Direito Internacional

Resenha sobre o livro Mitologias jurídicas da modernidade, de Paolo Grossi

Prefácio

 

Em seu prefácio, Paolo Grossi explica que pretende, em quatro ensaios, denunciar as mitologias que povoam o imaginário do jurista moderno. Enfatiza que seu destinatário privilegiado é o jurista em formação, em particular o estudante de direito. Já não é o primeiro livro que ele indica para os acadêmicos do direito; Primeira lição sobre direito também seguiu essa destinação.

Creio que Grossi veja nos alunos criaturas que ainda não tiveram suas mentes poluídas pelas mitologias desmascaradas ao longo das páginas e, se assim alertados, não se deixaram iludir futuramente.

 

Introdução

 

Pretendo com essa resenha apresentar um contraponto entre a análise e a crítica restada da obra de um professor e doutor honoris causa italiano já bem conhecido nosso, Paolo Grossi. Mitologias jurídicas da modernidade é formado por quatro ensaios, criados para diferentes situações em que o autor se viu inserido e compilados na publicação resenhada, e pretende desmitificar tais seres mitológicos através do trabalho do historiador do direito – crítico e relativizador.

 

Um livro, sua índole, a sua mensagem

Algumas notas introdutórias

 

1.    As mitologias jurídicas da modernidade e o papel do historiador do direito

 

Paolo Grossi é visivelmente apaixonado pelo papel que desempenha: o de historiador do direito. Afirma que um dos papéis do historiador do direito é o de servir como crítica, rompendo convicções e insinuado dúvidas.

Já bem claro desde o começo da leitura está o cerne da obra, isto é, a desmistificação cultural. Definido com grande nó de certezas axiomáticas[1] preso ao coração do jurista moderno é dever do historiador alertar ao jurista que tal nó pode e deve ser desfeito[2].

Trata-se somente de presunções absolutas e de verdades axiomáticas cunhadas por uma hábil estratégia de política do direito[3].

Ele questiona o leitor para ilustrar sua tese quando, por exemplo, pede até onde vai a expressão de um povo dito soberano dentro de uma democracia partidocrática ou quando pede se é satisfatória a suposta garantia oferecida pela legalidade, pela segurança jurídica, pela divisão dos poderes.

Deixa bem claro que sabe que alguns entenderam tudo isso como provocação. Pode até ser[4]. O historiador do direito, ao escancarar essa consciência negativa do jurista positivo, faz, por si mesmo, uma provocação. Acrescenta: é natural.

 

2.    Compreensão historiográfica e instrumentos comparativos

 

O historiador tem um objetivo: a compreensão do seu objeto historiográfico[5]. Para que aconteça tal compreensão, utiliza-se, com uma frequência considerável, um instrumento precioso chamado comparação. A comparação é utilizada para aguçar a crítica do olhar[6].

As páginas de seu livro possuem valor exclusivamente crítico, segundo Grossi. Buscam reduzir a proporções modestas criaturas consideradas como gigantescas na consciência comum.

De quase nada serviria um projeto puramente expositivo. A crítica, pelo nome e pelas mãos da comparação (metodológica, espacial, temporal), vem apontar as feridas vergonhosas de um sistema que nem sempre sabe lidar com ela.

 

3.    Um aceno sobre o conteúdo

 

A obra é composta por quatro comunicações, quatro ocasiões diferentes, mas interligadas. São:

·         Uma conferência proferida na Universidade de Pisa, para os estudantes do primeiro ano da Faculdade de Direito;

·         O “discurso oficial” proferido na ocasião em que foi entregue o Prêmio Internacional Duque de Amalfi, cujo título inspirou essa obra;

·         A conferência de conclusão proferida em um congresso em Florença, sobre a codificação;

·         A conferência ministrada em Rimini, no “Meeting per l’amicizia tra popoli”, por ocasião do Encontro que tinha por tema Se ti distrai, l’Europa è giacobina[7].

 

I

Justiça como lei ou lei como justiça?

Observações de um historiador do direito

 

1.    Direito e lei entre medieval e moderno

 

Sempre alarmou Grossi a desconfiança que o homem comum tem no direito. O homem comum não está errado, na verdade. Para ele, o direito mostra-se como comando autoritário que vem do alto, indiferente à realidade. A justiça permanece como objetivo inalcançável e os cidadãos podem somente esperar que os produtores de leis – que são, pois, os detentores do poder político – ajustem a lei aos moldes da justiça (lembrando que os legisladores também estarão submetidos a tal lei).

O historiador do direito pode alertar para o fato de que a redução do direito à lei é fruto de uma escolha política recente, e que outras experiências históricas viveram de modo bem diferente, como, por exemplo, a medieval[8].

O autor assume então o posto de observatório comparativo entre a civilização jurídica medieval e a civilização jurídica moderna com o objetivo de analisar como a relação entre direito, lei e justiça foi vivida em ambas.

 

2.    A ordem jurídica na perspectiva medieval

 

O universo medieval caracteriza-se por exprimir um poder político não consumado, isto é, um poder político ausente de um projeto totalizante. Ele deixa que as combinações coorporativas se façam livremente, arranjem-se desde o Estado, ao econômico, à Igreja, até os clãs, as altas classes, criando, assim, uma assinatura para o direito medieval e pós-medieval.

Enxergo esse processo como algo muito rico, porém com a ressalva de não concordar plenamente com a tal ordem que o autor diz ter sido a media aetas. Como um caldeirão em ebulição, visível principalmente em seus anos derradeiros, a Idade Média sofreu de uma policultura de fontes do direito; cada safra diferente entre si, cada ordem diferente, pois. Admira-me saber que as poucas determinações totalizantes contivessem o ímpeto de tais possibilidades combinadas.

Grossi segue, então, dizendo que o direito não é a voz do poder, não sofre os seus inevitáveis particularismos[9], que ele nada mais é que emanação da sociedade civil[10], nascido e amamentado no seio da civilização, influenciado pelo tempo e espaço.

O direito não está nos projetos de um Príncipe[11] e torna-se consequência ser concebido como interpretação de juristas que, tendo por base textos respeitáveis (romanos e canônicos) constroem-no autenticamente medieval.

Ninguém mais do que Tomás de Aquino traduziu, no final do século XIII, a definição de lex. A lex é, antes de mais nada, leitura da realidade. Propõe-se indispensável a ela a ratio, a razão, por ser imprescindível à capacidade de leitura e de medida do real.

 A razão vem identificada como instrumento do ordenar[12] e esse é o conceito que Hobbes cria para a razão, isto é, um aparato com habilidade de cálculo para a escolha de meios e fins.

 

3.    Os sinais do “moderno”: estatalidade do direito e transfiguração da lei

 

Lentamente, mas incessantemente, emerge uma nova figura de Príncipe, e também uma conexão totalmente nova entre ele e o direito[13]. Segundo Paolo, a normatização direta realizada pelo Príncipe ganhará, nos anos tardo-medievais e protomodernos, cada vez mais espaço tendendo já a substituir-se monocraticamente em detrimento do velho pluralismo de fontes. Isso se deve à ascendente burguesia que, para ver seus planos realizados, acaba agraciando o Príncipe com o poder legislador.

Ganha espaço o protagonismo da lei, não mais entendida na vaga acepção da lex de Santo Tomás, essa última inclinada a dissipar-se no ius, mas sim no significado estreito da loy, lei em sentido moderno. A primeira era marcada por finalidades bem estabelecidas – razoabilidade, bem comum -, a segunda propõe-se como realidade que não encontra nem seu significado nem sua legitimação social.

Michel de Montaigne, talvez, melhor do que ninguém e já na segunda metade do século XVI soube expressar uma verdade elementar:

 

“as leis possuem crédito não porque são justas, mas porque são leis. É o fundamento místico da autoridade delas; não têm outro fundamento, e é bastante. Frequentemente são feitas por imbecis. (…) quem as obedece por serem justas, não dá a obediência devida a elas”.

 

A lei passa a ser ato unilateral de um soberano, um legislador embaraçante, que confunde a função de legislar com sua própria pessoa. Seria, por Hobbes, o único personagem acima das paixões e dos partidarismos, único capaz de ler e livro da natureza e traduzi-lo em normas.

 

4.    Um itinerário “moderno”: do direito à lei

 

A transição do medievo para o moderno se deu de forma lenta e gradual. Devemos entender que a organização da Idade Média já era consolidada e para transpassá-la era preciso calma.

Bodin, no capítulo central do livro primeiro da “République” fala o seguinte sobre soberania:

“Existe muita diferença entre o direito e a lei, o primeiro registra fielmente equidade; a lei, ao contrário, é somente comando de um soberano que exercita seu poder”.

 

Bodin sente, ainda no século XVI, dois planos na ebulição jurídica da França: um mais visível, a lei e outro mais subterrâneo, que ele não hesita em chamar de direito. O drama do planeta moderno consistirá em realizar o processo de absorção de todo o direito na lei[14].

II

Além das mitologias jurídicas da modernidade

 

1.    Mitologia jurídica como estratégia vencedora na modernidade

 

Parece que apesar do desejo de limpar as lentes do historiador do direito de seus vícios, nossa civilização apresenta-se uma formidável construtora deles. Paolo Grossi admite não ser o primeiro a usar desse sintagma; Santi Romano, apesar do desinteresse histórico e filosófico, propõe problemas de teoria jurídica embora refira-se quase exclusivamente ao grande conjunto de ideias dos séculos XVII e XVIII: estado de natureza, contrato social, representação política, igualdade jurídica, vontade geral[15]. São de Hobbes, Locke, Rousseau e Kant, contratualistas estudados pela sala e dados como principais, tais termos. Não só são deles, mas também são comuns entre si.

O século XVIII é um momento de ruptura. As novas conquistas jurídicas e políticas conheciam a sua fragilidade sabendo não ter o tenaz apoio das metafísicas religiosas. O iluminismo político-jurídico precisa do mito porque precisa de um absoluto ao qual se agarrar; o mito cobre nobremente a carência, preenche um vazio arriscadíssimo para a estabilidade da nova estrutura da sociedade civil[16].

A nova ordem deve ser democrática, exprimindo a vontade geral (Rousseau), a qual tem seu único instrumento de expressão a representação política. O Parlamento é, portanto, depositário da vontade geral e a sua voz em nível normativo, a lei, torna-se regra fundamental de toda a democracia moderna. Por trás de tudo isso fica escondido o Estado monoclassista, o qual o historiador do direito deve desconfiar. Ele deve sempre desconfiar do simples, pois o complexo não usa filtros, se complexo é, já sabemos que é complexo, mas o simples pode não ser tão simples assim.

 

2.    Projeto moderno do direito e complexidade do universo jurídico

 

Na França, no final de século XVIII, vincula-se quase indissoluvelmente, direito e poder. O que por todo transcorrer da civilização medieval foi dimensão da sociedade torna-se dimensão do poder, a nova dimensão autoritária do “jurídico”[17]. Paolo descreve essa como a maior tragédia do direito continental moderno, pois a fisiologia do jurídico não é o palco para a realização das peças do soberano ou abstrações do doutrinador, até pode ser, mas, antes, pertence a uma sociedade (entendida como atores, não como plateia). Não deveria se modificar na figura de um amontoado de pessoas em perene rixa entre si.

E não precisamos ir muito longe para enxergar isso, é só olhar pela porta de nossas salas, assistir os corredores em época de eleição. Interromper um projeto em nome de ideologias infantilmente cultivadas é, além de um desrespeito com os representados, um ato retrógrado fundamentalmente hobbesiano: consideram-se totalmente livres, acima das normas, para decidir, pois se sentem legitimados pelos votos da eleição.

 

3.    Reduções modernas: uma visão potestativa do direito

 

Ter como referência a norma e os sistemas de normas significa também tomar a estrada que conduz a uma precisa separação entre produção e aplicação do direito[18]. Nada mais é do que o fenômeno bem contemporâneo, até informal em seu nome, que dizemos acontecer quando a “lei não pegou”. Cada vez mais vemos normas deslocadas da realidade, as quais nunca serão observadas pela sociedade e tornar-se-ão mais um pedaço de papel escrito sem relevância prática.

É a estrada que conduz a um formalismo que, às vezes, torna-se exasperado na sua abstração. É a estrada que percorre um dos protagonistas na reflexão jurídica do século XX, o austríaco Hans Kelsen. Apresenta-se muito sorridente ao jurista moderno, imperativista e formalista, a construção kelseniana de uma “Doutrina jurídica pura”, que tinha a sua origem do nada e no nada se fundamenta.

Grita nas páginas a crítica à Kelsen por Paolo Grossi. Creio que a sua a aversão ao simplismo, à estagnação do direito dentro de regrinhas reducionistas fez com que o tal famoso jurista fosse atingido pelo historiador do direito.

 

4.    Indo recuperar a complexidade: a descoberta do direito como ordenamento

 

Ordenamento significa ato de ordenar, de colocar em ordem[19]. Isso significa que conceber o direito como ordenamento significa recuperar sua complexidade sem restringi-lo, e sim o organizando, respeitando-o, registrando-o. Claro que a redução forneceu vantagens: a paisagem jurídica é simples e o simples é sempre mais bem compreendido panoramicamente do que o complexo. Infelizmente sofre de dois vícios – a abstração e a consequente artificiosidade. A conclusão que o autor chegou foi que redescobrir a dimensão de micro-coletividade é necessário, pesadamente sacrificada pelo projeto individualista[20].

Criaturas da mitologia jurídica como legalidade e estatalidade formaram uma visão deformante que basearam a norma apenas no seu momento de formação, autoritariamente, desconsiderando a fase da interpretação.

 

5.    Em direção a novas fundamentações para a positividade do direito

 

A inteligência perspicaz de Tomás de Aquino, contemplador de uma paisagem individual ainda não fragmentada, nem política, nem juridicamente[21], pois via que a unidade realizada mediante a ordem nunca é uma unidade simples[22].

Dez anos atrás, Giuseppe Zaccaria, dito por Grossi como um inteligente filósofo italiano do direito convidou diversos colegas para discutir sobre direito positivo e positividade do direito. Ditaram conversas sobre “o organismo global da positividade” e sobre o “funcionamento necessariamente ‘plural’ da positividade”.

Zaccaria conclui colocando-se a favor do aceite do postulado da soberania, unidade e plenitude do ordenamento estatal e da taxatividade das fontes formalmente reconhecidas, uma solução mais moderna e mais maleável. Uma longa linha, bissecular, parece ter continuidade nesses escritos.

 

6.    Interpretação-aplicação e novas fronteiras da positividade do direito

 

Zaccaria não foi exaltado por todos os juristas, principalmente os estudiosos do direito positivo. Um ponto foi veemente rejeitado: destacar a dimensão hermenêutica como elemento interno da positividade da norma. Ele explica dizendo que a única maneira de limpar a norma dessa casca potestativa é admitir que sua produção não é um fim em si mesma (fazendo uma analogia com o imperativo categórico de Kant), mas possui também um momento subsequente, o momento da interpretação.

O direito é mais aplicação do que norma[23]. Seria muito desastroso, nos termos da obra estudada, se a regra jurídica morresse como um simples pedaço de papel. O provável risco é que essa se separe da vida[24], que, como disse mais acima, configure mais uma daquelas leis que “não pegaram”.

 

7.    Em direção ao declínio da mitologia jurídica pós-iluminista

 

Não existe dúvida que a mitologia tão citada nessas páginas está corroída atualmente. É óbvio que o profundo fosso que circunda o castelo foi em boa parte aterrado[25].

As mitologias jurídicas criadas para suprir o buraco deixado pela fundamentação religiosa dentro do projeto burguês não sustentaram as próprias pernas quando essas pisaram nas necessidades e solicitações contemporâneas. Os contemporâneos são mais questionadores, mais céticos e mais laicos. A exigência mais implorativa é retirar a lei do papel totalitário e socialmente insuportável que a idade burguesa lhe concedeu[26].

 

III

Códigos:

Algumas conclusões entre um milênio e outro

 

1.    Código e o seu significado na modernidade jurídica

 

Como historiador do direito, Paolo sente-se no dever de dividir uma preocupação com o leitor. Diz que uma noção nunca foi tão marcada por intrínseca diversidade de significados como acontece no caso da noção de Código.

Podem e existem muitos “Códigos”, para os quais pode ser convencional e inócuo o emprego de um vocabulário unitário, mas, somente um é o Código, que se levanta daquele momento histórico, produto de uma revolução cultural que quebra os fundamentos consolidados do universo jurídico.

Não quer ser nova fonte do direito, quer ser visto como nova forma de confeccionar a velha ordennance de Luís XIV.

O primeiro grande codificador foi Napoleão I. Em seu Code civil, o droit coutumier virou palavra escrita e compilada. Entendia-se que o direito das relações cotidianas, o direito civil, tinha tido até a Idade do Código conotação de extra-estatalidade, sucessivamente reduzidos em esquemas técnicos pela classe dos juristas[27]. Ele quer dar rumo a um direito que traduz como de repugnante complexidade desordenada e confusa[28].

Entendo que o Código foi protagonista da vontade autoritária do Príncipe, quando o direito já havia se identificado com a lei. Concordo com o que Jean Bodin disse sobre a lide entre droit e loi; práxis consuetudinária e vontade potestativa do Príncipe. O direito francês – para usar uma expressão do léxico de Bodin – é, com o passar do tempo, sempre mais loi e sempre menos droit[29].

 

2.    O Código e os elementos que historicamente o caracterizam

 

O Código tende a ser unitária, tende a ser uma fonte completa, tende a ser uma fonte exclusiva. A redução de toda a experiência em um sistema articuladíssimo e minuciosíssimo de regras escritas [30]tem a prepotência de contemplar todos os institutos possíveis além de disciplinar todas as aplicações previstas pelos redatores[31].

O autor, e faço-me usar de suas palavras, diz que assim se delineia o modelo de Código, como esse veio a se desenhar, com os traços nítidos na França nos primeiros anos do século XIX, pesadamente jusnaturalista, iluminista e reducional.

Outro ponto que admito ter me chamado mais a atenção dentro de todo o livro foi a análise da incomunicabilidade das codificações. É o instrumento de um Estado centralizador que se expressa em uma língua nacional, culta, literária, que tenta se mantiver o mais distante possível de todo o tipo de localismos vernáculos, os únicos verdadeiramente agradáveis e compreensíveis à massa popular[32]. Pois é, o famoso “juridiquês” se faz presente até nos escritos de Paolo Grossi. Como aluna primeiranista eu ainda me sinto englobada no grupo definido como massa popular, no entanto tenho consciência que não apenas eu, mas toda minha turma começará a trocar nosso velho vocabulário pelo novo “juridiquês”. Mesmo que evitemos, é mais forte do que possamos controlar, ouvi-lo todo dia será a assinatura de uma mudança de postura e fala. É por isso que o Código – mais do que aos destinatários passivos – fala aos juízes, advogados, promotores, diplomatas, governantes, juristas, enfim.

A ideologia jurídica pós-iluminista fica profundamente perturbada com a visão de uma norma que vive além de sua produção[33]. Perdura, intacta, a atitude de ácida hostilidade em relação à interpretação que não seja a autêntica.[34]

 

3.    O Código hoje: algumas considerações do historiador do direito

Surge então uma pergunta levantada pelo escritor: o ideal de Código ainda se mantem atual? Ou será apenas um hábito vicioso herdado por inércia dos modelos passados? Impõem-se algumas considerações a respeito. A primeira concerne à rapidez da transformação social na civilização moderna, a segunda, à complexidade da civilização contemporânea e a terceira consideração concerne à tensão voltada globalização (que Grossi chamou de “universalização”). Todas essas considerações colocam em dificuldade o Código que, mesmo atulhado de instâncias e veias jusnaturalistas, historicamente se tornou lei nacional e nela se identificou[35].

Atualmente, perante uma transformação rápida e uma complexidade pouco dócil, resta ao Código, na opinião de Paolo, a possibilidade de se oferecer como uma espécie de grande moldura. Rodotà falava de um Código dos Princípios. Considera-se próximo a Rodotà o autor.

Em minha opinião não existe mais como desfazer a civilização dos Códigos. Estamos acostumados demais a justificar nossas relações interpessoais simplesmente dizendo “está no Código, você não sabia?” ou “não pode, é proibido pelo Código”. Atentar contra a codificação não nos cabe mais, o que cabe, creio, é fazer com que os novos códigos venham mais próximos da realidade social, venham com mais solidariedade social (termo de Léon Duguit), venham mais compreensíveis e acessíveis ao real necessitado, o cidadão comum.

 

IV

As muitas vidas do jacobinismo jurídico

 

1.    O papel crítico do historiador do direito no diálogo com o estudioso do direito vigente

 

O jurista é alguém que busca identificar linhas da ordem que se encontram invisíveis, mas reais, abaixo do desordenado conflito das coisas[36]. Só que essas coisas são os elementos da natureza social envolvidos por uma dinâmica contínua, por uma íntima historicidade[37]. O mal para o jurista é o de esquecer-se de que maneja um material riquíssimo em história e que os resultados por ele obtidos, mesmo quando válidos, são relativos[38].

 É mais que evidente que o mal para esses juristas é a tentação – intensa em todo ordenador – de imobilizá-los e de torna-los absolutos. É aqui que mais uma vez o autor faz menção a sua função e diz que se inserindo ao lado do jurista a atividade do historiador do direito tem o privilégio de servir como sua consciência crítica.

 

2.    Um risco da modernidade: absolutização e mitificação

 

Ainda está quente na memória a inflada comemoração do bicentenário da Revolução Francesa, evento, sem dúvida formidável, mas que deve ser avaliado com a distância necessária. O motivo é logo dito: aqueles eventos sofreram uma absolutização, examinados pelos contempladores contemporâneos e futuros à luz de uma deformadora dialética maniqueísta: absolutização e mitificação[39].

Ao contrário do que pensamos a contemporaneidade não é avessa a esse comportamento; o secularismo e o cientificismo, tão venerados, não impedem que essas místicas brotem e floresçam no vale da sociedade.

E é justamente a Revolução Francesa – evento tido com libertador – um eficaz laboratório mitológico aos olhos historiográficos despidos de malícia. Tal fenômeno acontece, sobretudo quanto à sua encarnação mais radical, constituída pelo jacobinismo[40].

 

3.    Um esclarecimento indispensável: significados e mensagens do jacobinismo jurídico

 

A Revolução Francesa foi por mais de um quinquênio, como uma noite perversa de diversos vultos diferentes entre si. Um destes vultos, que devido ao seu radicalismo se empenhou na construção de um modelo sócio-político-jurídico duradouro – foi justamente o jacobinismo[41]. Ele concretizou um discurso que chegou praticamente intacto até nós, discurso que neste seu perdurar e neste seu radicar-se em crenças constituiu um obstáculo para a livre adequação do direito aos sinais dos tempos[42]. As consequências não são doces, é uma visão rigorosamente estatalista, monista, para a qual o único produtor do direito é o Estado.

A materialização é uma assembleia que pretende agir não só em nome do povo, mas no lugar do povo. Aqui eu retomo a cena política recentemente fulgurada em nosso Centro de Ciências Jurídicas. Apesar do belo discurso com que a nova “assembleia” foi eleita, não tão belas são suas práticas – já é visível que usando o escudo dos votos que recebeu ela pretende, pois, deliberar ao bel sabor, acima dos caprichos, apetites e paixões dos corredores.

 

4.    A “redução” jacobina da complexidade social

 

No coração deste eixo de crenças jurídicas está o vínculo restrito e exclusivo entre Estado, a lei, e a vontade geral, entre vontade normativa do Estado, a lei, e a vontade geral: somente o primeiro pode expressá-la, somente à segunda é concedido manifestá-la[43]. Em outros termos: o Estado como único produtor do direito e a lei como sua única fonte.

A abstração e a generalidade das regras jurídicas permitiam atingir como resultado positivo uma coerência racional, mas continham em si o risco de vir a ser a vulgar “folha de figo” que oculta as misérias e vergonhas que continuam a subsistir[44]. Era de fato uma meta falaz, segundo Grossi, já que a simplicidade cativante do novo projeto exorcizava só nominalmente a atualidade da vida social.

 

5.    A “Carta de Nice” como a última “carta” de direitos

 

A “Carta dos direitos fundamentais da União Europeia”, aprovada no final de 2000 pelo Parlamento Europeu e pela Comissão, subscrita e proclamada na sessão de Nice, de 7 de dezembro de 2000, por parte dos respectivos Presidentes e que se tornou, agora, parte integrante do projeto de Constituição Europeia[45].

A opção por uma “Carta” reproduz hoje a velha desconfiança iluminista e jacobina em relação ao estamento dos juristas e ao juiz aplicador, assim como a velha confiança na “política”, o velho culto da ortodoxia que somente um texto em um pedaço de papel pode plenamente garantir[46]. A salvação foi a recepção do produto vivo vindo do Tribunal de Justiça da União, a jurisprudência desde Tribunal.

Este documento de Nice foi proposto como a última flor da doutrina individualista. Com uma pontinha de polêmica, pareceu apropriado ao autor chama-la de “última Carta de direitos”.

 

6.    A ilusão de uma redução do direito em um pedaço de papel

 

A redução do direito em “Cartas”, em textos – enfim – em pedaços de papel, é aspecto peculiar da história do direito moderno no seu momento de plena maturidade. No ano 2000, a “Carta de Nice” também se inseriu nesta linha[47]. Enrijeceu o patrimônio vivo que provinha da experiência do Tribunal e foi inserida num projeto de carta constitucional mais vasto.

Vale levar em conta a advertência de Santi Romano: enunciados, simples índices além de tudo não completos, de um código infinitamente mais amplo, quando não catecismos a serem postos à veneração pública[48].

 

7.    E o seu característico individualismo: o indivíduo como indubitável protagonista

 

O aspecto individualista torna-se evidente pelo modo de conceber o sujeito em exame, um indivíduo isolado, presente em todas as “Cartas” dos séculos XVIII e XIX. Um indivíduo isolado da sua carnalidade histórica, sobretudo pela sua sociabilidade. Este indivíduo desempenha um papel exorbitante e desnaturalizador, ou seja, o ter.

A civilização burguesa baseia-se na distinção entre quem tem e quem não tem, pois tanto mais se é quanto mais se tem[49].

Não será, contudo, a maior ou menor quantidade de patrimônio que tornará menos anônimo o indivíduo. E é este o personagem principal da Carta de Nice, um indivíduo descolado da realidade, sem rosto, sem correspondente, apesar de formalmente despido do peso patrimonial.

 

8.    O indivíduo insular

 

Se a pessoa deve ser mesmo pensada na sua projeção para o outro e, deste modo, em conexão com o outro, o indivíduo, ao contrário, é voltado para a sua insularidade[50].

É senso comum dizer que liberdade é ausência de determinações, conceito hobbesiano contraposto com o que Kant diz que ser a autêntica liberdade, isto é, a relação harmônica e respeitosa entre a minha liberdade e a liberdade do outro.

O certo seria atentar para o que Lombardi e Antonini dizem em suas reflexões: nenhuma liberdade individual se mantém sem a dimensão coletiva.

Apenas em sociedade a liberdade é plena, no estado de natureza ou ela é violenta, ou seca, ou um completo marasmo e somente nela a liberdade não assume da desnaturação da insaciabilidade.

 

9.    O insuficiente projeto de dimensão coletiva do sujeito no tecido da “Carta”: um sinal de continuidade pós-iluminista

 

A “Carta” demonstra estar em conformidade com a tradição política e jurídica burguesa, caracterizada por uma hostilidade perante toda forma de coletividade onde o sujeito possa a vir concentrar à própria liberdade individual[51]. A redução da complexidade sócio-política ao binômio Estado-indivíduo pareceu satisfatória, definitivamente satisfatória, mas, de fato, sacrificou a riqueza plural da sociedade [52]em nome de uma riqueza material que só a redução normativa garantiria.

A burguesia viu-se cada vez mais agraciada com as leis, garantistas para ela e obstrutivas para as demais classes.

 

10.  A exigência de um resgate: contra a monopolização estatal da dimensão política; a sociedade intermediária como autenticamente política

 

Deve ser reconhecida a tradição católica o mérito de ter mantido acesa a confiança na função positiva das sociedades intermediárias. Positiva para a sociedade global e para o mesmo sujeito-indivíduo João Paulo II, na carta encíclica que comemorou o centenário da jeonina Rerum novarum, afirmou com força o papel da agregação coletiva que vai além da célula familiar. Deixamos com ela a palavra, já que se trata de um texto vigoroso e eficaz[53]:

 

“Além da família, também outras sociedades intermédias desenvolvem funções primárias e constroem específicas redes de solidariedade. Estas, de fato, amadurecem como comunidades reais de pessoas e dinamizam o tecido social, impedindo-o de cair no anonimato e na massificação.”

 

O estatalismo e a estatolatria nunca desmentidos, ou melhor, reforçados nos últimos duzentos anos da história continental europeia, tornaram-se indiscutíveis por serem considerados insuperáveis[54].

O poder exige compactação para agir, ele tem horror a um terreno acidentado e fragmentado como uma sociedade pluralista. A compactação se expressa em termos políticos-jurídicos como soberania. Aquilo que para o Estado ativo da compactação, para a sociedade é o balanço passivo – usamos as eficazes palavras de João Paulo II – de uma “impessoal massificação”. Continuando a citá-lo o resgate é o “anonimato” do tecido social[55]. O resgate a ser realizado, em resumo, é o das sociedades intermediárias como momento autenticamente “político”.

 

11.  O insuficiente projeto de dimensão social do sujeito

 

É, de fato, o contraponto direito/deveres que socializa e historiciza o sujeito, transformando-o em criatura carnal na sua consistência vital[56]. Na “Carta”, diz-se muito pouco de deveres, ainda que conste no Preâmbulo; “o gozo destes direitos implica responsabilidades e deveres, tanto para com outras pessoas individualmente consideradas, como para a comunidade e as gerações futuras.”[57].

Entendi com tudo isso que apesar de toda a revisão, a “Carta de Nice” não consegue negar sua essência de “carta”, último elo de uma corrente que nos prende, ininterruptamente a um 1789 e que hoje deveria estar não só temporalmente distante, mas, sobretudo espiritualmente longínquo.

 

Conclusão

 

Posso dizer que como destinatária da mensagem de Paolo Grossi (digo isso na figura de jurista em formação), ela foi bem recepcionada. Não posso deixar de apontar as pequenas ressalvas, já destacadas ao longo da resenha, entretanto não há como negar que a obra quase em forma de denúncia que é Mitologias jurídicas da modernidade falou-me bem profundamente.

Como característica que depreendi do autor, o uso da linha do tempo faz com que suas palavras sejam mais bem absorvidas. Digo que conseguir desenhar uma visão panorâmica do assunto e posso resumi-lo aqui então: o historiador do direito deve pesquisar ao lado do jurista, tutelando e abrindo seus olhos para o nó de certezas que o jurista julga serem certezas, mas que não são tão certezas assim. Deve relativizar, causar dúvida, por em cheque até o que a sociedade na sua vontade geral apressou-se em chamar de “conquistas históricas”.

O que o medieval tinha de pluralismo e ampla gama de fontes do direito foi dissecado e espremido dentro do modelo de Estado monista, que fala “juridiquês” e não pretendeu até hoje sair da abstração, criar coragem e encarar a realidade dos cidadãos para os quais as suas normas são fabricadas.

Por falar em produção normativa, também tem medo o Estado quando pensa a lei para além de sua concepção, ele hesita em admitir que ela possua um patamar posterior e, quem sabe, até mais importante que o nascimento: a interpretação. É na interpretação que a norma potestativa pode, quem sabe, ter suas arestas aparadas para encaixar-se mais suavemente na resolução das lides ou nas relações cotidianas.

O Código, eu entendo assim, é um “mal necessário”. Uma codificação imaterial é bem mais flexível e atualizável, mas temo que nossa cultura já não comporte tal modelo. Obrigar por meio da lei positiva é um ato tão, mas tão sedimentado no coração de nossa sociedade que não teria mais como revertê-lo apenas apontando seus defeitos.

Muito do que culpamos hoje é fruto do jacobinismo jurídico, verbete esse que tive o prazer de conhecer através da obra de Paolo Grossi. Radical e reducionista teve como principal mérito a incrível capacidade de ditar moldes para a sociedade jurídica que chegaram praticamente intactos a nós (moldes esses que não teria notado caso não me fossem apontados).

Em síntese, pude mesmo enxergar várias passagens aplicáveis a minha vida cotidiana. Não foi apenas uma vez que visualizei perfeitamente as citações do livro como um pequeno filme no meu imaginário, atuando como personagens meus colegas de curso, meus amigos, minha realidade dentro de um curso de Direito que forma a quase 80 anos juristas para os quais, retomando o prefácio, as publicações de Grossi se destinam.

 

 

* Gisele Witte, Acadêmica de Direito da UFSC, Estagiária no Tribunal de Justiça de Santa Catarina, Gabinete Des. João Batista Góes Ulysséa, Segunda Câmara de Direito Comercial, Organizadora do VI Congresso de Direito da UFSC

 



[1] p. 13

[2] p. 14

[3] p. 15

[4] p. 17

[5] p. 18

[6] p. 18

[7] p.19 e p.20

[8] p. 25

[9] p. 29

[10] p. 30

[11] p. 31

[12] p. 32

[13] p. 35

[14] p. 44

[15] p. 50 e p. 51

[16] p. 52

[17] p. 56

[18] p. 60

[19] p. 63

[20] p. 65

[21] p. 69 e p. 70

[22] p. 70

[23] p. 77

[24] p. 77

[25] p. 79

[26] p. 83

[27] p. 92

[28] p. 93

[29] p. 97

[30] p. 99

[31] p. 99

[32] p. 107

[33] p. 110

[34] p. 110

[35] p. 116

[36] p. 123

[37] p. 123

[38] p. 123 e p. 124

[39] p. 125

[40] p. 126

[41] p. 127

[42] p. 127

[43] p. 130

[44] p. 132 e p. 133

[45] p. 135

[46] p. 136

[47] p. 137

[48] p. 139

[49] p. 141

[50] p. 143

[51] p. 145

[52] p. 146

[53] p. 146

[54] p. 147

[55] p. 149 e p. 150

[56] p. 151

[57] p. 151 e p. 152

Como citar e referenciar este artigo:
WITTE, Gisele. Resenha sobre o livro Mitologias jurídicas da modernidade, de Paolo Grossi. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2011. Disponível em: https://investidura.com.br/resenhas/direito-internacional-resenhas/resenha-sobre-o-livro-mitologias-juridicas-da-modernidade-de-paolo-grossi/ Acesso em: 29 mar. 2024