daqueles em que as organizações internacionais fossem parte. Foi decidido pela exclusão destes; alguns dispositivos, contudo, do projeto original têm íntima relação com a carta da década de 60. Assim, faz-se mister analisar os pontos de intersecção do antigo com o presente projeto. Para isso, resumir-se-ão os pontos mais importantes destacando o que for de mais valia.

 

1. Igualdade dos Estados e Desigualdade das Organizações Internacionais

 

                   Um dos pontos principais no projeto em estudo é a diferença resultante na comparação de Estados e organizações internacionais. No plano normativo internacional, os Estados situam-se em igualdade soberana em relação aos outros. “Por outro lado, as organizações internacionais diferem umas das outras, em razão das amplas variações entre suas funções, individualmente definidas.” (TRINDADE, 1990, p. 163) Essa diversidade exige cuidado na formação de regras, a fim de evitar normas comuns sobre questões que deveriam ser formuladas para cada tipo de entidade.

 

2. O Direito das Organizações Internacionais em Perspectiva Adequada

 

                   O direito das organizações internacionais deve ser tratado a partir de uma perspectiva adequada, ou seja, não se pode vislumbrar um direito comum, mas buscar o direito próprio de cada entidade. “Trata-se, pois, necessário a noção de ‘regras relevantes da organização’, – levando particularmente em conta a ‘prática da organização’, – noção esta presente já na Convenção de Viena de 1969 (artigo 5).” (TRINDADE, 1990, p. 165, grifos do autor)

 

                   Paul Reuter, em alguns de seus relatórios, refere-se a um princípio fundamental, que afirma a existência de um direito peculiar a cada entidade e reconhece, no que concerne aos pactos, sua precedência sobre as norma gerais sobre o direito dos protocolos. Ainda na opinião de Reuter, qualquer tentativa de findar tal diversidade por meio de estatutos está fadada ao fracasso. Ele explica que os tratados realizados por organizações internacionais ao longo dos anos têm sua força obrigatória derivada de um direito internacional geral, que obriga tanto nações quanto essas entidades, e não no direito peculiar de cada organização. Destarte, o escopo do projeto deve ser identificar e estabelecer as normas necessárias à concretização e ao desenvolvimento de uma prática com bases sólidas reconhecendo o valor jurídico dos pactos das organizações internacionais, independentemente dos traços especiais que possam caracterizar cada organização.

 

3. A Capacidade das Organizações Internacionais de Celebrar Tratados

 

                   O tópico suprajacente está ligado ao da capacidade das organizações internacionais de celebrar tratados. Esta é uma das questões basilares mais complexas que o projeto da convenção de 1986 teve de enfrentar e recebeu a devida atenção nos relatórios de Reuter. No primeiro, ele apenas anotou que as organizações internacionais dotadas de capacidade de pactuar não a possuem no mesmo grau, cabendo determinar pelo menos uma capacidade mínima que todas possuiriam. O segundo relato foi claro ao assegurar que a conceito básico de princípio prende-se ao fato de que a capacidade de uma organização internacional decorre de seus próprios códigos, do direito “pessoal” da organização, não sendo assim uma entidade idêntica a outra. No terceiro relatório, Reuter foi categórico ao afirmar que a capacidade de uma organização internacional depende do direito peculiar a cada instituição. Por isso, em virtude dessa divergência seria impossível criar um direito uniforme.

 

                   Neste ponto, TRINDADE (1990), aponta:

 

Daí a convicção do rappoteur de que, para tornar possível o trabalho de codificação nesta áreas, mister se faz buscar uma fórmula suficientemente flexível relativa à capacidade das organizações internacionais de modo a “cobrir todas as soluções possíveis e respeitar a grande diversidade existente. […] Assim, dispõe o artigo 6 do presente projeto que “no caso das organizações internacionais, a capacidade de concluir tratados é determinada pelas regras relevantes de cada organização”. (p. 169)

 

 

 

III. Posições do Brasil sobre os Tratados da Comissão de Direito Internacional da ONU de Codificação do Direito dos Tratados

 

Para elaborar as instruções à Delegação brasileira, Trindade analisou as posições já assumidas ou manifestadas pelo Brasil a respeito do assunto. Tal estudo fez-se necessário a fim de manter a coerência do país no que tange à matéria.

 

1. Posições do Brasil na Conferência de Viena sobre Direito dos Tratados (1968-1969)

 

                   Neste ponto trata-se das intervenções da Delegação do Brasil nos encontros (1968 e 1969) da Conferência de Viena sobe Direito dos Tratados. Na primeira sessão (1968), observou-se que a prática internacional ainda não era suficientemente farta de forma que servisse de base ao estudo das relações entre Estados e as organizações internacionais e dos protocolos desse tipo de entidade. Ademais, afirmou-se que a referida Conferência “fora convocada a fim de codificar o Direito Internacional e não para compilar princípios. Em relação à ratificação de tratados […] ressaltou a diversidade de métodos da expressão do consentimento e a necessidade hodierna de agir rapidamente”. (TRINDADE, 1990, p.172) No que concerne à interpretação de protocolos, defendeu-se como ponto inicial o sentido ordinário dos textos e expressou-se cautela quanto ao recurso aos trabalhos preparatórios como meio suplementar de interpretação.

 

                   Durante a segunda sessão, a comissão brasileira, no que tange à capacidade do Estado de concluir tratados, contrapôs-se a posição considerava em um mesmo plano os Estados e as unidades componentes de uma união federal ou Lander (que não podiam ser membros de uma organização internacional ou assinar tratados). No tocante à conclusão de tratados, a Delegação brasileira propôs, em conjunto com os ingleses, um projeto normativo a respeito das cláusulas finais da Convenção (assinatura, ratificação, adesão, entrada em vigor, textos autênticos).

 

2. As intervenções do Brasil, sobre o Presente Projeto, na VI Comissão da Assembléia Geral das Nações Unidas (1973-1982)

 

                   Na VI Comissão da Assembléia Geral da ONU o Brasil, em 1973, apoiou a concepção que o novo projeto não deveria diferir muito do de 1969. Conforme o OFÍCIO DA AG/ONU:

 

A capacidade das organizações internacionais de concluir tratados deveria reger-se por seus estatutos respectivos, e os tratados concluídos por órgãos subsidiários deveriam obrigar a organização como um todo. (TRINDADE, 1990, p. 174)

 

                   No ano subseqüente, a Delegação brasileira ratificou as decisões tomadas a respeito do projeto em questão, tratando pragmaticamente a questão da capacidade das organizações internacionais de concluir pactos que já se tornara uma realidade da vida internacional. Em 1975, o Brasil apontou que um dispositivo respondia afirmativamente a questão tangente às organizações internacionais terem plenos poderes na forma tradicionalmente usada pelos Estados posto que os poderes de representes de tais entidades para o propósito de adotar ou autenticar o texto de um protocolo se chamassem simplesmente “poderes”.

 

Quanto ao processo decisório para adoção de texto de estatuto ente Estados e organizações internacionais, a delegação brasileira considerou no tocante à regra da maioria dos dois-terços seguida em certas conferencias internacionais e consagrada no artigo 9 do presente projeto, que ‘tal prática ainda não poderia formar a base de uma regra obrigatória do direito internacional. As conferências eram tidas como soberanas para estabelecer seus próprios regulamentos, o que deveria continuar sendo o caso’. (TRINDADE, 1990, p. 175)

 

Quanto à capacidade das organizações internacionais de celebrar tratados a Delegação do Brasil manifestou-se: a capacidade dos Estados de celebrar pactos é geral e existe para todos os Estados. A capacidade das entidades é bem mais limitada e é condicionada por suas próprias regras intestinas.

 

No tocante às controvérsias, a Convenção de Viena de 69 afirma que estas estão sujeitas a um procedimento de conciliação de acordo com o disposto na Convenção.Contudo, aquelas envolvendo a aplicação ou interpretação dos artigos 53 ou 64, isto é, as alegações que o pacto conflita com uma norma peremptória de direito internacional geral (jus cogens), são submetidas à Corte Internacional de Justiça (CIJ) para uma decisão, a não se que as partes concordem em submetê-las a arbitragem.

 

A Comissão de Direito Internacional decidiu manter no projeto de 1982 o dispositivo suprajacente. Não obstante, as organizações internacionais não podem ser parte na CIJ. Daí, decorrem as seguintes possibilidades:

 

1.      eliminar a distinção entre normas de jus cogens e as outras;

 

2.      prever o recurso a CIJ somente para os Estados, ignorando as organizações internacionais;

 

3.      prever recurso a Corte de Haia somente para os Estados, estabelecendo procedimento diferente às entidades; e

 

4.      abandonar o recuso a CIJ e estabelecer um procedimento único.

 

A comissão de Direito Internacional optou por esta última solução, com a qual concordou a delegação brasileira.

 

Nossa delegação também abordou a questão dos efeitos de um pacto celebrado em relação a um Estado que não é parte no protocolo mas é membro de uma organização internacional. Neste aspecto, viu-se que a organização atua em nome de seus membros, por isso a participação de uma dessas entidades em um tratado obriga seus membros.

 

IV – Dispositivos do Projeto da Comissão de Direito Internacional da ONU a Requererem Particular Atenção na Conferência de Viena de 1986

 

                   Das duas recentes rodadas de consultas sobre a organização e métodos na Convenção de Viena de 1986, surgiram alguns pontos que merecem atenção. Na primeira rodada foi advertido o risco de reabrirem-se discussões de 1969, por isso deixou-se claro que a atribuição da Convenção vindoura era uma parte específica dos tratados e não a geral. Na época preparou-se uma lista com artigos problemáticos, que tratavam de questões polemicas e de difícil aceitabilidade geral. Uma delas foi a da solução de controvérsias, em que se foi atribuído maior valor à conciliação do que à apelação a CIJ.

 

                   Na segunda rodada, manteve-se a lista dos artigos problemáticos, que mereceram atenção especial. Finalmente, no dia 25 de novembro de 1985, a VI Comissão da Assembléia Geral da ONU aprovou documento contendo a lista completa de artigos problemáticos, vinte e quatro ao todo. Em seu terceiro relatório, Reuter admitiu que se aceitar que a questão da capacidade das entidades internacionais de concluir pactos depende da interpretação dos intrumentos constitutivos, é de se observar que a Conferência de Viena de 1969 não contém dispositivo sobre este ponto. No entanto, este ponto é comum na jurisprudência internacional em matéria de interpretação de tratados de organizações internacionais.

 

                   A parte V da Convenção de Viena de 1969, seu componente mais debatido, refere-se a nulidade, extinção e suspensão de aplicação dos acordos. Dentre os dispositivos mais tratados dessa parte, destaca-se o da capacidade das organizações internacionais, visto que há, em alguns casos, certa fraqueza ou incerteza sobre a personalidade jurídica da entidade.

 

 

 

Comentário

 

A Convenção de Viena de 1986 veio a fim de disciplinar os tratados entre Estados e Organizações Internacionais ou entre Organizações Internacionais. Para tanto, as nações elaboraram comissões com o intuito de protegerem os interesses de sua pátria. Com o Brasil não foi diferente, e Antônio Augusto Cançado Trindade elaborou uma lista de pontos a serem examinados e atentados pelos enviados brasileiros.

 

Deve-se destacar que a base lógica da Conferência de 1986 foi a de 1969 que tratou a respeito dos tratados em geral. Por isso, Trindade aborda a desigualdade entre Estados e organizações internacionais e sua conseqüente divergência em termos de normas do Direito Internacional.

 

Outro ponto de antagonismo foi a capacidade das organizações internacionais de celebrar tratados Reuter, em seu terceiro relatório, foi categórico ao afirmar que a capacidade de uma organização internacional depende do direito peculiar a cada instituição. Por isso, em virtude dessa divergência seria impossível criar um direito uniforme.

 

Assim, com base nos Relatos de Trindade, a Delegação brasileira pôde exercer melhor seu papel na referida e convenção cujo valor e importância decorrem da crescente participação das organizações no cenário internacional.

 

 

 

TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Direito das Organizações Internacionais. Brasília: Escopo Editora. 1990. p.161 -183.

 

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Como citar e referenciar este artigo:
AMPAS,. Subsídios para a Elaboração de Instruções à Delegação do Brasil a Conferência de Viena sobre Direito dos Tratados entre Estados e Organizações Internacionais ou entre Organizações Internacionais de 1986. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2008. Disponível em: https://investidura.com.br/resumos/dip/subsidios-elaboracao-instrucao-viena/ Acesso em: 22 nov. 2024