Direito Tributário

Princípio da vedação do confisco em matéria tributária: uma abordagem à luz dos direitos fundamentais

Lauro Tércio Bezerra Câmara[1]

RESUMO

O presente estudo visa a definir o papel do princípio da vedação do confisco no contexto da relação que se estabelece entre a atividade tributante do Estado e um dos seus objetivos constitucionais, que consiste na promoção e tutela dos direitos fundamentais. O trabalho se desenvolve a partir da análise da relação bipolar entre a tributação e a proteção dos direitos fundamentais, especialmente o de propriedade. Na sequência, descrevem-se os contornos jurídicos dessa norma fundamental, procurando delimitá-la e distingui-la em relação a outros princípios jurídicos, inclusive apontando critérios para a sua aplicação. Por fim, apresentam-se as considerações acerca do tema.

Palavras-chave: Tributação; confisco; direito de propriedade; núcleo essencial; proporcionalidade.

1 INTRODUÇÃO

Destaca-se a importância cada vez mais crescente de se estudar o direito tributário, notadamente pela necessidade da escorreita ordenação da conjuntura econômica capitalista vigente e de mensurar a legitimidade do agigantamento do Estado diante de suas funções, justificando-se a análise dos princípios que disciplinam esse ramo jurídico ante possíveis exercícios arbitrários do poder estatal de tributar.

Nas últimas duas décadas, o Brasil vem sofrendo sucessivos ajustes fiscais, visando ao aumento da arrecadação para enfrentar as crises internacionais, os ajustes cambiais e a recuperação do equilíbrio fiscal. Conforme relatório da Assessoria Econômica do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, no ano de 1996 a carga tributária brasileira em relação ao Produto Interno Bruto (PIB) era da ordem de 26,2%, enquanto no ano de 2014 a tributação alcançou 32,5% do PIB[2].

A cada nova crise econômico-financeira vivida pelo Estado brasileiro intenta-se um novo ajuste fiscal, destacadamente mediante a elevação da receita tributária. Nesse quadro, questiona-se a efetividade do princípio da proibição da tributação com efeito confiscatório enquanto limitação ao poder de tributar, especialmente em função da vaguidade que permeia o seu conceito e da ausência de contornos jurídicos bem traçados.

O presente estudo visa a estabelecer a relação entre a atividade tributante do Estado e a proteção dos direitos fundamentais, em especial o direito de propriedade, analisando o papel do princípio da vedação de confisco em matéria tributária nessa relação bipolar. Primeiro, busca-se analisar a relação entre tributação e direitos fundamentais; na sequência, pretende-se definir alguns contornos do princípio da vedação do confisco; e, ao final, apresentam-se considerações acerca do papel da referida norma principiológica no contexto do exercício da tributação e da defesa dos direitos fundamentais.

2 A BIPOLARIDADE ENTRE TRIBUTAÇÃO E DIREITOS FUNDAMENTAIS

Desenvolvemos a presente exposição a fim de traçar a relação entre o Estado de Direito, a tributação e os direitos fundamentais, com o propósito de introduzir a norma constitucional da vedação do confisco à temática dos direitos fundamentais.

2.1 Estado de Direito e direitos fundamentais

O Estado de Direito é um “princípio constitutivo, de natureza material, procedimental e formal” (material-verfahrenmässiges Formprinzip)[3], que se consubstancia (1) numa ordenação subjetiva, garantindo ao indivíduo status essencialmente ancorado nos direitos fundamentais, e (2) numa ordenação objetiva, que diz respeito à sua estruturação num esquema de divisão do poder, sob os aspectos (2.1) negativo, da divisão, do controle e do limite do poder, e (2.2) positivo, da ordenação do Estado “tendente a decisões funcionalmente eficazes e materialmente justas”[4].

Nesse compasso, o princípio do Estado de Direito contém dimensões substancial e formal, procurando “conformar as estruturas do poder político e a organização da sociedade segundo a medida do direito”, com a “profunda imbricação entre forma e conteúdo no exercício de atividades do poder público”[5]. São pressupostos materiais (de conteúdo): a juridicidade – ideal de justiça –, a constitucionalidade – supremacia da constituição – e os direitos fundamentais – densificação do princípio da dignidade da pessoa humana –, inclusive com a “vinculação dos processos e procedimentos públicos pelos direitos fundamentais”[6]. São pressupostos formais[7]: o princípio da constitucionalidade, a divisão dos poderes – competência dos órgãos constitucionais –, o princípio da legalidade da administração, a independência dos tribunais, a vinculação do juiz à lei, a garantia da proteção judiciária e a abertura da via judiciária para assegurar ao cidadão o acesso ao direito e aos tribunais.

Com efeito, o Estado de Direito não pode ser visto sob a perspectiva meramente formal, mas deve ser compreendido como forma (primado da lei) associada a um conteúdo (valores e diretrizes adotados pela Constituição)[8], em especial voltado à promoção e tutela dos direitos fundamentais. Isso demanda recursos, legitimando a tributação.

2.2 Tributação como instrumento da promoção dos direitos fundamentais: função social do tributo e dever fundamental de pagar tributos

Tributação consiste em atividade do Estado abrangente da instituição, da arrecadação e da fiscalização de tributos. A primeira – instituição – é “atividade típica do Estado, indelegável e exercida mediante lei, em sentido formal e material (art. 150, I, CR)” [9]. Noutro pórtico, a arrecadação e a fiscalização dos tributos constituem competências administrativas, das quais não nos ocuparemos no presente trabalho.

Se é certo que classicamente a finalidade principal da tributação é de “arrecadar recursos financeiros para o Estado”, contemporaneamente tem-se afirmado que o tributo assumiu “um enfoque mais ligado ao instrumento da busca da justiça fiscal e social”, no sentido de “interferir na economia privada e demonstrar cada vez mais uma real preocupação com o cumprimento da função social a qual se destina”, consoante o Estado de Direito[10]. Essa é a função social do tributo, como decorrência lógica da própria função do Estado, direcionada à consecução dos seus fins constitucionais, o que impõe ao legislador balizas para o estabelecimento da política tributária visando à justiça fiscal[11].

Nesse quadro, a instituição de tributos configura “autêntico poder-dever”[12] do Estado, cujo exercício funciona como instrumento voltado à obtenção de recursos necessários ao desempenho de suas atividades. Assim, o Estado “não pode prescindir de exigir de seus administrados prestações de caráter compulsório qualificadas como tributos”[13]. Por outro ângulo – o do cidadão –, se ao Estado incumbe instituir e cobrar impostos, em contrapartida cumpre ao indivíduo pagá-lo porque verdadeiro dever fundamental do contribuinte, seja em função do dever de obediência à soberania estatal seja em razão do dever de solidariedade, tudo com vistas a instrumentalizar o Estado para que promova a sua finalidade precípua: a promoção da dignidade da pessoa humana, concretizada nos direitos fundamentais[14].

Portanto, legitima-se a tributação enquanto instrumento de aparelhamento do Estado para a concretização de seus objetivos, mediante contrapartida do cidadão de contribuir para tais desígnios na medida de sua capacidade. No entanto, a sua imposição de maneira excessivamente onerosa vem sendo juridicamente questionada, a medida que restringe demasiadamente direitos fundamentais que o Ente Político tem o dever de promover e tutelar.

2.3 Tributação como restrição dos direitos fundamentais

A própria atividade tributante por si só já constitui verdadeira restrição a dois direitos fundamentais: de propriedade e de liberdade. Como ensina Costa (2016, p. 806), “o primeiro é alcançado direta e imediatamente pela tributação”, considerando que a satisfação do tributo acarreta, “obrigatoriamente, a diminuição do patrimônio do sujeito passivo”; já a liberdade é atingida pelo tributo “de modo indireto […], porquanto a sua exigência pode modular comportamentos dos contribuintes”. Nesses termos, restrição imposta ao direito fundamental de propriedade relaciona-se diretamente com a finalidade fiscal dos tributos, voltada a fins meramente arrecadatórios do Estado; já a restrição ao direito de liberdade relaciona-se especialmente com a finalidade extrafiscal da tributação, que tem por objetivo inibir ou estimular certos comportamentos[15].

Nos casos extremos, a atividade tributante do Estado pode efetuar a destruição do direito fundamental de propriedade, quando, (a) realizada com finalidade fiscal, determine a “transferência total ou de parcela exagerada e insuportável do bem objeto da tributação, da propriedade do contribuinte para a do Estado[16], ou (b), quando tenha nítida finalidade extrafiscal, se “perder qualquer sentido econômico a atividade daqueles que forem atingidos pela norma” tributária indutora de comportamento, tanto em função da própria “alavanca” (ou indução), quanto como decorrência de seus efeitos[17].

Frise-se: o exercício arbitrário da tributação pode acarretar a própria destruição dos direitos que o Estado tem o dever de tutelar. Isso porque o pagamento de tributo significa a transferência de riqueza da propriedade do particular para o Estado, havendo uma evidente bipolaridade entre a atividade tributante do Estado e o direito fundamental de propriedade, que poderá ser destruído caso não haja a necessária compatibilização entre a restrição imposta pela exação ao direito assegurado constitucionalmente. Por isso a tributação deve ser feita de modo a não expropriar o bem ou a não inviabilizar a liberdade pública, vedando-se seja a exação exagerada ou insuportável a ponto de destruir a propriedade particular[18].

Imbuída dessa preocupação,a Constituição Federal disciplinou de modo rígido a atividade tributante do Estado, ao passo em que amparou o contribuinte com grande plexo de direitos e garantias contra eventuais excessos do Poder[19]. Isto é, ao mesmo tempo que o Texto Maior outorga competência ao legislador para instituir exações tributárias, opõe limitações a essa atividade, dentre as quais se destacam os direitos e garantias fundamentais. Nesse caminho, o tributo só será válido se deitar raízes na Constituição, em especial porque não pode, por via escusa, tornar ilusório o direito de propriedade[20].

2.4 “Limites dos limites”: direitos fundamentais (núcleo essencial) e proporcionalidade

Do quanto exposto acima, restou evidente que os direitos fundamentais justificam a tributação, dever do contribuinte para que o Estado se aparelhe para promover a suficiente proteção das liberdades públicas. Noutra perspectiva, o exercício da tributação, por si só, restringe as liberdades públicas que a justificam, a medida que invade o patrimônio do particular. Contudo, essa restrição dos direitos fundamentais pela tributação deve ocorrer de forma legítima, respeitadas as próprias liberdades constitucionais.

A Constituição Federal limita negativamente a competência tributária, isto é, estabelece proibições ao conteúdo possível dos atos estatais tributários, assim compreendidas as leis, os atos administrativos e as decisões judiciais. Com efeito, “O contribuinte tem a faculdade de, mesmo sendo tributado pela pessoa política competente, ver respeitados seus direitos públicos subjetivos, constitucionalmente garantidos”[21].

De modo sistemático, concebe a doutrina “limites dos limites”, referindo-se Mendes e Gonet (2018, p. 211) aos limites que encontra o legislador ordinário ao promover limites/restrições (como é o caso da tributação) aos direitos fundamentais. O jurista inclui dentre os “limites dos limites”, em especial no que importa ao nosso estudo, o princípio da proteção do núcleo essencial dos direitos fundamentais e o princípio da proporcionalidade. Passamos a analisa-los.

2.4.1 Núcleo essencial dos direitos fundamentais

Quanto ao primeiro limite, Mendes e Gonet (2018, p. 212) entendem que “determinados direitos concebidos como instituições jurídicas deveriam ter o mínimo de sua essência garantido constitucionalmente”, visando a “evitar o esvaziamento do conteúdo do direito fundamental decorrente de restrições descabidas, desmesuradas e desproporcionais”. Ressalta que, embora a Constituição não traga disposição expressa acerca da proteção do núcleo essencial dos direitos fundamentais, essa decorre da garantia da cláusula pétrea (art. 60, § 4º, inc. IV) e da supremacia da Constituição[22].

Outrossim, a proteção do núcleo essencial do direito de propriedade encontra fundamento no princípio da dignidade da pessoa humana, em especial face à restrição engendrada pela tributação. Costa (2016, p. 811), analisando a relação entre tributação e o princípio da dignidade humana, afirma que aquela atividade estatal “há de observar as exigências mínimas para uma existência digna”, entendendo que o seu aspecto mais visível é a “observância da capacidade contributiva da pessoa física, especialmente quanto aos seus efeitos de vedação da tributação do mínimo vital e da utilização de tributo com efeito de confisco”.

De forma bastante estruturada, Alexy (2015, p. 297-298) entende que “A garantia do conteúdo essencial é reduzida à máxima da proporcionalidade”. O jurista chega a essa conclusão ao entender, na mesma linha do Tribunal Constitucional Alemão, que os limites à restrição de direitos fundamentais devem ser analisados subjetivamente, pois tais normas “são primariamente posições individuais”, embora não descarte que possa coexistir uma interpretação objetiva. Seguindo nesse raciocínio, adota a teoria relativa do conteúdo essencial, por entender que este “é aquilo que resta após o sopesamento”. Conclui que “restrições que respeitem a máxima da proporcionalidade não violam a garantia do conteúdo essencial nem mesmo se, no caso concreto, nada restar do direito fundamental”. No mesmo sentido, Silva (2017, p. 200) entende que não faz sentido exigir uma dupla garantia (proporcionalidade e conteúdo essencial) dos direitos fundamentais, pois, a despeito de parecer conferir maior proteção, há em verdade mera redundância. 

Voltando-nos ao objeto de nosso estudo, conforme Carraza (2017, p. 446), “a tributação não pode agredir a propriedade privada, a ponto de fazê-la desaparecer”, isto é, não pode ter efeito confiscatório. Acrescenta que o princípio do não confisco, com efeito, cria limite explícito e propicia o dimensionamento da progressividade da tributação e reforça o direito de propriedade, tendo em vista uma tributação justa[23]. Registra-se que o princípio restou positivado entre as “Limitações ao Poder de Tributar” (Seção II, art. 150), configurando limite à restrição imposta pela tributação ao direito fundamental de propriedade endereçada primacialmente ao legislador, que ao instituir tributos deve graduá-los sem expropriar[24].

Logo, o núcleo essencial dos “direitos e garantias individuais constituem barreiras instransponíveis à introdução de inovações no sistema tributário”[25], tendo o direito positivo brasileiro explicitado a garantia da proteção do núcleo essencial do direito de propriedade pelo princípio da vedação do confisco, cuja identificação se alcança pela máxima da proporcionalidade.

2.4.2 Princípio da proporcionalidade[26]

Outro “limite do limite” que nos interessa de perto é o princípio da proporcionalidade. Carraza (2017, p. 581) afirma que essa norma impede que o Estado “restrinja a liberdade das pessoas, a menos que isso se revele imprescindível à proteção dos interesses públicos”. Assim, o postulado presta-se a verificar a constitucionalidade da restrição a direito fundamental, mediante três testes: (1) de adequação, no sentido de questionar se a “medida adotada é adequada para fomentar a realização do objetivo perseguido”; (2) de necessidade, fazendo-se teste comparativo de maior eficiência e de menor gravosidade entre as possíveis medidas; e (3) de proporcionalidade em sentido estrito, buscando evitar que “medidas estatais, embora adequadas e necessárias, restrinjam direitos fundamentais além daquilo que a realização do objetivo perseguido seja capaz de justificar”[27], onde se situa o sopesamento[28].

Na doutrina não há convergência acerca da fundamentação do princípio, aceitando-se como decorrência (a) dos próprios direitos fundamentais, pelo que se aplicaria às relações entre particulares e entre particulares e o Estado, (b) do próprio Estado de Direito, o que ensejaria a sua aplicação também às relações entre os Poderes estatais, e (c) do direito suprapositivo. Alexy (2015, p. 120), a título de exemplo, fundamenta a máxima da proporcionalidade a partir da natureza principiológica dos direitos fundamentais, embora reconheça que “outras fundamentações […] não são por ela excluídas”, podendo inclusive apresentarem-se como reforços na medida que forem relevantes.

Explicam Mendes e Gonet (2018, p. 220) que no Brasil inicialmente utilizou-se o princípio da proporcionalidade como cláusula implícita dos direitos fundamentais, em especial quando de julgamento pela Suprema Corte do direito de propriedade face à tributação, mas que a Constituição Federal de 1988 trouxe como princípio autônomo positivado no devido processo legal substantivo (art. 5º, LIV). Parece ter sido esse o legado da jurisprudência norte-americana em função da introdução no sistema constitucional pátrio da cláusula do devido processo legal, sob a qual a Suprema Corte estadunidense formulou alguns dos postulados cardiais da tributação, dentre eles a proibição de tributos confiscatórios[29]. No entanto, a conexão necessária entre devido processo legal substancial e a máxima da proporcionalidade recebe críticas da doutrina.

Enfim, a máxima da proporcionalidade possibilita a proteção do direito fundamental de propriedade em face da restrição causada pela excessiva onerosidade da tributação, porque funciona como limite da atividade tributante e concebe critérios jurídicos para aplicação do princípio da vedação do confisco tributário.

3 PRINCÍPIO DO NÃO CONFISCO EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA

Tributo confiscatório é aquele que absorve “parte considerável do valor da propriedade, aniquilam a empresa ou impedem exercício de atividade lícita e moral”[30]. Com efeito­­­, qualifica-se o tributo como confiscatório quando, em função do seu grau, “absorva substancial parcela da propriedade ou a totalidade da renda do indivíduo ou da empresa”[31]. Portanto, configura-se confisco tributário quando a intensidade da “tributação seja tão elevada que caracterize a transferência de toda ou quase toda a propriedade particular para o Estado, a título de tributo”[32].

O princípio restou expresso apenas na Constituição Cidadã de 1988[33], determinando o art. 150, caput e inc. VI, ser “vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: […] utilizar tributo com efeito de confisco”. Apesar disso, comentando a Constituição de 1969, Baleeiro (2010, p. 900) indica que o art. 153, §§ 1º, 11 e 22 daquela, ao garantir o direito de propriedade e reconhecê-lo como atributo da personalidade humana, tem por efeito proibir tributos confiscatórios[34]. Acrescenta que a Constituição de 1946 também repudiava o confisco, não só aquele com caráter de pena como também pelas desapropriações disfarçadas, quiçá o confisco pela via oblíqua da tributação[35]. Assim também como “escudo” contra confisco, na Constituição de 1824 determinou-se que “Ninguem será exempto de contribuir pera as despezas do Estado em proporção dos seus haveres” [36], o que implicitamente exigia a manifestação de capacidade contributiva como pressuposto da tributação.

Certo é que, independentemente de enunciado expresso, o princípio da vedação do confisco em matéria tributária decorre implicitamente da proteção ao direito fundamental de propriedade[37]. Porém, a positivação do princípio na Constituição Federal de 1988 tem relevância para efeitos interpretativos, ante a desnecessidade de deduzir norma implícita do sistema e proporcionar-lhe alcance diferenciado ao vedar o “efeito” confiscatório. A Carta Cidadã já veda o confisco em geral a medida que protege o direito de propriedade e ressalva expressamente as hipóteses autorizadoras da privação de bens, por isso qualquer ação estatal que transfira a propriedade do particular para o Estado fora das hipóteses constitucionalmente autorizadas configura-se confisco. O princípio tributário, a nosso sentir, também – e principalmente – combate fenômeno mais sutil de confisco, o que ocorre disfarçadamente pela via da tributação, em especial pela desproporcionalidade da restrição imposta ao patrimônio a ponto de esgotar a capacidade contributiva do indivíduo. Por outras palavras, a vedação constitucional tributária visa a impedir uma dissimulada utilização de uma ferramenta legítima do Estado Democrático de Direito (o tributo) para realizar um ato antijurídico (o confisco).

Nesse ponto, é necessário diferenciar o confisco dissimulado pela via da tributação de outras figuras constitucionais. É certo que confisco se configura pela “absorção total ou substancial da propriedade privada, pelo Poder Público, sem a correspondente indenização”[38]. Entretanto, há determinadas hipóteses em que a Lei admite medidas semelhantes à descrita acima, muito embora não utilize a nomenclatura “confisco”. Nos artigos 5º, XLV e XLVI, e 243, ambos da CF/1988, há referência à pena de “perdimento de bens” e à expropriação (sem compensação), medidas com caráter de sanção e excepcionalmente autorizadas. Perceba-se que a pena de perdimento de bens por prática de ato ilícito configura punição prevista no sistema jurídico constitucional, enquanto a tributação nunca poderá ensejar a aplicação de tal medida pois oriunda sempre de fatos lícitos. Não obstante, a legislação tributária excepcionalmente pode autorizar o perdimento de bens como sanção, por exemplo quando “o sonegador não recolhe os tributos e abandona os bens objeto de importação”[39]. De qualquer modo, é incompatível com a imposição tributária o efeito confiscatório, considerando que tributo é prestação pecuniária compulsória “que não constitua sanção de ato ilícito” (art. 3º do CTN). Logo, a Constituição veda a utilização de uma tributação confiscatória, a qual provoca o mesmo efeito de uma penalidade[40], de modo incompatível com o Estado Constitucional e a proteção dos direitos fundamentais.

Apesar de respeitadíssimos entendimentos em sentido contrário, entendemos que a vedação alcança todos os tributos[41], pois nunca estarão ao exclusivo arbítrio do legislador, embora fatores como extrafiscalidade possam ampliar extraordinariamente os limites da tributação. Por outro lado, a gradação das multas sujeita-se, a rigor, ao princípio genérico da proporcionalidade, conforme elucida Machado (2017, p. 41-42). Para o professor, a norma da vedação do confisco não se aplica às multas porque têm natureza jurídica de sanção, aplicáveis em função da prática de ilícito; sua finalidade é pedagógica, devendo ser elevada para desencorajar o descumprimento de obrigações legais; e a receita delas oriunda é apenas eventual e extraordinária, razão pela qual não precisa ter a característica da suportabilidade inerente aos tributos. Conclui o jurista que, embora o Supremo Tribunal Federal tenha alcançado conclusão correta na ADI 551-RJ, j. 24/10/2002, DJU 14/02/2003, ao impor um limite à multa, o fez pelo fundamento equivocado da vedação do confisco, quando a rigor a pena deve observância ao princípio da proporcionalidade. Portanto, tecnicamente a sanção tributária sujeita-se ao princípio (geral) da proporcionalidade[42], enquanto o tributo, ao princípio (específico) da vedação do confisco.

Traçadas as linhas gerais da norma, vamos ao tema da mensuração, primeiramente verificando os meios hábeis para tanto e na sequência informando critérios que possam auxiliar o intérprete nessa tarefa.

3.1 A (inco)mensurabilidade (apriorística) do efeito confiscatório

Muito se tem discutido acerca da norma, em especial a dificuldade de sua quantificação. Baleeiro (2010, p. 903) enfatiza que o problema de se identificar o efeito confiscatório do tributo reside na fixação de limites, excedidos os quais os objetivos prometidos pela Carta, em especial o direito de propriedade, estariam irremediavelmente feridos. Com semelhante preocupação, Dória (1986, p. 195) destaca a dificuldade de se estabelecer critérios objetivos para se identificar se a exação absorve “substancial parcela da propriedade (…) do indivíduo ou da empresa” em função do seu grau. Igualmente, Becho (2015, p. 406) indaga “qual é essa intensidade na tributação que a torne inconstitucional?”, respondendo que incumbe ao intérprete localizar dentro da ordem jurídica o que seja uma tributação confiscatória.

Carvalho (2017, p. 184) alerta para o subjetivismo inerente à delimitação da ideia de confisco, pois “aquilo que para alguns tem efeitos confiscatórios, para outros pode perfeitamente apresentar-se como forma lídima de exigência tributária”. Informa que a “sua doutrina está ainda por ser elaborada” e que “as elaborações jurisprudenciais pouco têm esclarecido o critério adequado para isolar-se o ponto de ingresso nos territórios do confisco”[43]. E conclui o mestre que o princípio se limita a “oferecer um rumo axiológico, tênue e confuso, cuja nota principal repousa na simples advertência ao legislador dos tributos, no sentido de comunicar-lhes que existe limite para a carga tributária. Somente isso”[44].

De olho na identificação dos limites da tributação, criticam-se as definições apriorísticas sobre a confiscatoriedade. Em singular exposição, Becho (2015, p. 407-409) analisa o princípio a partir da teoria do conhecimento, concluindo (a) que se trata de juízo sintético, porque pressupõe o conhecimento da realidade (lei); (b) que só permite seja aferido a posteriori, pois não pode ser apreendido exclusivamente por raciocínio; e (c) que a dialética é instrumento poderoso para permitir dimensionar a sua aplicação, sendo a lógica formal de reduzida utilidade. Acrescenta que, na dimensão axiológica, a norma caracteriza-se como uma consciência, uma qualidade e também ideia, situando-a no terreno ético dos axiomas como medida de justiça, para identificar que uma concepção apriorística é apenas o primeiro passo para delimitação do princípio, seguindo-se à delimitação do seu conteúdo axiológico a partir de juízos de valor (sem neutralidade) pela investigação fenomenológica[45]. Aponta que o valor não confisco, em si mesmo, é objetivo, embora sua dimensão não seja, resultado da característica da incomensurabilidade dos princípios, pois não se pode aprioristicamente traduzi-los em números[46]. Cirúrgica, assim, a lição do mestre ao demonstrar que a incomensurabilidade, nota atribuída a todo valor, impede uma delimitação apriorística da norma jurídica, fazendo-se necessário análise empírica do objeto (lei tributária) para se alcançar juízo de valor acerca da ocorrência ou não da confiscatoriedade.

É interessante notar que eventual edição de lei fixando limite para a tributação não tem o condão de delimitar (aprioristicamente) se o tributo é ou não confiscatório. Isso importa apenas em fixar limite para a tributação a ser levada a cabo pelo próprio Ente Público, em função de uma escolha política. Ainda assim é a medida passível de revisão. Por exemplo, as Cartas de 1934 e de 1946 estabeleciam regras de limites para aumento de determinados tributos. Ao contrário dessas normas, a vedação de confisco é principiológica por natureza (não por decisão), por causa da sua evidente dimensão axiológica, impregnada que está pela característica da incomensurabilidade, razão pela qual “as referências ao que seja confiscatório ou não […] variam ao longo do tempo, pelas alterações havidas na sociedade, notadamente as de cunho econômico”[47]. Ademais, na condição de direito fundamental do contribuinte, o princípio da vedação do confisco independe de lei intermediadora para adquirir eficácia técnica, como estabelece o art. 5º, § 1º, da CF/88.

Noutra vertente, há decisões de Cortes constitucionais quantificando limites gerais para a carga tributária. A Suprema Corte da Argentina, reconhecendo a garantia implícita do não confisco a partir do dever de proteção da propriedade, adotou o limite de 33% para a exigência de determinados tributos – incluindo aqueles sobre a renda de imóveis explorados e sobre “heranças e doações que excedesse a 33% do valor do bens recebidos pelo beneficiário”[48], em função do critério da razoabilidade, muito embora ressalve a tributação extrafiscal[49]. O Tribunal Constitucional Alemão, em 22 de junho de 1995, determinou que “o conjunto da carga tributária do contribuinte não pode superar 50% de seus rendimentos”, considerando que o art. 14, II, da Constituição germânica impõe que “o uso da propriedade serve igualmente ao benefício privado e ao interesse geral”, mas isentando do Imposto sobre Patrimônio o “valor de uma vivenda familiar média”[50].

Porém, embora se tenha estabelecido, especialmente pelos Tribunais, uma delimitação sobre a confiscatoriedade de certa lei tributária para determinado caso concreto, circunstâncias de tempo e de lugar podem impedir que se chegue à mesma conclusão em casos aparentemente semelhantes. Assim, decisões concebidas em condições normais não se prestam para regular situações anômalas, as quais podem influenciar na aplicação do princípio, tais como guerras[51] e finalidades extrafiscais[52]. Parece de acordo o mestre Baleeiro (2010, p. 903) ao sustentar que o problema é “fundamentalmente econômico”, razão pela qual afirma existir exemplos de agressiva tributação progressiva da renda (“até quase 100%”) e impostos extrafiscais cujo “caráter destrutivo ou agressivo é inerente a essa tributação”, sem que se tenha por configurada a destruição da propriedade. Becho (2015, p. 406) especifica que “em nosso ordenamento jurídico há tributos com alíquotas superiores a 100%, como aquelas incidentes sobre o cigarro, que não foram declaradas inconstitucionais”. Diante disso, conclui-se que “a resposta variará conforme o caso concreto e deverá apoiar-se na equidade e na razoabilidade”[53].

Em termos pragmáticos, incumbe ao Poder Judiciário, como controlador da legitimidade dos atos estatais, definir se há ou não efeito confiscatório de tributo, a partir da análise de determina lei submetida a controle de constitucionalidade[54]. A lição é antiga, lembrando o que disse o Justice Oliver Wendell Holmes Jr.: “The power to tax is not the power to destroy while this Court sits”, ainda que na condição de “dissenting opinion” no julgamento, em 1928, do caso “Panhandle Oil Co. v. State of Mississippi Ex Rel. Knox” (277 U.S. 218). Nessa esteira, Becho (2015, p. 424) indica que o reconhecimento de que o tributo tenha efeito de confisco encontra-se entre as atribuições dos membros do Poder Judiciário, cujos “limites estarão, notadamente, nos entendimentos judiciais”. Não obstante, apesar de a princípio estar o Judiciário autorizado a identificar a ocorrência ou não de confisco, ressalva-se da sindicância judicial as ocorrências situadas na “zona de penumbra”[55], em função de fatores como extrafiscalidade etc.

3.2 A busca de critérios que auxiliem na delimitação do confisco

Considerando a ineficácia de critérios apriorísticos rígidos, a doutrina traz alguns elementos que podem auxiliar na identificação do efeito de confisco da tributação. De partida, obviamente deve-se medir o elemento quantitativo da exação para determinar se a pressão tributária tem ou não efeito confiscatório. Com efeito, “será necessário confrontar-se a alíquota com a base de cálculo, como se faz para se identificar a correta natureza jurídica do tributo”[56]. Mas não só isso, pois o confisco pode advir do peso de um tributo considerado singularmente como da carga exercida pelo conjunto dos gravames incidentes sobre o cidadão[57]. No último caso, ressalva-se, a carga conjunta de tributos deve referir-se ao mesmo Ente Político, pois as características da federação brasileira não permitem o controle da carga tributária total imposta por todos os Entes, problemática eminentemente política[58].

É de se esclarecer que a violação ao princípio da legalidade (reserva de lei formal), por si só, não é capaz de definir uma exação como confiscatória[59]. Isso porque, ainda que suprida a reserva de lei autorizativa da cobrança, a prestação não deixaria de ser confiscatória enquanto não redimensionado o elemento quantitativo da exigência tributária, reduzindo-a a patamares proporcionais. Diversamente, a exação sem amparo na regra matriz constitucional, por si só, é confiscatória, visto que configura uma restrição direta ao direito fundamental de propriedade sem autorização da Lei. Nesse caso, a gradação da cobrança é irrelevante, considerando que a imposição sequer fora autorizada pela CF[60]. Assim, a vedação de confisco apenas num sentido amplo confunde-se com a inconstitucionalidade da exação por falta de competência tributária, porque a privação da propriedade sem causa jurídica configura, a toda evidência, verdadeiro confisco.

Um dos critérios apontados para aferir a ocorrência do efeito confiscatório da tributação é o atendimento ao princípio da igualdade. No entanto, urge distinguir esses princípios em destaque, para precisar até que ponto uma norma influencia na outra. Nessa esteira, o princípio da igualdade diferencia-se daquele porque tem como pressuposto a comparabilidade entre as diversas situações tributadas, o que reflete o seu caráter relativo como fator para se alcançar a justiça tributária, de modo a impor a igualdade entre as situações semelhantes e a desigualdade entre situações diferentes (aspecto positivo), vedando-se discriminação arbitrária (aspecto negativo)[61]. Com efeito, a comparação entre os fatos imponíveis é que permitirá visualizar as situações de igualdade ou desigualdade, a impor tratamento fiscal semelhante ou proporcionalmente desigual como requisito para se alcançar justiça tributária. De outro modo, a vedação do confisco assume caráter objetivo, pois busca resguardar o direito de propriedade em face da tributação desproporcional[62], razão pela qual por si só essa vedação não é capaz de assegurar igualdade entre contribuintes, e vice-versa: a igualdade entre os sujeitos passivos não assegura a não confiscatoriedade.

Exemplificativamente, podemos diferenciar as incidências dos princípios da igualdade e do não confisco pela eleição do sujeito passivo pela lei tributária. É nesse ponto que inserimos o exemplo do tributo em que figuram como sujeito passivo apenas grupo restrito de contribuintes, não obstante outros indivíduos estejam em situação semelhante ou idêntica: a inconstitucionalidade fundamenta-se por ferir a igualdade ante o critério arbitrário de comparação utilizado, embora o tributo considerado, isolada ou conjuntamente com outras incidências, possa não se afigurar confiscatório, do ponto de vista da gradação; caso a prestação fosse razoavelmente cobrada de todos os indivíduos que se encontrassem em semelhante ou idêntica situação, provavelmente não se cogitaria de confisco. Exemplo oposto ocorre quando a tributação arrebata a “totalidade da renda ou parcela substancial da propriedade de um ou alguns indivíduos, eleitos arbitrariamente dentre um grupo de pessoas igualmente situadas”: ainda que esse tributo fosse estendido a toda a sociedade a fim de cumprir critério razoável de igualdade, subtraindo o óbice da discriminação arbitrária, só por isso não deixaria de ser confiscatório em sentido estrito, considerando a sua gradação em função da riqueza tributada[63]. Quanto aos sujeitos passivos eleitos pela norma tributária, resta clara a distinção entre os limites da tributação baseados nos princípios da igualdade e na proibição do efeito confiscatório, muito embora ambas as normas fundamentais resguardem o direito constitucional de propriedade do contribuinte e, ao fim, o ideal de justiça tributária.

A distinção entre o princípio da igualdade e a vedação de confisco fica menos nítida quando referente ao elemento quantitativo da exação, porque aquele “obriga o legislador a graduar o tributo de acordo com a capacidade econômica do contribuinte”[64]. A dificuldade ocorre justamente porque o confisco tributário está diretamente relacionado, do ponto de vista lógico-formal, ao critério quantitativo da regra-matriz de incidência tributária[65], razão pela qual Tipke (1998, apud HOVARTH, 2002, p. 76) afirma que a “capacidade contributiva termina, de todo modo, onde começa o confisco que leva à destruição da capacidade contributiva”. Nesse sentido, Misabel Derzi informa que ambos os princípios se assentam “na capacidade econômica do contribuinte”, porque para que incida a tributação pressupõe-se a manifestação de riqueza[66]. Sendo assim, essas normas possuem em comum a pessoalidade ao partirem da capacidade econômica do contribuinte, razão pela qual “devem levar em conta os gastos necessários à aquisição e manutenção da renda e do patrimônio”, além do mínimo vital[67]. Nessa linha, na dimensão subjetiva, isto é, do ponto de vista do indivíduo, “o tributo será confiscatório quando exceder a capacidade contributiva” a ele relativa[68], atuando a vedação também como limite à progressividade da tributação[69]. Esclarece-se, por oportuno, que o princípio da capacidade contributiva, como corolário do postulado da igualdade material, em sua dimensão subjetiva, impõe a gradação da tributação, servindo de instrumento à justiça fiscal distributiva; já na dimensão objetiva, impõe ao legislador instituição de tributos para alcançar somente fatos imponíveis que se traduzam em manifestação de riqueza[70]. De todo modo, incide a proibição de confisco quando o tributo esgota a capacidade contributiva relativa e também, em sentido amplo, quando a regra matriz da exação colhe materialidade não presuntiva de riqueza, porque neste caso há violação direta do direito de propriedade.

Um exemplo pode elucidar como ocorre a superposição entre os princípios do não confisco e da capacidade contributiva. Becho (2015, p. 420) os distingue ao afirmar que pode haver violação desse último sem que se fira aquele. Para demonstrar, exemplifica com uma hipotética majoração da alíquota do IPTU de 1% para 5%, o que “pode deixar diversos contribuintes em sérias dificuldades financeiras” dada a elevada medida da base de cálculo e, por conseguinte, da prestação. Analisa, partindo da premissa de que o tributo em destaque somente se torna confiscatório a partir da alíquota de 10%, haver violação do princípio da capacidade contributiva pelo excesso da tributação sobre o patrimônio, embora não tenha ocorrido confisco. E conclui que “o princípio da capacidade contributiva é um minus diante do princípio da vedação de tributação com efeito de confisco, este um plus”, aplicando-se às “hipóteses exacerbadas em relação à capacidade contributiva”[71].

Outra questão que se coloca acerca da definição de confisco reside na correta aplicação do produto da arrecadação do tributo com destinação vinculada. Dória (1986, p. 199) explica que a destinação do produto da arrecadação do tributo para fins particulares não o caracterizaria como confiscatório, pois a ocorrência oposta (efetiva destinação pública), por si só, não impediria o reconhecimento da natureza confiscatória do tributo. Aliás, a questão da destinação do produto da arrecadação tributária não se encontra dentro dos lindes do ramo didático jurídico tributário, sendo próprio do direito financeiro[72]. Não discordamos, porém lembramos que, dentro da perspectiva do Estado de Direito, é necessário ponderar a conexão receita-despesa, a fim de que se possa legitimar a tributação na medida do necessário à concretização dos direitos fundamentais, o que influencia na carga tributária e, por conseguinte, na própria identificação do “efeito confiscatório”.

Por sua vez, o princípio da função social da propriedade pode obscurecer ainda mais a identificação de eventual confisco. Isso porque a CF/88, ao passo que garante o direito fundamental, também subordina a sua proteção ao atendimento da função social, razão pela qual “ao direito de propriedade causador de disfunção social, (a Constituição) retira-lhe a garantia”[73]. A Lei Maior positiva ao menos duas situações em que a maior gravação está relacionada imediatamente ao não atendimento da função social da propriedade: o art. 182, § 4º, inc. II, permite a progressividade do IPTU no tempo para “solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado” e o art. 153, § 4º, inc. I, autoriza a progressividade do ITR “de forma a desestimular a manutenção de propriedades improdutivas”. Tanto numa como noutra hipótese, a função social da propriedade autoriza a tributação mais gravosa visando a induzir o proprietário ao seu cumprimento pela via da tributação, sem que se possa falar a princípio em efeito confiscatório da exação. Não poderia ser diferente, pois “é exatamente no escopo de tornar insuportável a propriedade utilizada contra a função social que são arrumadas as tributações extrafiscais”, vedando-se o reconhecimento de confisco “a não ser no caso-limite (absorção do bem ou da renda)”[74].

Em conclusão, a vedação constitucional de tributo com efeito confiscatório decorre da proteção ao direito fundamental de propriedade e, por conseguinte, do dever de proporcionalidade da lei restritiva tributária, vedando que a gradação da exação venha a esgotar a capacidade contributiva do indivíduo. A violação de outros princípios constitucionais, isoladamente considerados, como igualdade, legalidade e capacidade contributiva, por si só, não indicam a confiscatoriedade da tributação, muito embora acarretem vício de inconstitucionalidade, igualmente atingindo o direito de propriedade. Assim, o tributo constituir-se-á confiscatório em sentido estrito – “efeito de confisco” – quando, em razão de seu grau, retirar parcela substancial do patrimônio particular, e em sentido amplo quando violar outras garantias fundamentais, também violando o direito de propriedade.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A tensão entre a tributação e os direitos fundamentais advém do próprio Estado de Direito. Por um lado, o Estado é constituído para proteger e promover os direitos fundamentais dos indivíduos, com destaque para o de propriedade; de outro lado, o Ente Político tem o dever-poder de restringir essa liberdade pública pela tributação, para que possa arrecadar recursos necessários à sua tutela. Contudo, a invasão do patrimônio do particular encontra limite na própria manutenção do núcleo essencial do direito fundamental de propriedade, não podendo o Estado esgotar a riqueza tributada a ponto de confisca-la.

Nesse quadro, o princípio da vedação do confisco positiva o dever de proteção do núcleo essencial do direito de propriedade na seara tributária, trazendo a máxima da proporcionalidade os critérios para sua observação. Nesse compasso, o teste de constitucionalidade da lei tributária passa pelas exigências de adequação, necessidade e, principalmente, compatibilidade da exação, em face da necessidade de assegurar a proteção mínima do direito fundamental.

Em conclusão, a tributação deve ser (a) adequada à finalidade que busca, somente incidindo onde houver manifestação de riqueza, respeitando o princípio da capacidade contributiva na dimensão absoluta; (b) exigível, comparando-se o grau de eficiência da intervenção no patrimônio – questão relacionada à capacidade contributiva relativa – em face de outras medidas possivelmente menos gravosas; e (c) proporcional, ou compatível, com o núcleo essencial do direito de propriedade (princípio da vedação do confisco), de modo a preservar a unidade do sistema jurídico, sob pena de inconstitucionalidade.

REFERÊNCIAS

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SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2017. 279 p.



[1] Graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Pós-Graduado Lato Sensu em Direito e Processo do Trabalho e em Direito Tributário pela Universidade Anhanguera – Uniderp. Mestrando em Direito Constitucional e Processual Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Procurador do Estado de São Paulo. E-mail: laurotbcamara@gmail.com.

[2] Assessoria Econômica, 2015, p. 04.

[3] Canotilho, 2003, p. 243.

[4] Ibid., p. 250.

[5] Ibid., p. 255.

[6] Ibid., p. 249.

[7] Ibid., p. 255.

[8] Baleeiro, 2010, p. 909.

[9] Costa, 2016, p. 803.

[10] Domingos, 2015, p. 83.

[11] Ibid., p. 86.

[12] Costa, 2016, p. 803.

[13]Ibid., loc. cit.

[14] Nabais, 2015, p. 60.

[15] Costa, 2016, p. 807.

[16] Becho, 2010, p. 412.

[17] Schoueri, 2018, p. 369.

[18] Becho, op. cit., p. 402.

[19] Carraza, 2017, p. 446.

[20] Ibid., loc. cit.

[21] Ibid., p. 476.

[22] Mendes e Gonet, 2018, p. 215.

[23] Carraza, 2017, p. 446.

[24] Baleeiro, 2010, p. 908.

[25] Costa, 2016, p. 804.

[26] A proporcionalidade pode ser vista como regra (especial), princípio, postulado ou máxima, segundo Silva (2017, p. 168-169). No presente trabalho, não fazemos distinção, utilizando os termos como sinônimos.

[27] Silva, 2017, p. 169-176.

[28] Alexy, 2015, p. 117.

[29] Dória, 1986, p. 35-36.

[30] Baleeiro, 2010, p. 901.

[31] Dória, 1986, p. 195.

[32] Becho, 2015, p. 403-406.

[33] Costa, 2017, p. 102; Carvalho, 2017, p. 184.

[34] Baleeiro, op. cit., p. 902.

[35] Ibid., loc. cit.

[36] Baleeiro, 2010, p. 902.

[37] Machado, 2017, p. 41; Hovarth, 2002, p. 32.

[38] Costa, 2012, p. 83.

[39] Becho, 2015, p. 405.

[40] Becho, op. cit., p. 406.

[41] Hovarth, 2002, p. 123.

[42] No mesmo sentido: Hovarth, 2002, p. 116.

[43] Carvalho, 2017, p. 185.

[44] Ibid., p. 186.

[45] Becho, 2015, p. 409-414.

[46] Ibid., p. 416-417.

[47] Ibid., p. 423-424.

[48] Villegas, 1975, p. 195, apud Baleeiro, 2010, p. 914.

[49] Baleeiro, 2010, p. 903-906.

[50] Hovarth, 2002, p. 139.

[51] Becho, 2015, p. 415.

[52] Dória, 1986, p. 197.

[53] Costa, 2017, p. 103.

[54] Nesse sentido: Jesus, Jesus e Jesus, 2017, p. 63; Machado, 2017, p. 41; Hovarth, 2002, p. 119.

[55] Hovarth (2002, p. 35) informa que “Haverá sempre como dizer-se quando uma situação retrata claramente um confisco, bem como não será difícil aferir quando não se trata de confisco. O problema está, como é evidente, na chamada ‘zona cinzenta’ ou ‘zona de penumbra”.

[56] Becho, 2015, p. 406.

[57] Coêlho, 2018, p. 185; Machado, 2017, p. 41.

[58] Hovarth, 2002, p. 82.Foi nesse sentido decisão do Supremo Tribunal Federal que deferiu medida cautelar na ADI 2.010/DF, considerando apenas a carga tributária imposta pela “mesma pessoa política”, para suspender o aumento das alíquotas das contribuições previdenciárias devidas por servidores públicos.

[59] Dória, 1986, p. 199.

[60] Hovarth, op. cit., p. 42-43.

[61] Baleeiro, 2010, p. 867.

[62] Ibid., loc. cit.

[63] Dória, 1986, p. 198.

[64] Baleeiro, 2010, p. 911.

[65] Hovarth, 2002, p. 38.

[66] Baleeiro, op. cit., p. 867.

[67] Ibid., loc. cit.

[68] Costa, 2017, p. 102-103.

[69] Hovarth, op. cit., p. 33.

[70] Costa, op. cit., p. 81.

[71] Becho, 2015, p. 421.

[72] Hovarth, 2002, p. 51. Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal entendeu que “eventual inconstitucionalidade de desvinculação de receita de contribuições sociais não acarreta a devolução ao contribuinte […], pois a tributação não seria inconstitucional ou ilegal” (STF, Pleno, Recurso Extraordinário 566.007, Rel. Min. Carmem Lúcia, Tema 277 da Repercussão Geral, julgado em 13/11/2014, DJE de 10/02/2015.).

[73] Coêlho, 2018, p. 186.

[74] Ibid., loc. cit.

Como citar e referenciar este artigo:
CÂMARA, Lauro Tércio Bezerra. Princípio da vedação do confisco em matéria tributária: uma abordagem à luz dos direitos fundamentais. Florianópolis: Portal Jurídico Investidura, 2019. Disponível em: https://investidura.com.br/artigos/direito-tributario/principio-da-vedacao-do-confisco-em-materia-tributaria-uma-abordagem-a-luz-dos-direitos-fundamentais/ Acesso em: 19 abr. 2024