Filosofia do Direito

A Destruição do Senso Comum pela Filosofia de Gramsci (Segunda Parte)

 

Não é difícil partir do pensamento dos sofistas e chegar ao de Maquiavel (1469-1527). A brilhante refutação daqueles feita por Sócrates tinha dois tópicos básicos: (1) sua teoria do conhecimento radicalmente relativista e subjetivista e (2) sua subjugação dos meios aos fins, coisa que decretava a morte da Ética.

 

Rejeitando tanto o relativismo como o subjetivismo, por um lado, e total desprezo pela Ética, de outro, Sócrates deu início a uma refutação da sofística que teve um complemento com as Refutações dos Sofistas, último livro de um conjunto de livros denominado Órganon (Instrumento).

 

No referido livro, Aristóteles classifica e analisa cerca de 17 tipos de argumentos falaciosos, sofismas. No entanto, nesse contexto, ele está preocupado com o que hoje chamamos de “lógica informal” e não com a imoralidade do discurso sofístico.

 

Se quisermos aproximar o pensamento dos sofistas ao de Maquiavel, temos de por de lado o conhecimento teórico da vida contemplativa (bios tehoretikos) e nos concentrarmos no conhecimento prático da vida ativa, pois é justamente neste outro em que são devidamente situadas a Ética e a Filosofia Política.

 

Para Aristóteles, a ação política – entendida como a mais nobre das diversas ações humanas no âmbito da vida ativa – era algo simplesmente inaceitável sem as restrições impostas pela ação ética, e isto envolvia tanto os governantes como os governados. Tanto no domínio da Ética como no da Filosofia Política, era impensável subjugar os meios aos fins: ambos tinham que ser bons, quer estivesse em jogo o indivíduo em seus assuntos privados, quer estivesse em jogo o indivíduo em seu papel de cidadão da pólis (a Cidade-Estado).

 

A preocupação precípua de Maquiavel era o que um príncipe (entenda-se: governante) tinha que fazer para conquistar o Poder e se manter no mesmo. Ele diz que é necessário que o príncipe possua duas coisas: a virtude e a fortuna. Estas duas palavras empregadas por ele podem dar margem a lamentáveis mal-entendidos.

 

Por “fortuna”, ele entendia “sorte”, “favorecimento da Roda da Fortuna”, mas entenderíamos melhor o que ele tinha em mente se pensássemos em “fatores aleatórios” ou “variáveis fora de controle”, enfim: coisas de não dependiam de quaisquer ações desempenhadas pelo governante, mas que interferiam positiva ou negativamente na sua governança. [Aqui podemos generalizar dizendo que costumam interferir em todo e qualquer empreendimento humano].

 

O que dependia do governante era la virtù (a virtude). Esta palavra, no entanto, tinha um significado bastante próximo da palavra grega areté, não necessariamente “virtude” na acepção ética do termo, mas sim “a excelência de qualquer ação ou coisa”. Neste sentido, em grego clássico, cabe falar da areté de uma espada, de um cavalo puro-sangue, de um martelo, etc. – coisas que estão no contexto da amoralidade – como também na areté de um tirano cruel e/ou de um reles demagogo, etc. – coisas que, para nós estariam no contexto da imoralidade, mas não para Maquiavel.

 

Pensamos que a mais precisa palavra para traduzir a virtù de Maquiavel é competência, mas competência nunca foi uma virtude ética, porém dianoética, i.e. uma especial capacidade de realização de um objetivo prático qualquer. Daí que um governante pode ser extremamente competente e extremamente imoral, sem que estas atribuições produzam uma contradictio in adjectio (contradição em termos).

 

Não se pode por em dúvida a competência administrativa de Josef Stalin, que conseguiu transformar a URSS de um país semiindustrializado a um país industrializado em tão pouco tempo. Mas cabe indagar: a que custo humano? Sim, pois para realizar seus planos de geração de uma forte indústria pesada – negligenciando a indústria leve e as demandas do consumidor – Stalin não teve dúvida em deixar milhões de camponeses morrerem de fome.

 

Mas que importância pode ter a morte de milhões, se ela está a serviço da razão dialética e sua finalidade derradeira? Os fins justificam os meios, e se a finalidade última é a emergência da sociedade comunista pós-socialista – coisa que acabaria se mostrando uma vã utopia! – todo e qualquer meio passa a ser valido, não importando custo humano acarretado.

 

Stalin e Hitler são dois excelentes exemplos de governantes maquiavélicos. Independentemente dos diferentes objetivos almejados por eles, ambos se identificaram quanto à colocação em prática da subjugação dos meios aos fins. E os fins justificam plenamente os mais odiosos e repelentes meios, seja com a ajuda da KGB, seja com a da Gestapo. Isto é a morte da Ética e o superdimensionamento da ação política despida inteiramente de qualquer consideração pela eticidade.

 

Mas, séculos antes da emergência do comunismo e do nazismo no Século dos Extremos, conforme a denominação do historiador Eric Hobbesbawm, o espírito de Maquiavel aliado ao de J.J. Rousseau estavam dominando as cabeças dos contra-revolucionários jacobinos liderados por Robespierre, o Rousseau com a guilhotina. J.O de Meira Penna caracterizou muito bem o espírito da coisa:

 

“Par pitié, pour l’humanité, soyez inhumains” [Por piedade, pela humanidade, sejai desumanos], gritava um dos piores jacobinos na Convenção de 1794.  Marat protestava seu “título de filantropo”,  argumentando:  “Ah! quelle injustice!  Qui ne  voit  que je veut  couper  un petit nombre  de têtes pour en sauver un grand nombre.”[Ah! que injustiça! Que não vê que eu desejo cortar um pequeño número de cabeças, para salvar um grande número]. Seu propósito era declaradamente cirúrgico.”

 

“Como pseudofilantropo diante da mesa de operação gritava, possesso: “Marcai-os  com ferro quente, cortai-lhes o dedão, rompei-lhes a língua!”. Isso me faz lembrar a  figura de Belinsky,  um dos membros hegelianos  mais influentes da intelligentsia  revolucionária russa no século XIX, que  profetizava:  “Não haverá  mais ricos,  nem haverá  pobres, nem  haverá tzares nem súditos, seremos todos irmãos” (…). Entretanto, esse mesmo Belinsky exclamava:  “Estou começando  a amar a  humanidade  à maneira de Marat: para tornar feliz  uma sua parte mínima, penso que exterminaria o resto a ferro e fogo…”. [Meira Penna: “Pecado social e pecado original” em Carta Mensal, Rio de Janeiro, vol.43, número 502, CNC, Confederação Nacional do Comércio,Rio de Janeiro].

 

Esta última sentença de Marat poderia ter sido dita tanto por Hitler como por Stalin, para quem “a morte de um indivíduo é uma tragédia, a de milhões de indivíduos mera estatística”.

 

 

* Mário Antônio de Lacerda Guerreiro, Doutor em Filosofia pela UFRJ. Professor Adjunto IV do Depto. de Filosofia da UFRJ. Ex-Pesquisador do CNPq. Ex-Membro do ILTC [Instituto de Lógica, Filosofia e Teoria da Ciência], da SBEC [Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos]. Membro Fundador da Sociedade Brasileira de Análise Filosófica. Autor de Problemas de Filosofia da Linguagem (EDUFF, Niterói, 1985); O Dizível e O Indizível (Papirus, Campinas, 1989); Ética Mínima Para Homens Práticos (Instituto Liberal, Rio de Janeiro, 1995). O Problema da Ficção na Filosofia Analítica (Editora UEL, Londrina, 1999). Ceticismo ou Senso Comum? (EDIPUCRS, Porto Alegre, 1999). Deus Existe? Uma Investigação Filosófica. (Editora UEL, Londrina, 2000) . Liberdade ou Igualdade? ( EDIPUCRS, Porto Alegre, 2002). Co-autor de Significado, Verdade e Ação (EDUF, Niterói, 1985); Paradigmas Filosóficos da Atualidade (Papirus, Campinas, 1989); O Século XX: O Nascimento da Ciência Contemporânea (Ed. CLE-UNICAMP, 1994); Saber, Verdade e Impasse (Nau, Rio de Janeiro, 1995; A Filosofia Analítica no Brasil (Papirus, 1995); Pré-Socráticos: A Invenção da Filosofia (Papirus, 2000) Já apresentou 71 comunicações em encontros acadêmicos e publicou 46 artigos. Atualmente tem escrito regularmente artigos para www.parlata.com.br,www.rplib.com.br , www.avozdocidadao.com.br e para www.cieep.org.br , do qual é membro do conselho editorial.

Como citar e referenciar este artigo:
GUERREIRO, Mário Antônio de Lacerda. A Destruição do Senso Comum pela Filosofia de Gramsci (Segunda Parte). Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2009. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/filosofiadodireito/a-destruicao-do-senso-comum-pela-filosofia-de-gramsci-segunda-parte/ Acesso em: 18 abr. 2024