Hernane Elesbão Wiese*
CAP II – DO ESTADO DE NATUREZA
Locke considera o estado em que os homens vivem naturalmente como um estado de perfeita liberdade para regular suas ações e dispor de suas posses dentro dos limites da lei da natureza. Este estado de natureza não é sinônimo de licenciosidade, o homem “não tem liberdade para destruir-se ou a qualquer criatura em sua posse, a menos que em uso mais nobre que a mera conservação desta o exija”.[1]
O estado de natureza é governado por uma lei da natureza[2]. Cada um está obrigado a preservar-se e, quando sua preservação não estiver em risco, preservar o resto da humanidade, destruindo, quando necessário, aquilo que é nocivo a ela. No estado de natureza, compete a cada homem a execução da lei natural.
O homem torna-se degenerado através do crime. Homem degenerado é aquele que declara o seu rompimento com os princípios da natureza humana e se torna uma criatura nociva. Quando há violações à lei natural, o direito de punir o transgressor cabe a todos; já o direito de obter reparação cabe apenas aos prejudicados.
O homem no estado de natureza não deve ser juiz em causa própria porque o amor-próprio o leva a agir com parcialidade a favor de si mesmo e de seus amigos.
O estado de natureza é preferível em relação a determinados monarcas absolutos que têm total liberdade de serem juízes em causa própria, sem nenhum tipo de controle das multidões que governam[3].
Não é qualquer pacto que põe fim ao estado de natureza entre os homens, apenas o acordo mútuo e conjunto. Todos os príncipes e chefes de governos independentes no mundo inteiro estão num estado de natureza[4].
Os homens permanecem no estado de natureza até quando, por seu próprio consentimento, se tornam membros de alguma sociedade política.
CAP III – DO ESTADO DE GUERRA
“O estado de guerra é um estado de inimizade e destruição; portanto, aquele que declara, por palavra ou ação, um desígnio firme e sereno, e não apaixonado ou intempestivo, contra a vida de outrem, coloca-se em estado de guerra contra quem declarou tal intenção e, assim, expõe sua própria vida ao poder dos outros, para ser tirada por aquele ou por qualquer um que a ele se junte em sua defesa ou adira a seu embate”.
Aquele que tenta colocar a outrem sob o seu poder absoluto põe-se em estado de guerra com ele. Conclui-se que aquele que pretenda colocar-me sobre o seu poder sem meu consentimento, também me destruirá se for tal o seu capricho.
No estado de natureza, quando alguém subtrai a liberdade de outrem, este é visto como se tivesse a intenção de subtrair tudo o mais que ao outro pertença.
Distinção entre estado de natureza e estado de guerra:
· Estado de natureza: paz, boa vontade, assistência mútua e preservação;
· Estado de guerra: inimizade, malignidade, violência e destruição mútua.
A ausência de um juiz comum dotado de autoridade coloca todos os homens em estado de natureza; a força sem direito sobre a pessoa de um homem causa o estado de guerra. A razão pela qual os homens se reúnam em sociedade abandonando o estado de natureza é evitar esse estado de guerra.
CAP V – DA PROPRIEDADE
Qualquer coisa que o homem retira da natureza e mistura a ela seu trabalho transforma-se em sua propriedade. Homem nenhum pode ter direito àquilo que a esse trabalho foi agregado[5].
O homem tem uma propriedade em sua própria pessoa (e a esta ninguém tem direito algum além dele mesmo), já a Terra e todas as criaturas são propriedades comuns de todos os homens (que pode vir a ser propriedade daquele que misturou seu trabalho a um desses bens comuns).
A natureza deu ao homem abundância, mas não para desperdício, um homem só pode ter aquilo que vai consumir, o que estragar é propriedade alheia. O homem, então, não pode tomar tudo para si, por risco de que falte aos demais, a regra da propriedade diz que cada homem deve ter tanto quanto possa usar.
O dinheiro perverteu essa regra da propriedade. O homem pôde transformar o seu excesso de produção em algo que não se estraga (como ouro, prata, etc.) e pôde acumular aquilo além do necessário. O dinheiro, por consentimento mútuo, permite ao homem trocá-lo por outros produtos.
“É, portanto, o trabalho que confere a maior parte do valor à terra, sem o qual ela mal valeria alguma coisa. É a ele que devemos a maior parte de seus produtos úteis”.
CAP VII – da sociedade política ou civil
A primeira sociedade formada foi entre o homem e sua mulher, e deu início à que há entre pais e filhos e, mais tarde, entre senhor e servidor. Essa sociedade tem o nome de governo doméstico, porém está longe de ser uma sociedade política.
Como o homem nasceu livre segundo a lei da natureza, este tem o poder de preservar sua propriedade[6] contra injúrias de outros homens, como também o poder de julgar e punir as violações a essa lei (inclusive com a morte).
A sociedade política só existe quando todos os seus membros renunciam ao direito natural e colocam esse poder nas mãos de um corpo político. Estão em sociedade civil uns com os outros aqueles que estão unidos num corpo político, têm uma lei comum estabelecida, uma judicatura à qual apelar e uma autoridade para decidir sobre as controvérsias e punir os infratores.
Locke explicita dois poderes na sociedade civil, são eles:
· Legislativo: elabora as leis;
· Executivo: poder de punir qualquer delito.
Povo é qualquer número de pessoas que formam uma sociedade civil.
Quando o homem abre mão do seu direito natural de legislar e executar, entrando em uma sociedade ou formando uma, ele sai do estado de natureza.
A monarquia absoluta é incompatível com a sociedade civil, não pode ser, de modo algum, considerada uma forma de governo civil[7].
A finalidade da sociedade civil é evitar e remediar as inconveniências do estado de natureza, que decorrem do fato de cada homem ser juiz em causa própria.
Para Locke, o estado de natureza é preferível à monarquia absoluta, pois é de julgar que os homens são tolos de deixarem poder ilimitado nas mãos de um homem e este ser impune[8]. Os homens estão em estado de natureza quando puderem agir conforme lhes pareça adequado e não houver sobre a Terra a quem apelar.
Na sociedade civil nenhum homem pode se considerar acima das leis[9].
CAP VIII – DO INÍCIO DAS SOCIEDADES POLÍTICAS
Todo homem é naturalmente livre e só pode ser colocado sob o poder de outro sob o seu consentimento, abdicando da sua liberdade natural e revestindo-se dos elos da sociedade civil para unir-se em uma comunidade. Qualquer número de homens que consentir em formar uma comunidade ou governo é incorporado num único corpo político.
A obrigação do homem perante os demais membros de uma sociedade civil é submeter-se à determinação da maioria e catar a decisão desta. “Quando a maioria não pode decidir pelos demais, não pode agir como um corpo único e, conseqüentemente, tornará de pronto a ser dissolvida”.
O pacto político consiste nas pessoas abdicarem de suas vontades em favor da maioria da comunidade. O que inicia qualquer sociedade política é o consentimento de qualquer número de homens livres capazes de uma maioria no sentido de se unirem e se incorporarem a tal sociedade.
Temos dois consentimentos de um homem para sujeita-lo às leis de qualquer governo:
· Consentimento expresso: dado pelo homem quando ele ingressa numa sociedade;
· Consentimento tácito: dado por todo homem que usufrua da sociedade civil.
Porém, submeter-se às leis de um país e usufruir da sociedade civil deste não faz de um estrangeiro um membro desta sociedade. Nada pode fazer com que um homem seja membro de uma sociedade política, a não ser a sua efetiva entrada nela, por um compromisso positivo, promessa e pacto expressos.
CAP IX – DOS FINS DA SOCIEDADE POLÍTICA
O homem renuncia à liberdade do estado de natureza para proteger sua propriedade (vida, bens, saúde, trabalho, bens).
São três os fatores que faltam no estado de natureza para a garantia da conservação da propriedade:
i. Carece de uma lei estabelecida, fixa, conhecida, recebida e aceita mediante o consentimento comum;
ii. Carece de um juiz conhecido e imparcial;
iii. Carece de um poder para apoiar e sustentar a sentença quando justa e dar a ela a devida execução.
O direito original é a punição exercida pelo Estado e daí provêm os poderes legislativos e executivos.
Os dois poderes inerentes ao homem no estado de natureza[10] são:
i. Fazer tudo quando considere oportuno para a preservação de si mesmo e de outros dentro dos limites permitidos pela lei[11];
ii. Poder de castigar os crimes cometidos contra a lei.
Um ser racional nunca optaria por mudar de uma condição de vida para outra pior, quando o homem abre mão dos seus direitos ele está tentando melhorar sua vida.
O legislativo é obrigado a assegurar a propriedade de cada um, através de medidas contra os inconvenientes que tornam o estado de natureza tão inseguro. O governo é exercido através do Poder Legislativo, que governa segundo as leis vigentes promulgadas pelo povo, e de conhecimento deste.
CAP XIX – DA DISSOLUÇÃO DO GOVERNO
A maneira mais comum pela qual ocorre a dissolução de um Estado é a invasão por força estrangeira. Sempre que a sociedade é dissolvida, é certo que o governo dessa sociedade não pode continuar.
Governos podem ser dissolvidos de várias maneiras, a saber:
· Exterior: através de conquista ou entrega do povo à sujeição dum poder estrangeiro;
· Interior: interrupção ou dissolução do legislativo ou alteração do legislativo (quando o soberano colocar nas leis a sua vontade).
A razão pela qual os homens entram em uma sociedade é a preservação da sua propriedade, e o fim para o qual elegem e autorizam um legislativo é a formulação de leis que garantam isso.
Quando leis as postas não podem mais ser executadas, quer dizer que o poder executivo foi renunciado (restando a anarquia, dissolvendo o governo). Quando não resta poder algum, o povo se torna uma multidão confusa, destituída de ordem ou conexão, onde não existem a administração de justiça e garantia dos direitos dos homens.
Quando um governo é dissolvido, o povo se vê livre para prover por si mesmo, instituindo um novo legislativo, diferente do anterior (pela mudança das pessoas ou da forma, ou de ambas).
Quando o legislativo age contrariamente ao encargo que lhe foi confiado ou viola a propriedade do povo, este entra em estado de guerra com o povo, que fica desobrigado de toda obediência e deixado ao refúgio comum a todos os homens contra a força e a violência. Ele perde o direito ao poder, revertendo este poder ao povo.
Quando o povo é levado à miséria e se encontra exposto ao abuso de poder arbitrário, mal tratado, contrariamente ao direito, estará disposto a livrar-se de uma carga que lhe pese em demasia.
O povo pode destituir um governo e promover novamente a sua segurança por meio de um novo legislativo, evitando a rebelião. O fim do governo é o bem da humanidade.
Todo aquele que usa a força sem direito se coloca em estado de guerra com aqueles contra os quais usar a força, todo têm, então, o direito de defender-se e de resistir ao agressor.
O poder que o indivíduo cedeu quando entrou em sociedade não pode retornar a ele enquanto durar a sociedade. O legislativo também não pode retornar ao povo. Mas se forem fixados limites para a duração do poder legislativo ou, então, quando os governantes cometerem faltas que os façam perder o direito de governar, o poder deve retornar à sociedade, e o povo tem o direito de agir como o supremo ou o legislativo em si mesmo, ou instituir uma nova forma de governo.
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[1] Um dos principais pontos de discordância entre Locke e Hobbes. Para Hobbes o homem pode fazer tudo que sua razão achar bom no estado de natureza, já para Locke o homem pode fazer tudo aquilo que não prejudique os outros homens.
[2] Liberdade é a lei da razão no estado de natureza.
[3] Crítica à monarquia absoluta de Hobbes.
[4] Pensamento semelhante ao de Hobbes, porém devemos lembrar as diferenças entre o estado de natureza para Hobbes e para Locke.
[5] Mas isto não significa que o empregado que trabalha no meu pomar, por exemplo, tem direito à fruta que colhe. Ele tem direito ao seu salário.
[6] O conceito de propriedade em Locke é muito amplo, envolvendo a vida, a saúde, o trabalho, a liberdade e os bens (sem hierarquia ou ordem de importância).
[7] Locke reafirma sua crítica à monarquia absoluta hobbesiana.
[8] Nova crítica à monarquia absoluta.
[9] Outro ponto de contradição entre Locke e Hobbes. Para Hobbes, soberano é o detentor do poder soberano. Para Locke, soberana é a lei.
[10] O homem no estado de natureza possui razão.
[11] A lei da razão limita o agir, impede a licenciosidade.
*Acadêmico de Direito da UFSC
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