Política

Fraternidade e a “Boa Sociedade”

 

 

          “Eu e meu clã contra o mundo;

eu e minha família contra meu clã;

                                                          eu e meu irmão contra minha família;

                                                          eu contra meu irmão”.

                                                                                               PROVÉRBIO SOMALI

                                                                                

 

Quando a revolução francesa desafiou com êxito por vez primeira a ordem do Velho Mundo, seus líderes adotaram um lema que descreveu o que esperavam de uma boa sociedade: “Liberté, égalité, fraternité[1]. Estas virtudes ilustradas são de fato um bom resumo dos elementos essenciais de uma sociedade justa[2] e complexa[3]. A liberdade é certamente uma das maneiras como se manifesta a diferenciação: uma sociedade livre permite que seus membros formulem seus próprios objetivos, desenvolvam suas próprias habilidades e levem a cabo as ações que lhes converterão em indivíduos únicos, separados e autônomos.

 

Mas a diferenciação sem integração rompe a ordem social em fragmentos e desata, de um lado, a cobiça de uns poucos e, de outro, quando não a inveja e o ressentimento, sempre ao menos a frustração, e muitas, muitas vezes, a angústia e o desespero de muitos. Daí a necessidade da fraternidade cuja relevância consiste precisamente na sua função de contrapeso. E não somente isso: também é necessário situar entre esses dois princípios opostos um terceiro, porque é o vínculo que os conecta: a igualdade formal, real e de oportunidades, que é o elemento comum que torna possível o fato de que um grupo de indivíduos dedicados a ir atrás de seus próprios interesses possa coexistir em harmonia entre si.

 

Resulta evidente que as ideais raras vezes se levam à prática no mundo real. As normas e valores sociais que nos instruem para ser fraternais hão de competir com as instruções dos genes que nos dizem que primeiro nos ocupemos de nós mesmos e depois de nossos familiares, assim como das instruções de valores arcaicos e mais nocivos que nos dizem que um homossexual, um negro ou um pobre nunca podem ser nossos irmãos. E tudo parece indicar que, nesta competição, em geral “sempre” acabam ganhando as instruções mais daninhas que configuram nossa condição humana.

 

Não obstante, as implicações morais do reconhecimento de uma natureza humana – do ser humano considerado simultaneamente como um ser biológico, cultural, psicológico e social e como produto da evolução por seleção natural – nos levam a admitir que esta não somente é compatível com o progresso social e moral senão que também pode ajudar a explicar o óbvio avanço ocorrido no decorrer de milênios. Costumes que foram comuns ao longo de toda a história e pré-história (punição com mutilação, execução pela tortura, genocídio por conveniência, rixas intermináveis entre famílias, morte sumária de estranhos, estupro como despojos de guerra, infanticídio como forma de controle de natalidade e posse legal de mulheres) desapareceram em vastas porções do mundo.  Com efeito, nos últimos dois séculos, as virtudes de liberdade e igualdade se hão difundido enormemente pelo mundo. A escravidão já não é uma opção, e a nobreza e a riqueza já não são consideradas dons divinos, dons que permitem a uns poucos afortunados fazer que a vida seja miserável para todos os demais[4].

 

E o que ocorre com a fraternidade? Aqui a questão não está tão clara, pois é difícil afirmar que o principio de integração a que nos referíamos antes tenha sofrido grandes progressos nos últimos séculos. Por desgraça, enquanto que a liberdade e a igualdade hão podido legislar-se, com a fraternidade não ocorreu a mesma sorte. O amor social é um sentimento espontâneo que pode ver-se afetado por informação externa, mas que não pode controlar-se desde fora. E hoje, o conjunto comum de princípios de que dispomos não parece desfrutar de suficiente poder conjuntivo como para dar à gente a sensação de solidariedade e o sentimento de “pertencer”. Nenhum deles tem sido o bastante universal como para unir a todos os indivíduos em uma comunidade de valores única, despida da sensação de separação com relação aos excluídos. Há algo que possa resultar mais desgarrador e nocivo, em termos comunitários, que o provérbio somali citado no início deste artigo?

 

É muito provável que a maior dificuldade que impede a construção de uma  sociedade materialmente justa é que tendemos a considerar de maneira acrítica qualquer “avanço”, tanto em diferenciação como em integração, como algo bom. Se uma nova lei aumenta a liberdade, então deve ser um avanço, igual que qualquer movimento novo que alimente o sentimento de igualdade ou solidariedade entre os indivíduos. Contudo, não é provável que nenhum desses programas por separado melhore as coisas sem a contribuição complementária do outro. A complexidade e a justiça requerem a sinergia dessas forças dialeticamente opostas; um avanço de somente uma delas é provável que fomente a confusão e o caos. A verdadeira injustiça social vem causada por uma falta de liberdade, de igualdade e de valores comuns; mas as ganâncias em qualquer dessas opções a expensas de seu complemento resultam igualmente perigosas. A liberdade sem responsabilidade, fraternidade ou igualdade é destrutiva; a fraternidade sem iniciativa individual é rígida; e a igualdade que não reconhece diferenças ou gera relações fraternas é desmoralizante.

 

Daí a razão pela qual a fraternidade implica liberdade e igualdade para todos e, na mesma medida, de que não há lugar para qualquer contraposição entre liberdade/igualdade, pois não só a igualdade é entendida como reciprocidade na liberdade, como a universalidade da liberdade plena importa na constituição de uma sociedade igualitária e fraterna. Isto é o que permite que utilizemos atualmente a noção de solidariedade em um mundo em que liberdade e igualdade têm ainda um longo caminho que percorrer em sua aproximação ao ideal de uma sociedade justa. Podemos solidarizar-nos com os oprimidos e desgraçados desde as diferenças que nos separam nos níveis de liberdade e igualdade. E o fazemos na medida em que não descartamos eliminar estas diferenças.

 

A liberdade, a igualdade e a fraternidade, em seu conjunto, constituem a base de toda ordem política republicana democrática e conceitos-chaves para qualquer pensamento consistente sobre questões jurídicas, morais e éticas. Com efeito, não somente qualquer discussão séria acerca da justiça ou direitos humanos deveria estar fundada, em última análise, em uma robusta compreensão sobre a liberdade e a igualdade ilustradas (que, por sua vez, repousam sempre sobre uma concepção de  fraternidade) como, e muito especialmente, todo e qualquer programa político honrado e que pretenda propugnar de verdade sua causa ( quer dizer, honrado também na ação), deveria tomar-se em sério o mais contundente e emancipatório valor  da tradição republicano-revolucionária moderna: a fraternidade.

 

E nem cabe objetar, neste passo, que a fraternidade, conceitualmente falando, resulta redundante ou está limitada somente a canalizar determinadas atitudes mentais de conduta, sem as quais perderíamos de vista os valores expressados pelos direitos democráticos. Não parece ser este o caso e nem tampouco padece a fraternidade desse tipo de restrição proposta por Rawls[5]. A justificativa para a fraternidade reside no fato de que se deve concebê-la como um mecanismo por meio do qual se consubstancia e se expressa a necessidade de liberdade e autonomia não em abstrato, senão em uma sociedade que necessita ser transformada e constituída pela inclusão de todos os indivíduos na qualidade de verdadeiros cidadãos, isto é, como seres humanos autônomos e independentes, como verdadeiros seres emancipados e libertos de toda e qualquer barreira social, econômica, política ou de classe.

 

Significa dizer que, assim concebida, tanto no âmbito da atuação política, institucional ou individual, a fraternidade destina-se a produzir a incorporação na sociedade civil – quebrada por conseqüência de uma intensa polarização da vida econômico-social – dos indivíduos mais desfavorecidos, com a conseqüente desaparição, eliminação ou afrouxamento das barreiras que os impedem de ocupar e participar dos espaços públicos, dissolvendo ou acabando com os eventuais vínculos de dominação e de não liberdade – enfim, dos grilhões que os submetem a caprichos arbitrários e/ou a interesses injustificados de qualquer agente social e/ou do próprio Estado.

 

Dito de outro modo, que uma boa e justa sociedade terá de ser também e necessariamente fraterna e “inclusiva”, dar espaço para que indivíduos livres e iguais, procedentes de todos os seus rincões, possam gastar suas vidas em satisfazer os objetivos (individuais e comunitários) que lhes interessam. Este requisito significa também que o Estado terá de ser representativo de diferentes setores da população, que os canais de disputa terão de estar bem estabelecidos na comunidade e que a administração pública terá de se guardar da influência das organizações empresariais e de outros interesses inescrupulosamente poderosos.

 

E por ter a fraternidade o condão de apagar toda e qualquer relação de dominação e dependência política, econômica ou civil de homens livres sobre homens livres, ela implica (histórico-concretamente) que se pode atribuir a alguém uma carga em atenção ao bem de outro, ou seja, que à tarefa de constituir uma verdadeira independência e autonomia em uma nova ordem resultante (o tornar “irmão de” todos os indivíduos que poderiam chegar a ser objeto da mesma situação) pode resultar na admissão de um perigo para o bem de outros e não necessariamente sobre toda a sociedade. Que, enfim, o histórico e concreto rompimento ou abrandamento de antigas e degradantes barreiras de classe está condicionado ao fato de que todos tenham acesso a uma igualdade de oportunidades, elevando-os a níveis de liberdade, de autonomia e de virtude entendidos como auto-realização pessoal.

 

Por certo que justiça não significa – e uma boa sociedade não implica – ausência de desníveis e assimetrias, já que os indivíduos são sempre ontologicamente diferentes (diferenciação); mas significa e implica, isso sim, a ausência de exploração de uns sobre outros, a eliminação efetiva de interferência arbitrária nos planos de vida de uns sobre outros, diálogo e valores compartidos (integração). Tratar com igualdade e fraternidade aos indivíduos não necessariamente entranha um trato idêntico: não exige em absoluto que todos recebam uma porção igual do bem, qualquer que seja, que a comunidade política trate de subministrar, senão mais bem a direitos ajustados às diversas condições.

 

Como recorda Peter Singer (2000), a existência de profundas diferenças entre os seres humanos deve levar a certas diferenças nos direitos a serem atribuídos a uns e outros. Quando se invoca um princípio de equidade (presente na maioria das teorias contemporâneas da justiça) não se está em absoluto pretendendo que deva conduzir a uma identidade absoluta de direitos: da mesma maneira que é absurdo conceder a liberdade de aborto a um homem, o é a pretensão de dar a liberdade a uma mulher para contrair matrimônio, por exemplo, com um gorila. É a “consideração” a que deve ser mantida por igual; a consideração que merecem diferentes seres conduz a distintos direitos.

 

Mas em que pese o fato de que a fraternidade permite ao menos situar o começo da discussão no âmbito de um valor objetivo e subtraí-la à pura paixão subjetiva, ela não encerra, contudo, a solução definitiva, pois que continua dependente das valorações concretas e da harmoniosa complementação (ou sinergia) com relação às demais virtudes ilustradas: sobretudo, a comparação do bem geral integral que se quer alcançar com a entidade do bem individual posto contextualmente em perigo ( virtude, aliás, que preside o ajuste entre liberdade e igualdade ).

 

Por essa razão, a melhor maneira de se viabilizar uma postura ético-crítica verdadeiramente transformadora do status quo da ausência de verdadeira solidariedade deveria começar por um juízo formulado a partir das vítimas sociais do sistema político e sócio-econômico, isto é, de adotar a perspectiva daqueles que se encontram na parte mais escura da vida, “no pior de todos os mundos possíveis”, para usar a expressão de Schopenhauer. Afinal, viver bem, eticamente, significa estar e se preocupar com os outros, ser um entre os outros dentro de um quadro institucional que nos afirme na condição de cidadão: o homem completo, ética e responsavelmente comprometido com a igualdade social, é o cidadão virtuoso, que combina a procura da felicidade pessoal com a exigência interpessoal da amizade e da solidariedade social , sob a égide de instituições justas[6].

 

Ademais, não somente modela uma boa sociedade (livre, igualitária e fraterna) as leis que ajudamos a que se aprovem, os representantes políticos que ajudamos a eleger, as grandes invenções, teorias e obras que elaboramos ou reconhecemos, senão também nossos pequenos atos mentais e de comportamento; a maneira como educamos nossos filhos, como nos relacionamos com os demais, como respeitamos cotidianamente os limites de nossos direitos e cumprimos nossos deveres, etc., são todas pequenas atitudes, decisões triviais, que, a largo prazo, tem muito mais peso que todas as guerras napoleônicas.

 

 Enquanto para uma consciência cúmplice do sistema as vítimas são um momento necessário, inevitável, um aspecto funcional ou natural do contexto sócio-econômico, para uma consciência crítica e responsável, que só pode existir a partir de uma posição ética comprometida, as vítimas são reconhecidas como sujeitos éticos, como seres humanos que não podem (de forma livre, inviolável, autônoma e digna) produzir, reproduzir ou desenvolver suas vidas em comunidade e que se encontram afetados por alguma situação de verdadeira morte existencial.

 

Trata-se, simplesmente, de saber ouvir a voz do outro e de abraçar uma igualdade que abranja fraternalmente a todos os indivíduos em condições de liberdade e autonomia plena. É necessário, na ética e práxis do cotidiano, que nos situemos no lugar do outro para reconhecer que cada um de nós não é mais que um ser entre outros, todos os quais têm desejos e necessidades que lhes importam, o mesmo que a nós nos importam nossas necessidades e desejos. Somente por esse caminho as vítimas sociais terão a oportunidade para emancipar a si mesma em uma sociedade “livre, igualitária e fraterna”. Enquanto viverem na miséria, sob o manto perverso da mais atroz e injustificada indiferença, dignidade humana, liberdade, igualdade e fraternidade, não serão para eles sequer meras possibilidades humanas[7].

 

A autêntica fraternidade somente pode dar-se na medida em que a liberdade e a igualdade se dêem efetiva e previamente. Postula que se considere a todos iguais e como irmãos plenamente livres (ou membros do mesmo corpo). É a extensão dos “laços de sangue” aos demais; e com eles das correspondentes relações afetivas. Trata-se não somente de respeitá-los senão de querê-los. E esse amor desinteressado, para ser pleno (e não se configurar como uma versão vulgar da caridade), requer a harmônica integração de seres livres e iguais[8].

 

Assim entendida, a virtude ilustrada da fraternidade mostra, com claridade, sua essencial dimensão histórico-concreta e a iniludível chamada desse princípio que, em última instância, nos permite exercer nossas melhores capacidades e demonstrar nossa valia como seres humanos – isto é, em que a vida humana adquira um sentido pleno, despida da pretensão de embalsamar a justiça ou fazê-la absoluta como um fetiche sob o controle “do outro”. O mesmo é dizer que não se pode falar de dignidade da pessoa humana se isso não se materializa em suas próprias condições materiais de vida, com liberdade e igualdade de oportunidades em uma sociedade fraterna e solidária, destinada prioritariamente a combater as desigualdades reais e deixar a vida, na medida do possível, fluir livre e igualitariamente, ou seja, dignamente na busca de uma humanidade comum.

 

Essa parece ser a solução ética para tornar efetiva a realização e concretização dos ideais ilustrados (acusadamente da virtude ilustrada da fraternidade) e cujo compromisso cabe a cada um de nós, no mais íntimo de nossa consciência moral de responsabilidade pessoal e solidariedade social, ou, para dizer  em termos mais modestos e mais realistas: é de cada um o incondicional e imperativo dever ético de lutar contra a barbárie da indiferença e da injustiça social. Ignorar esta responsabilidade nos deixa a mercê do azar insensível ou, o que é inclusive pior, dos parasitas exploradores travestidos das mais diversas pelagens (política, religiosa, moralista, relativista, etc.). Depois de tudo, somos os únicos seres viventes que está cognitivamente dotado da capacidade para poder superar a indiferença, remover o sofrimento e eliminar as desvantagens evitáveis.

 

Já é hora de que deixemos de uma vez por todas de habitar no primeiro círculo do inferno de Dante ( o da  indiferenzza, o reino do puro interesse próprio egoísta, a “origem de todo mal” e a mais cruel e perversa forma de conduta moral) e passemos a contemplar a todo e qualquer indivíduo como um ser humano com plena aptidão para sentir, aprender, reagir, amar, eleger, cooperar, dialogar…, enfim, como titular do incondicional direito de dispor de oportunidades reais para se autodeterminar como entidade livre, separada e autônoma (diferenciação), por meio de vínculos sociais relacionais igualitários e fraternos (integração) e no contexto de complexidade de uma boa e justa sociedade.

 

 

* Atahualpa Fernandez, Pós-doutor  em Teoría Social, Ética y Economia pela Universidade Pompeu Fabra; Doutor em Filosofía Jurídica, Moral y Política pela Universidade de Barcelona; Mestre em Ciências Jurídico-civilísticas pela Universidade de Coimbra; Pós-doutorado e  Research Scholar do Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara;Research Scholar da Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel-Alemanha;Especialista em Direito Público pela UFPa.; Professor Colaborador Honorífico (Livre Docente) e Investigador da Universitat de les Illes Balears/Espanha (Etologia, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB; Membro do Ministério Público da União /MPT (aposentado); Advogado.

 

** Marly Fernandez, Doutora em Humanidades y Ciencias Sociales (Cognición y Evolución Humana)/ Universitat de les Illes Balears- UIB/Espanha; Mestra em Cognición y Evolución Humana/ Universitat de les Illes Balears- UIB/Espanha; Mestra em Teoría del Derecho/ Universidad de Barcelona- UB/ Espanha; Investigadora  da Universitat de les Illes Balears/Espanha (Etologia, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB



[1] Note-se que a fraternidade significou um ideal de emancipação que foi parte do programa político de Robespierre, autor da divisa “liberdade, igualdade, fraternidade” que, em seu famoso discurso de 5 de dezembro de 1790, defendendo os direitos do homem e do cidadão contra o sistema censitário que pretendia aplicar-se à Guarda Nacional, apareceu por vez primeira na história universal  da humanidade. No projeto de lei alternativo com que Robespierre concluía seu discurso, se determinava que “todos” os cidadãos maiores de 18 anos – e não somente os ricos – seriam, de direito, inscritos na Guarda Nacional de sua comuna; que esses guardas nacionais seriam as únicas forças armadas empregadas no interior, e não o exército herdado do velho regime; que, em caso de agressão exterior, competiria aos cidadãos em armas, e somente a eles, o defender-se. E que, finalmente, levariam sobre o peito e em seus estandartes estas palavras: “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”.O deputado Robespierre, que vinha lutando sozinho desde há alguns meses contra a distinção, aprovada em câmara, entre “cidadãos ativos” (capazes de pagar um censo) e “cidadãos passivos” (pobres) , voltava agora à carga, e nada menos que em um ponto politicamente tão sensível como o caráter de classe da futura Guarda Nacional. Com isso, nada mais fez do que reclamar que todos os que eram reduzidos a “cidadãos passivos” (para os quais a revolução não tinha muito que oferecer – salvo alguns incompletos e passivos direitos civis – e que não podiam aspirar a um regime de igualdade e liberdade) pudessem emergir à sociedade, a uma sociedade civil de tipo republicano.

[2] Desde que assumindo o compromisso de ligar de forma prioritária a concepção de dignidade humana às virtudes ilustradas de liberdade, igualdade e fraternidade. Seja como for, o certo é que a história recente das teorias da justiça é fundamentalmente a da articulação e do desenvolvimento cada vez mais refinado e sofisticado dessas virtudes e, muito particularmente, do princípio de igualdade; configuram a núcleo duro da justiça, ou melhor, aspectos diferentes da mesma atitude humanista fundamental destinada a garantir o respeito incondicional à dignidade humana.

[3] O conceito de complexidade pode aplicar-se de maneira útil a muitos níveis distintos. Em princípio se desenvolveu para descrever organismos físicos: para que algo seja considerado complexo, deve estar composto por muitas partes que interatuem de forma homogênea; corresponde a um todo que compreende várias partes unidas ou conectadas entre si (Oxford English Dictionary). Mas o conceito de complexidade pode extrapolar-se com facilidade para ser aplicado a uma amostra muito mais ampla, desde moléculas a máquinas, de programas televisivos a sistemas políticos, etc. De uma maneira geral, a complexidade implica um aumento tanto em diferenciação como em integração. A diferenciação se refere ao grau em que um sistema (por exemplo, um órgão como o cérebro, ou um individuo, família, empresa, cultura ou humanidade em seu conjunto) está composto de partes que diferem em estrutura ou função entre si. Integração significa até que ponto as diferentes partes se comunicam e ressaltam seus objetivos. Um sistema que é mais diferenciado e integrado que outro se diz que é mais complexo. Por exemplo, uma família diferenciada é aquela na qual os pais e filhos podem expressar suas distintas identidades; uma família integrada é aquela na qual os membros estão unidos por vínculos de carinho e apoio mútuo. Uma família que só é diferenciada será um caos, e uma que só seja integrada será asfixiante. A complexidade, a qualquer nível de análise, implica o desenvolvimento ótimo de diferenciação e integração (Csikszentmihalyi, 1993). 

[4] Peter Singer (1981) mostrou que o progresso moral contínuo pode emergir de um senso moral fixo. Suponhamos que somos dotados de uma consciência que trata outras pessoas como alvos de solidariedade e nos inibe de explorá-las ou prejudicá-las. Suponhamos, também, que temos um mecanismo para avaliar se um ser vivo se classifica como pessoa. Pinker (2002), citando a Singer, sugere a seguinte explicação para o progresso moral: as pessoas expandiram constantemente a linha pontilhada mental que abrange as entidades consideradas dignas de consideração moral. O círculo foi sendo ampliado, da família e da aldeia para o clã, a tribo, o país, a raça e, mais recentemente (como na Declaração Universal dos Direitos Humanos), para toda a humanidade. Foi se afrouxando, da realeza, aristocracia e senhores de terra até abranger todos os homens. Cresceu, passando da inclusão apenas de homens à inclusão de mulheres, crianças e recém-nascidos. Avançou lentamente até abranger criminosos, prisioneiros de guerra, civis inimigos, os moribundos e os mentalmente deficientes. E as possibilidades do progresso moral não terminaram. Atualmente, há quem deseje ampliar o círculo para incluir os macacos antropóides, as criaturas de sangue quente e os animais com sistema nervoso central. Alguns querem incluir zigotos, blastócitos, fetos e as pessoas com morte cerebral. Outros ainda pretendem abranger espécies, ecossistemas ou todo o planeta. Essa mudança arrebatadora nas sensibilidades, a força propulsora na história moral de nossa espécie […] poderia ter surgido de um mecanismo moral contendo um único botão ou cursor que ajustasse o tamanho do círculo abrangendo as entidades cujos interesses tratamos como comparáveis aos nossos. A expansão do círculo moral não tem que ser movida por algum impulso misterioso de bondade. As sociedades humanas, como os seres vivos, tornaram-se mais complexas e cooperativas com o passar do tempo, não por possuir uma mentalidade cívica inerente, mas porque se beneficiaram da cooperação mútua, da divisão do trabalho e desenvolveram modos de abafar conflitos entre os agentes que compõem o sistema. Dito de outro modo, isso ocorre porque os humanos beneficiam-se quando se agrupam  e se especializam na busca de seus interesses comuns, contanto que resolvam os problemas da troca de informações, da falta de reciprocidade nos vínculos sociais relacionais e da punição dos trapaceiros. Jogos de soma não-zero (contrário de um jogo de soma zero, no qual o ganho de um jogador implica perda para o outro) surgem não somente da capacidade das pessoas de ajudar umas às outras, mas de sua capacidade de abster-se de prejudicar uma às outras. Em muitas disputas, ambos os lados saem ganhando ao dividir o que foi poupado graças a não ter lutado. Isso fornece um incentivo para desenvolver mecanismos de resolução de conflitos, como o direito, medidas para salvar as aparências , restituição e retribuição reguladas e códigos legais – Franz de Waal (2006), por exemplo, recorda que  rudimentos de resolução de conflitos podem ser encontrados em muitas espécies primatas. Do mesmo modo, as formas humanas são encontradas em todas as culturas, tão universais quanto os conflitos de interesses que elas se destinam a dissipar (pessoas de todas as culturas distinguem o certo do errado,  têm um senso do que é justo, ajudam umas às outras, impõem direitos e obrigações, acreditam que os agravos têm de ser compensados e condenam o estupro, o assassinato e certos tipos de violência). Assim que há razões para crer que um senso moral evoluiu em nossa espécie em vez de precisar ser deduzida da estaca zero por cada um de nós depois de sairmos da lama. A evolução nos dotou de um senso moral, cuja esfera de aplicação nós expandimos no decorrer da história por meio da razão (entendendo a permutabilidade lógica entre nossos interesses e os das outras pessoas), do conhecimento (aprendendo as vantagens da cooperação no longo prazo ) e da compreensão ( passando por experiências que nos permitem sentir a dor de outras pessoas). Por conseguinte, parece razoável supor que o progresso moral e social pode ter avançado gradualmente, não a despeito de uma natureza humana fixa, mas graças a ela.(Pinker, 2002).

 

[5] O que acaso contribua para explicar, por exemplo, a perspectiva excessivamente psicologizante que oferecia Rawls (1971) acerca da “fraternidade” em sua Teoria da justiça: “Em comparação com a liberdade e a igualdade, a idéia de fraternidade teve um lugar menor na teoria democrática. Está concebida para ser um conceito politicamente menos específico, que não define por si mesmo nenhum dos direitos democráticos, senão que canaliza mais bem determinadas atitudes mentais de conduta, sem as quais perderíamos de vista os valores expressados por esses direitos”.

 

[6] O que implica conceber a dignidade humana a partir da situação básica de relação do homem com os outros homens, em lugar de fazê-lo em função do homem singular  encerrado em sua esfera individual, que havia servido  às caracterizações  deste valor na fase do Estado liberal de direito. Esta dimensão intersubjetiva ( relacional, coexistencial )  da dignidade é  de suma transcendência para calibrar o sentido e  o alcance atual dos direitos humanos e fundamentais que encontram nela (na dignidade) seu princípio fundante. Por outro lado, nunca é demasiado insistir no fato de que resulta epistemologicamente insustentável a posição dos que postulam uma dignidade humana de certo tipo com independência de qualquer informação empírica sobre a natureza humana e meramente como condição transcendental da possibilidade da moralidade, da responsabilidade, da sociedade igualitária ou da liberdade. A própria idéia de liberdade – condicio sine qua non para a constituição da dignidade humana – não pode conceber-se à margem da relação com as demais pessoas, pois o modo de ser do homem no mundo é intrinsecamente um modo de ser interpessoal. A autonomia de ser e de fazer que está inscrita na mesma essência do homem e da qual brota a possibilidade de obrar livremente e de forma digna, não pode realizar-se mais que no diálogo e na interação com os demais (com o “outro”) no mundo. Daí a razão pela qual E. Levinas adverte para o fato de que não há liberdade humana que não seja capacidade de sentir a chamada do outro. Não existe uma liberdade lograda e completa que logo, posterior e secundariamente, se veja também revestida de uma dimensão ética. Desde o princípio a liberdade humana se realiza no contexto da chamada que o outro me dirige. A mais íntima essência e a medida da liberdade no homem são a possibilidade e a capacidade de sentir a chamada do outro e de responder-lhe. E desde o momento em que o outro aparece como outro livre e autônomo nasce também a dimensão ético-jurídica da dignidade, essencialmente co-existencial. É certo que se não nos criamos completamente a nós mesmos, tem que haver algo em nós do qual não somos causa. Mas o problema central com respeito a nosso interesse pela liberdade e dignidade humana não é se os acontecimentos em nossa vida volitiva estão determinados causalmente por condições externas a nós. O que realmente conta, no concernente à liberdade e dignidade, não é a independência  causal. É a autonomia. E a autonomia é essencialmente uma questão de se somos ativos e não passivos em nossos motivos e eleições; de se, com independência do modo em que os adquirimos, são motivos e eleições que realmente queremos e que, portanto, não nos são alheios. (Frankfurt, 2004). O sujeito autônomo, entanto que sujeito livre, não se encontra sobposto nem superposto ao – nem por debaixo nem por encima do – sujeito de carne e osso ( genes, mente e cérebro) que somos cada um e nem requer, para salvar a liberdade e a dignidade, estritamente um “agente moral autônomo” como alternativa a uma explicação causal em termos biológicos/evolutivos. Ser fiel à natureza humana não é, portanto, recusar em seu nome a liberdade ( elemento constitutivo da dignidade e que é um  efeito  da natureza); é, ao contrário, prolongar esse gesto, indissociavelmente natural e histórico, pelo qual nossa espécie, biológica e social, se ergue contra a natureza que a produz e a contém. O fundamento da moral e do direito não está na dignidade abstrata, senão na plasticidade concreta de nosso cérebro, em nossa margem de manobra, em nossa capacidade de pensar e decidir, de gozar e sofrer. Nesse sentido, nenhuma teoria social normativa (ética ou jurídica) coerente deveria admitir termos tão vazios como o de dignidade sem uma base empírica acerca da natureza humana, sob pena de converter-se em uma cerimônia da confusão revestida de um esquema teórico abstrato, vazio e meramente formal.

 

[7] A essência da indiferença, da apatia com relação ao outro, reside precisamente no fato de que carrega consigo a completa perda de interesse no que sucede. Nada nos preocupa nem nos importa. E uma consequência natural disso é que nossa disposição a estar atentos se debilita e nossa vitalidade ou sensibilidade moral se atenua.Em suas manifestações mais habituais e características, o conformismo apático implica uma redução radical da agudeza e constância de atenção ao que realmente importa. Nossa consciência moral perde a capacidade de perceber injustiças, convertendo-se em algo cada vez mais homogêneo. E à medida que se expande e se apodera de nós, a indiferença faz com que nossa consciência ou compromisso ético experimente uma diminuição progressiva de sua capacidade de perceber os fatos importantes. A justiça só é um valor para os que se interessam e desejam a justiça. A humanidade só é um valor para os que  desejam viver humanamente; a vida só vale para quem a busca ativamente; e nenhuma coisa comanda a não ser proporcionalmente ao interesse que temos por ela. Dito de modo mais simples: ter interesse por alguém ou algo significa ou consiste essencialmente, entre outras coisas, em considerar seus interesses como razões para atuar ao serviço dos mesmos. 

[8] Ademais, dito seja de passo, a presença e a aceitação do “outro” na convivência é o fundamento biológico do fenômeno social e qualquer coisa que destrua ou limite a presença e a aceitação do “outro”, desde a competição até a cooperação, passando pela manipulação ideológica, destrói ou limita o fato de se dar o fenômeno social – e, portanto, humano-, porque destrói o processo biológico que o gera e o sentimento de que estamos desenhados pela seleção natural para entender-nos uns aos outros (Maturana, 1985).

Como citar e referenciar este artigo:
FERNANDEZ, Atahualpa e Marly. Fraternidade e a “Boa Sociedade”. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2010. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/politica/fraternidade-e-a-boa-sociedade/ Acesso em: 26 abr. 2024